Nos agora longínquos anos 1990 surgia a World Wide Web, sob a promessa de que seria uma gigantesca biblioteca universal e que promoveria a “inteligência coletiva”. Isso tudo ficou para trás, quando a WWW se impôs como uma nova sociedade mediada tecnologicamente, isolando os indivíduos absorvidos pelas telas dos seus dispositivos móveis. Porém, uma pandemia global de gripe ameaça destruir a humanidade, confinando ganhadores de uma loteria mundial promovida pela OMS em bunkers subterrâneos. Sobreviventes, unicamente conectados por câmeras e telas numa nova Internet pós-apocalíptica. Uma situação que ironicamente põe em prática o isolamento tecnológico que já existia no mundo da superfície. Esse é o filme independente “Domain” (2016) que, assistido no momento atual em que estamos sob a urgência sanitária do isolamento social, ganha novos significados.
A ironia de toda essa crise sócio-econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus é o isolamento social compulsório como medida sanitária emergencial que parece somente confirmar aquilo que as tecnologias de convergência já realizaram: os isolamentos presenciais (o efeito de dupla tela com os olhos fixos nos celulares, mesmo quando estamos em grupos com amigos e familiares) e o efeito bolha na Internet e nas mídias sociais – criado pelos algoritmos que criam para nós um mundo solipsista.
Uma pandemia em escala global nos encontra num estágio tecnológico que convenientemente auxilia a implementação de drásticas medidas sanitárias: o lockdown, uma espécie de circuit braker social.
Essa ironia é explorada pelo filme Domain (2016), um thriller de ficção científica independente que empresta temas do clássico gnóstico Show de Truman com uma estética distópica: se um novo vírus de uma gripe mortal destruir o planeta e os sobreviventes terminarem em bunkers subterrâneos, cada qual isolado, unicamente conectado com os outros por uma espécie de Skype, ela não terminará bem.
Sobreviventes em isolamento social, mas conectados por uma rede chamada “The Domain”, a Internet pós-apocalipse, que revela todas as mazelas das redes sociais atuais: trolls, heaters, hackers, blocks etc. Um sistema de comunicação por vídeo intrabunkers que une grupos de somente sete indivíduos por vídeo e monitoramento comunitário.
Os grupos podem acessar estatísticas globais - por exemplo, em um ponto, descobrimos que 489.573 pessoas ainda estão em abrigos por cerca de sete anos na pandemia - mas não podem se comunicar diretamente com outros grupos. Em vez disso, os sobreviventes podem simplesmente interagir diretamente com outro membro de seus sete (enviando vídeo privado, salvando bate-papos antigos etc.) ou participar do bate-papo de sete anos (socializando e obtendo acesso às estatísticas de saúde um do outro).
Domain reproduz naqueles bunkers subterrâneos todas as disfunções da Internet, que um dia foi saudada como a grande biblioteca universal que promoveria inteligência coletiva: grupos fechados que formam bolhas virtuais e o fato de todos mentirem ao criarem o melhor perfil possível de si mesmo para os outros.
Todos mente. Ou será que a própria The Domain é uma mentira?
O Filme
O filme começa com os créditos iniciais, enquanto acompanhamos as narrações dos noticiários relatando a tragédia mundial criada por uma pandemia: a gripe saariana – um vírus mortal que está destruindo grande parte da humanidade.
Felizmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem um plano para salvar, pelo menos uma amostra, do que restará da humanidade. Qualquer pessoa que tenha sorte em sobreviver ao vírus e ser sorteada em uma espécie de loteria mundial, será selecionada ao isolamento no sistema de bunkers subterrâneos, enquanto na superfície o vírus permanece em curso.
Os bunkers foram construídos para durar 70 anos. Têm tecnologia para reciclar a água, manter a qualidade do ar e emular os ciclos do dia e da noite. Cada um possui apenas um único ser humano para impedir a propagação de qualquer doença. Os Possuem alimentos liofilizados (um tipo de shake altamente nutritivo) e consomem energia gerada apenas por uma única máquina – um dispositivo de exercício físico que gera energia enquanto o “hóspede” se exercita.
Domain acompanha um grupo diverso de sete pessoas. Cada membro se refere aos outros apenas pelo nome da sua cidade natal: Boston (um homem amante da paz, que é eleito líder desde o início – William Lee), Denver (afável e com experiência em hackear sistemas – Ryan Merriman), Phoenix (nossa personagem principal, uma mulher sempre tensa interpretada por Britt Lower ), Orlando (um homem branco sulista, racista, cínico e violento – Kevin Sizemore), Chicago (um homem negro, descolado e com um olhar sempre desconfiado – Cedric Sanders), Houston (um latino-punk – Nick Gomez) e Atlanta (uma mãe negra, um pouco mais velha, com uma trágica história envolvendo seus três pequenos filhos deixados na superfície – Sonja Sohn).
Depois de mais de seis anos conectados em vídeo, o grupo está começando a se cansar de Orlando, uma perfeita combinação de troll e hater – é sempre grosseiro, cutuca os pontos mais sensíveis de cada um e sempre adotará uma visão oposta a qualquer decisão majoritária do grupo.
A gota d’água é quando Orlando revela ter sido um criminoso e teria matado “de 15 a 20 pessoas” antes da pandemia. O líder Boston coloca em votação pelo banimento de Orlando do grupo, que decidem pela sua eliminação: o hacker Denver desativa o feed de vídeo, bloqueando Orlando definitivamente do grupo.
Logo depois, estranhas disfunções começam a ocorrer nos bunkers do grupo. Será que o hackeamento de Denver no sistema para bloquear Orlando criou algum desequilíbrio técnico no funcionamento? Será que os sistemas de sobrevivência falharão definitivamente, colocando todos em risco?
Por isso, Denver recupera o sistema, reconectando o bunker de Orlando. Mas, ele não está mais lá! Inexplicavelmente, Orlando desapareceu.
Domain e a pandemia atual
Domain constrói uma interessante configuração sobre a pandemia mundial e sociedades limitadas e em isolamento conectadas unicamente através de dispositivos de webconferência. O cenário é limitado e todas as conversas acompanhamos através das interfaces da rede The Domain. Mas apesar do limitado espaço de ação é o evidente baixo orçamento o filme se move com uma rapidez necessária (97 minutos) de um thriller, com suspense e reviravoltas sem que o espectador tenha um momento de pausa.
Domain é um filme com muitas ideias que não são limitadas pelo baixo orçamento. A principal delas: as consequências do isolamento social – metafórico (com mediações tecnológicas) e real (isolamento em bunkers pós-apocalípticos).
Lançado em 2016, a estória escrita e dirigida por Nathaniel Atcheson expressava uma crítica a uma sociedade mediada pelas tecnologias de comunicação e informação. Assistindo hoje, em meio a atual crise pandêmica COVID-19 que exigiu medidas drásticas de isolamento social, Domain passa a ganhar novos significados – a ironia de passarmos do isolamento no ciberespaço para o isolamento físico, dos corpos isolados cada qual nas suas residências como fossem bunkers de proteção.
E o ponto principal: essas tecnologias de mediação podem se tornar pior do que nós mesmos – a crise sanitária pode se transformar numa nova janela de oportunidades para o capitalismo: a normalização definitiva do distanciamento entre as pessoas quando trabalho, educação, entretenimento, arte e espetáculo passarem definitivamente a serem eventos que se realizam à distância.
A crise pandêmica talvez concretize o projeto que já estava latente no projeto da World Wide Web nos anos 1990: a reestruturação da esfera pública e da própria sociedade pelas gigantes tecnológicas.
Isso se chama reengenharia social.
Ficha Técnica
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Título: Domain
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Diretor: Nathaniel Atcheson
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Roteiro: Nathaniel Atcheson
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Elenco: Britt Lower, Ryan Merriman, William Lee, Sonja Sohn, Cedric Sunders, Nick Gomez, Kevin Sizemore
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Produção: M. Elizabeth Hughes
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Distribuição: Bitmax
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Ano: 2016
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País: EUA
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