sábado, maio 02, 2020

Cinegnose faz um pequeno inventário da recorrência de sonhos na quarentena COVID-19


Não é apenas a nossa consciência que desperta para o atual momento da pandemia global. Também os nossos sonhos estão traduzindo o momento difícil pelo qual passamos. Nesse momento, psicólogos, historiadores, artistas e estudiosos de diversas áreas estão percebendo a recorrência de símbolos nos sonhos que se assemelham historicamente aos períodos de guerra ou totalitarismo político. Começam a surgir esforços para a criação de banco de dados em todo o mundo, com relatos de sonhos da COVID-19. Por exemplo, pesquisadores da USP criaram o “Inventário dos Sonhos”, enquanto na Universidade de Harvard temos o projeto “Pandemic Dreams” com relatos de sonhos de todo o mundo. “Os sonhos são o sismógrafo do presente”, como afirmava a berlinense Charlotte Beradt em seu livro “Os Sonhos do Terceiro Reich”. Assim como o psicanalista Carl Jung nas análises dos sonhos de seus pacientes, ambos anteviram a ascensão do nazismo. Por isso, também esse Cinegnose iniciou um pequeno inventário de relatos oníricos da quarentena. Nessa postagem, uma análise das primeiras recorrências simbólicas do nosso material pesquisado. Estaríamos diante de um sonho/pesadelo coletivo?

Para Freud o sonho é o guardião do sonho. O sono é uma necessidade fisiológica e o sonho tenta protege-lo.
Se o despertador toca é muito comum o sonho disfarçar a campainha de alarme, tecendo com ela uma história qualquer...Você está na igreja, com os sinos tangendo; ou então num escritório, onde um telefone estridente reclama que o atendam". Dado o estímulo, o sonho cria o cenário, fornece atores e adereços para as cenas, tudo isso extraído das experiências e impressões do dia-a-dia de quem está dormindo.
Também para nos manter adormecidos os sonhos deformam as nossas histórias e tudo aquilo que não admitimos em nós mesmos.
Mas os sonhos têm um outro lado: essas narrativas ficcionais criadas para nos apartar da realidade encontram o seu limite: pelo fato do sonho fugir do controle dos pensamentos racionais, o inconsciente e os desejos acabam se conectando com “imagens primordiais” que não se explicavam unicamente pela transmissão cultural ou educação. São como pontos nodais de um inconsciente coletivo que atrairiam energia, influenciando o funcionamento do indivíduo. São “arquétipos”, símbolos do inconsciente coletivo, no sentido dado por Carl Jung.
Por isso os sonhos são sismógrafos do que está ocorrendo no presente... ou, quem sabe, que acontecerá no futuro.



Por exemplo, em 1936 o psicanalista Jung começou a perceber um fenômeno onírico que parecia anteceder momentos de turbulência, como a guerra: conteúdos que exprimiam crueldade, brutalidade e violência. A recorrência desses temas levava a crer que não eram puramente de caráter pessoal, mas coletivo. Os delírios apareciam nos sonhos dos pacientes e nos próprios sonhos de Jung.
No momento da ascensão do nazismo, o que Jung viu nos sonhos dos seus pacientes (e nele próprio) foram forças inconscientes que personificariam o deus Wotan: “deus da tormenta e da efervescência, desencadeador das paixões e das lutas e, além disso, mago poderoso e artista das ilusões, ligado a todos os segredos da natureza oculta" (JUNG, Carl G., Aspectos do drama contemporâneo, Petrópolis, Vozes, p.5).


Sonhos da ascensão de Hitler

Entre 1933 e 1939 a pesquisadora berlinense Charlotte Beradt documentou o material onírico dos alemães durante a ascensão de Hitler até o início da Segunda Guerra no seu livro “Os Sonhos do Terceiro Reich”. Nele, documenta como o regime totalitário se infiltrou no inconsciente de uma nação. Sonhos com simbolismos que expressavam morte, persecução, paranoia, perseguição, tortura etc. eram recorrentes nas 300 entrevistas, feitas pela jornalista, de berlinenses das mais variadas camadas sociais – leia BERADT, Charlotte, Os Sonhos do Terceiro Reich, São Paulo: Três Estrelas, 2007. 
O resultado foi um painel onírico sobre os efeitos de um regime de terror sobre a psique dos cidadãos de um país.
Psicanalistas, terapeutas, médicos neurologistas e especialistas do sono chegaram a um consenso: no grave momento atual de quarente forçada em que estamos vivendo na crise provocada pela pandemia global do novo coronavírus, muitos relatam sobre sonhos malucos, noites mal dormidas com pesadelos ou insônia. Uma alteração geral da qualidade do sono e do conteúdo dos sonhos são cada vez mais comuns.
“Cada pessoa reage de uma forma”, explica Gustavo Moreira, médico pesquisador do Instituto do Sono de São Paulo.  “Algumas pessoas negam o perigo, outras ficam amedrontadas e se enclausuram, outras aproveitam a mudança para repensar planos de vida. Neste cenário de emoções, há uma predisposição para o aparecimento de sonhos, pesadelos e despertares noturnos frequentes.”


Inventário dos Sonhos

Em São Paulo, por exemplo, um grupo de três psicanalistas e pesquisadores criou o “Inventário de Sonhos”, plataforma que recolhe relatos de sonhos tidos a partir do início de março, para estudos futuros sobre psicanálise e saúde mental. Também se espalhou mundo afora a hashtag #pandemicdreams (sonhos pandêmicos), um verdadeiro repositório de breves narrativas oníricas de toda ordem. Mas, além de fornecer material a estudiosos, podemos tirar algo dos sonhos para nossas vidas? A resposta é sim.
"Uma das coisas que estão acontecendo hoje é que as pessoas estão sonhando muito", afirma Paulo Endo, psicanalista e livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) e um dos pesquisadores do “Inventário dos Sonhos”. "Tem coisas que estamos vivendo, e que já estão aparecendo no mundo inteiro, que é o que aparece em cenários de ditadura, totalitarismo ou guerra, quando as pessoas não podem acessar os elementos básicos, materiais, sociais e públicos para elaborar a morte do seu morto", explica o psicanalista.

O inventário de sonhos do Cinegnose

Em postagem anterior sobre o massacre na escola pública da cidade de Suzano (SP), ocorrido em março do ano passado, este Cinegnose já apontava a necessidade de descobrirmos quais seriam os símbolos recorrentes nos sonhos dos brasileiros desde que o psiquismo nacional foi envenenado pelo ódio e polarização política açodado pela grande mídia. 


Principalmente, porque o massacre de Suzano era mais uma tragédia num crescendo de eventos como o rompimento da barragem de Brumadinho e o incêndio no alojamento de atletas da base do Flamengo que matou dez jogadores.
Foi pensando nisso que esse humilde blogueiro se propôs a fazer uma enquete, com pequenas entrevistas num universo de 20 pessoas, sobre relatos do último sonho mais lembrado nesses últimos dias. Claro, sem nenhuma validade científica por amostragem ou algo parecido.
Minha principal curiosidade era se seria possível encontrar algum tipo de recorrência nesse pequeno universo relatos oníricos: temática, iconográfica, situacional etc. 
Em outras palavras, se é verdade que os sonhos são sismógrafos de um determinado momento histórico ou social, a recorrência seria o principal indício dessa dinâmica dos sonhos. O ponto de partida para uma posterior pesquisa mais aprofundada, dessa vez de caráter científico.

(a) Invasão e vulnerabilidade: o teto sumiu!

O primeiro tema recorrente é o da “invasão” ou “vulnerabilidade” do próprio lar, que coincide com um dos sonhos recorrentes do livro “Os Sonhos do Terceiro Reich”: o tema da “casa sem paredes”. Lá na Alemanha as narrativas oníricas expressavam o temor dos olhos da SS invadirem a privacidade do lar.
Aqui, temos relatos nos sonhos de chuva que entra em cômodos que, de repente, ficaram sem teto na própria casa em que mora o sonhador. Ou o relato de que tenta se esconder, junto com os filhos debaixo de uma mesa, na sua casa que está sendo invadida por uma mulher armada que quer matar todos... mas no mundo da vigília, ela é uma das suas melhores amigas...
O Estado totalitário (o Big Brother) é substituído pela ameaça viral que pode ultrapassar paredes, portas e tetos. O lar deixa de ser um lugar seguro.


(b) Água e sentimento de culpa

O segundo tema é a presença do elemento água principalmente em duas formas: mar com correntezas perigosas e a chuva que invade o lar ou que compõe um cenário sombrio. 
Água é um arquétipo da fonte da vida, purificação e regenerescência. Mas sua, por assim dizer, sombra são as borrascas, inundações, dilúvios que tudo engole ou destrói. Nesse caso se comporta como poder maléfico que pune os pecadores. Uma imagem bíblica de culpa e punição divina.
A recorrência do elemento água nos sonhos expressaria um sentimento de culpa. Seria culpa por não estar, de alguma maneira, respeitando os critérios de quarentena e isolamento social? 
Como aponta o psicanalista Paulo Endo “Hoje, há uma unanimidade dos perigos que corremos e, por outro lado, a liderança nacional fala o contrário". As mensagens transmitidas pela grande mídia são contraditórias: de um lado, o perigo mortal da pandemia. Do outro, um presidente que simplesmente ignora tudo – e suas imagens e falas negacionistas são, apesar de tudo, insistentemente repetidas e repercutidas pelo jornalismo corporativo. Criando um cenário semiótico contraditório confuso.


(c) Monstros midiáticos

Uma terceira recorrência do nosso pequeno inventário dos sonhos é a invasão de monstros na narrativa onírica: gatos zumbis que querem nos morder e contaminar; uma mulher relata que está num barco com um morto que volta à vida como um zumbi; uma criança descreve que está num cinema de cuja tela pula um monstro exigindo uma vida humana em sacrifício e que veio para “criar um trauma futuro” (expressão repleta de significados, principalmente dito por uma criança de 11 anos); em outro relato, da tela de uma TV emergiu um monstro que quer pegá-lo, fazendo o sonhador despertar.
No simbolismo psíquico clássico, monstros são, ao mesmo tempo, uma exaltação desejosa e a inibição amedrontada. E sempre emergem de cavidades e antros sombrios.
Mas nesses relatos os monstros aparecem à luz do dia (pessoas na fila do supermercado que de repente viram zumbis) ou pulam de dispositivos midiáticos – tela do cinema e da TV.
O monstro aparece como o desordenado, o caos, o destituído de proporções, que sempre evoca a existência de uma ordem anterior que acabou.
Duas coisas chamam a atenção nessa recorrência: (a) o sentido midiático desses monstros – zumbis e originados não mais de cavidades escuras, mas das telas luminosas das mídias; (b) como expressões da fatalidade irracional da pandemia COVID-19. Pelo menos assim descreve o jornalismo corporativo: como uma fatalidade histórica (“o maior desafio da nossa geração”, slogan repetido por muitos jornalistas) diante da qual temos que resistir e ter esperanças.
A grande mídia (ou o “jornalismo no álcool em gel”, como costuma definir esse Cinegnose) se exime de investigar quaisquer motivos sociais, econômicos ou políticos. Prefere o viés da fatalidade biológica, que unificaria uma sociedade desigual diante de um inimigo comum – o “monstro”.
Ignoram que o aumento da letalidade do COVID-19 não está na inescrutável dinâmica do mundo dos micro-organismos. Mas está em razões bem lógicas ou perversamente racionais: no desmonte dos serviços públicos de saúde em nome da privatização e financeirização de um direito universal. Feitas num passado recente pelas mesmas autoridades políticas ou sanitárias que agora surgem na mídia como líderes, cobrando da população sacrifícios.
Será que esses monstros que assaltam muitos sonhos da quarentena expressam esse terror da fatalidade imposta por inimigos invisíveis?


Sonhos coletivos

Esse pequeno inventário a partir de uma rápida enquete feita para os propósitos dessa postagem logicamente apresenta características bem brasileiras – aspectos simbólicos associados à especificidades políticas e midiáticas na maneira como o País vivencia uma pandemia global.
Para a psicóloga da Universidade de Harvard, Deirdre Barrett, que está pesquisando o conteúdo onírico de sonhos de 2.400 pessoas em todo o mundo, “raramente a humanidade experimentou ‘sonhos coletivos’ em uma escala tão ampla na História registrada” – clique aqui
Certamente, porque nunca foi tão possível compartilhar pesadelos em tempo real como hoje através das tecnologias de convergência digital. “O número psicológico é espantoso, principalmente para os profissionais da saúde que mostra semelhança com os veteranos de combate e dos correspondentes dos atentados de 11 de setembro”, afirma a pesquisadora.
Os sonhos também estão expondo o que mais nos incomoda na pandemia. Os temas parecem universais.
Os sonhos de um lugar seguro, subitamente tomado pelo vírus, falam da aterrorizante invisibilidade do contágio, diz Cathy Caruth, professora da Universidade Cornell, que estuda trauma há 30 anos. Os sonhos pandêmicos, ela diz, lembram a experiência dos sobreviventes de Hiroshima, preocupados com a exposição invisível à radiação, e também com alguns pesadelos descritos por veteranos do Vietnã.


"Eles parecem ser em parte sobre coisas difíceis de entender, o que significa que qualquer um pode ser uma ameaça e você pode ser uma ameaça para todos", disse Caruth.
Nos relatos de sonhos pesquisados, está o de uma barista de 24 anos que está desempregada devido à pandemia e ficou assustada quando as autoridades anunciaram a primeira morte do COVID-19 em seu condado no Texas.
Alguns dias depois, ela sonhou que ela e seu namorado estavam na fila para entrar em um armazém escuro de metal onde estavam sendo injetados nas pessoas cepas do novo coronavírus por funcionários do governo. As luzes fluorescentes no estacionamento lançavam um brilho assustador enquanto ela observava seu parceiro tirar a foto e ofegar. Então ela recebeu também uma injeção.
Na província de Punjab, no Paquistão, uma professora de literatura da faculdade descreveu um sonho em que ela era uma das únicas 100 pessoas restantes no planeta que não tinham o COVID-19. A população infectada ganhou controle político e perseguia os não infectados "para que o mundo se tornasse o mesmo para todos", disse Roha Rafiq, 28 anos.
Segundo Barrett, muitas pessoas sonham que estão doentes com o COVID-19 ou que são superadas pelo que parecem metáforas do vírus: enxames de insetos, vermes rastejantes, bruxas, gafanhotos com presas. Outros sonham em estar em locais públicos lotados sem máscara ou distanciamento social adequados.
Outros ainda sonham em perder o controle. Em um desses sonhos, a sonhadora foi detida por pessoas infectadas que tossiram nela. Em outro, o sonhador encontrou bandos de pessoas atirando em estranhos aleatórios.


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