Marcinho é despertado pelos amigos. Ainda zonzo ouve péssimas notícias: João Doria é governador, Luciano Huck será candidato a presidente e o atual é Bolsonaro... “Como assim! Aquele do CQC e Super Pop?”. Não! Não estamos na atualidade. Estamos em 2014, e tudo não passou de uma pegadinha para assustar o amigo de ressaca. No dia do fatídico 7x1 da Alemanha... Esse vídeo impagável da trupe de humor “Porta dos Fundos” provoca uma discussão sobre a expressão que cada vez mais aparece na mídia: o chamado “novo normal” – coisas que anteriormente seriam consideradas anormais que depois tornam-se normais, aceitas pelas condições adversas. Expressão de reengenharia social, plantada na mídia como forma de criar resignação numa situação totalmente bizarra: personagens canastrões, promovidos por programas de entretenimento, viram personagens políticos na crise COVID-19. Mecanismo psicológico de amnésia social. E o sincrônico 7X1 da Alemanha foi o gatilho que desencadeou a sucessão de eventos que nos levou ao “novo normal”.
“Novo normal” é a expressão que mais se ouve nos meios de comunicação, tanto em analistas políticos de telejornais, matérias jornalísticas e até vídeos publicitários. Parece que a expressão “vamos sair dessa” (esperançosa e motivadora) pouco a pouco é substituída pela resignada “novo normal” como consequência principal da pandemia COVID-19.
Mesas de restaurantes que terão que rever disposição de mesas e ambientes, a descoberta de que o futuro pode ser antecipado com a integração digital total entre empresas/ consumidores, empresas/empregados por delivery e home office; redução de viagens; reorganização de escolas e faculdades com a fusão do EAD com ensino presencial; e reinvenção total do cotidiano: transporte público, aglomerações etc.
É derivado da expressão “new normal” que se referia às condições posteriores ao crash financeiro 2007-2008 – termo que passou a ser usado em variados contextos para designar uma coisa que anteriormente era considerada anormal para tornar-se uma normalidade forçosamente aceita pelas condições adversas.
É curioso que essa expressão, surgida após o “day after” do crash de 2008, ressurja com força midiática na atual crise do COVID-19: como será o mundo após a pandemia?
Esse Cinegnose já discutiu bastante as conexões ocultas entre o crash de 2008 e a atual pandemia – ela surge num ano que inevitavelmente ocorreria um novo crash de proporções mais catastróficas do que há 12 anos – clique aqui e aqui.
Talvez não seja mera coincidência: essa expressão “novo normal” tem um sabor amargo de reengenharia social – como fazer grande massas e países inteiros aceitarem uma nova reorganização econômica, política e social.
O Vídeo
O vídeo da trupe de humor Porta dos Fundos provoca essa discussão: como aquilo que há poucos anos era uma anormalidade risível, bizarra e impensável, em pouco tempo passou a ser “normal”. E esquecemos o quanto achávamos tudo absurdo e impossível de acontecer - veja o vídeo abaixo.
Um homem chamado Marcinho é despertado pelos seus amigos que invadem o seu quarto para lhes dar notícias nada boas. O pobre homem que foi acordado está de ressaca e ainda zonzo.
Parece que despertou em alguma realidade alternativa ou acordou anos à frente no futuro – um futuro que tem João Doria Jr como governador de São Paulo – “Quem? Aquele da TV? Aquele Amaury Jr com sérias restrições orçamentárias? Caralho! Vocês estão de sacanagem!!!!”.
“E o deputado é o Alexandre Frota!”... “Quem, o ator pornô????”, pergunta bestificado. “Acho que ele vai apoiar o Huck nas próximas eleições... ele deve vir presidente nas próximas eleições...”.
“Contra quem? O Aécio, Lula?”. “Não, Bolsonaro, ele é o nosso atual presidente...” respondem os amigos acabrunhados.
“Bolsonaro!!! Aquele do CQC, do Super Pop?”, pergunta cada vez atônito.
“A Regina Duarte é até ministra dele...”, ouve incrédulo o pobre homem que pensa ter acordado num futuro distópico.
Seus amigos se entreolham e explodem em risadas... era tudo brincadeira... Eles estão na verdade em 2014. Uma pegadinha para acordar o amigo de ressaca para irem logo assistir ao jogo Brasil e Alemanha.
“Qual vai ser o placar?... 7 a 1 Brasil, porra!... É Brasil, porra!”, explodem em gargalhadas, diante do aliviado amigo em saber que está tudo NORMAL.
A canastrice do “Novo Normal”
A grande ironia desse pequeno esquete é relembrar o “normal” de 2014: ninguém sequer poderia imaginar uma goleada da Alemanha sobre o Brasil, uma seleção pentacampeã que jogava a Copa do Mundo em casa.
Assim como, qualquer um que dissesse que personagens do mundo das subcelebridades midiáticas como o “rei do camarote” Doria Jr., um ator pornô de bate-bocas em programas de auditório da TV como Alexandre Frota, o “doidão polêmico” da TV Jair Bolsonaro, a “namoradinha do Brasil” Regina Duarte ou o “fazendeiro de bundas” (como chamava Arnaldo Jabor) Luciano Huck se transformariam em governador, deputado, presidente secretária de Estado ou aspirante a presidente, seria olhado com desdém e um sorriso de deboche.
Hoje, integram o novo normal. Numa espécie de processo coletivo de amnésia social, foram esquecidas as sensações de anomalia e estranhamento de um passado recente.
Todos eles são caricaturas de caricaturas, overacting – personagens vazios, esteticamente bregas e levados por um tatibitate cognitivo. Em síntese: canastrões. A canastrice na política como fator de mobilização política, liderança e sedução de corações e mentes e ainda pouco considerado na Ciência Política.
Por exemplo, acompanhar Bolsonaro em programas como “Super Pop” da Luciana Gimenez ou no programa Raul Gil, polemizando com alguma subcelebridade gay de plantão e respondendo a perguntas “polêmicas” de luminares como Sonia Abrão, arrancava risos de indiferença das cabeças bem pensantes e risos de entretenimento do povão.
Dentro do auge do período da guerra híbrida brasileira (2013-2016) foi uma espécie de bomba semiótica de efeito retardado: a presença constante em programas de entretenimento ou híbridos (“CQC”) o sacava do baixo clero do Congresso para o cotidiano midiático dos espectadores.
Riso e hiper-realidade
Do riso que Hitler provocava ao emular as pantomimas do cinema mudo slapstick à expressão “for the lulz” (a zoeira niilista a cada “raid” ou trolagem de extrema-direita em redes sociais), o riso emerge como inédita força subliminar na política – que, entre outras coisas, o filósofo Walter Benjamin conceituava como “estetização da política”.
Theodor Adorno falava que “todo riso está próximo do horror que o origina”. O filósofo alemão estava bem ciente do papel do riso e do humor na ascensão do nazi-fascismo – naturalizou a canastrice de Hitler e transformou-o no “novo normal”: de figura ridicularizada tornou-se líder que tocou a flauta que levou toda uma nação ao abismo.
Isso fica claro na declaração de Monica Iozzi, uma das repórteres do programa híbrido de jornalismo e humor “CQC”, que fez a mea culpa pelo programa ter popularizado a figura de Bolsonaro. Ela justifica:
“Hoje eu fico pensando, a gente do CQC teve um papel principal assim, coisa que eu me arrependo, porque a gente sem querer... Ele era um cara tão ignorante, tão patético, sem nenhum tipo de competência e com valores morais tão deturpados que para nós ele era um personagem tão bizarro que era engraçado e a gente não tinha ideia que boa parte da população se identificaria com um ser humano tão vil assim” – clique aqui.
O vídeo da trupe do Porta dos Fundos faz um desfile de nomes que começaram na ficção midiática e se transformaram em personagens da “realidade” política: João Doria Jr, Regina Duarte, Alexandre Frota, Luciano Huck e, por que não, o próprio Bolsonaro – do quase anônimo baixo clero, surgiu para a opinião pública através de programas televisivos de entretenimento.
Como este Cinegnose vem discutindo em postagens anteriores sobre o conceito de canastrice na política, não se trata apenas de notoriedade através da exposição midiática. Trata-se de um fenômeno mais profundo, de inversão da percepção dos próprios cidadãos em relação à Política – clique aqui.
A canastrice na política está intimamente ligada ao fenômeno da hiper-realidade: a maneira pela qual personagens do mundo cotidiano (do CEO ou executivo de uma empresa a políticos, presidentes e ministros) refletem a ficção midiática. E eleitores e opinião pública, acostumados com os simulacros televisivos e fílmicos, os veem como verossímeis e críveis quanto mais se assemelharem aos personagens da ficção.
Em outras palavras: não mais conseguimos enxergar a realidade. Percebemos a realidade a partir de simulacros que foram feitos anteriormente da própria realidade. Por exemplo, Bolsonaro e Doria Jr são o “novo normal” porque são dos memes vivos: respectivamente, “Thug Life” e o “Rei do Camarote”. Sua aceitação como fenômeno político verossímil (seja para o bem ou para o mal) decorre da similaridade com ícones compartilhados em mídias sociais.
Assim como Hitler emulava os filmes slapstick ou o velho Jânio Quadros replicava involuntariamente o humor físico de Jacques Tati.
O 7X1 sincrônico
E o vídeo termina com uma provocação: o ato inaugural de todas essas anomalias que viriam, não poderia deixar de ser, foi o 7X1 imposto pela Alemanha contra o Brasil na Copa do Mundo de 2014.
Evento sincrônico (e, por isso, até hoje suspeitíssimo – clique aqui) à guerra híbrida iniciada principalmente a partir das “Jornadas de Junho” de 2013, engatada ao movimento “Não Vai Ter Copa” com desdobramentos nos próprios estádios dos jogos, como o hino nacional cantado a capela (estimulado como forma simbólica de demonstração de “patriotismo” num momento de “crise” política e econômica) enquanto ouviam-se xingamentos contra a presidenta Dilma Rousseff.
Convenientemente (muito conveniente!), os 7X1 foi a comprovação inconteste de uma percepção reinante de que o País se aproximava inexoravelmente da catástrofe. E a seleção da Alemanha o verdugo.
E de fato chegamos ao fundo do abismo, somente que de forma irônica: a instituição do “novo normal” com Bolsonaro, João Doria Jr, Alexandre Frota e companhia.
Numa espécie de neoplatonismo invertido, o Mundo das Formas (ou dos Memes) invadiram a caverna e se materializaram diante das paredes.
Russel Jacoby |
Amnésia Social
O fato é que essa reengenharia da percepção do “novo normal” parece operar através do mecanismo de esquecimento coletivo detalhado por Russel Jacoby no seu livro “Amnésia Social” (1977, Zahar – clique aqui) – o resultado da “repressão forçada” de memórias, das circunstâncias mutáveis ou dos interesses resultantes das mudanças.
Segundo ele, a perda da memória não é apenas explicada psicologicamente. Ela é social – a memória é apagada pela dinâmica política e econômica da sociedade, numa dinâmica parecida com a do conceito marxista de “reficação” – uma ilusão produzida objetivamente pela sociedade. Preserva o status quo ao apresentar o homem e suas relações não como sociais (políticas) mas como naturais (e, portanto, imutáveis) como relações entre coisas.
Trazendo para o tema dessa postagem (a ironia do “novo normal” atual visto pelo ponto de vista de 2014), a canastrice é aceita como um fenômeno fatal, natural e imutável.
Tão natural que, de repente, a presença de um youtuber (ou “digital influencer”) como Felipe Neto no programa Roda Viva da TV Cultura foi saudado como um fato político de relevância – o “novo normal” é a fraqueza da política e, principalmente, da esquerda que vê nele uma arma importante para combater o fascismo.
Assim como a reengenharia social que se abre nessa janela de oportunidades da crise da pandemia COVID-19: a oportunidade da biopolítica (controle e monitoramento de grandes multidões, o “sonho erótico totalitário” – como afirma Slajov Zizek) e da necropolítica – controle populacional e medidas eugenistas de eliminação do excedente populacional, racial, étnico e “sanitário”: a eliminação dos menos capazes: velhos e doentes.
O que significa, então, a tomada do Ministério da Saúde pelos militares senão a colocação em prática dessa agenda necropolítica? E mais sinistro, a criação de uma “teleconsulta” de apoio PSIQUIÁTRICO e PSICOLÓGICO para profissionais do SUS (clique aqui) – o que quer dizer que “o bicho vai pegar” e o SUS terá que decidir quem vive e quem morre. Claro, por critérios “espontaneamente” eugenistas: velhos e mais fracos na frente...
Russel Jacoby afirmava que a história da Filosofia é a história do esquecimento... também pode ser dito o mesmo em relação a opinião pública.
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