terça-feira, agosto 03, 2010

Morte e Ressurreição em "Riverworld"

Apesar dos evidentes problemas de produção e roteiro, ao lidar com clássicos elementos da simbologia gnóstica Riverworld (piloto de uma possível série) torna-se um candidato a sucessor da série Lost. Morte/ressurreição é o tema central, acompanhado do simbolismo gnóstico de Sophia e na cisão cabala/alquimia na busca pela saída do pesadelo que representa o mundo de Riverworld.

Exibido pelo SciFi Channel, Riverworld é a adaptação, por Robert Hewitt Wolfe (Star Trek: Deep Space 9, Andromeda e The Dresden Files) de uma série de livros de ficção científica escritos por Phillip José Farmer. A história gira em torno de um jornalista fotográfico, Matt, e sua namorada Jessie. Após morrerem em um atentado terrorista numa casa noturna são transportados para o mundo misterioso de Riverworld, local para o qual as pessoas que já viveram na Terra são levados, em uma espécie de ressurreição.

Em Riverworld as pessoas acordam mais jovens e livres de qualquer doença ou problemas genéticos. Sem envelhecer, elas são capazes de se regenerar. Lá estão as almas de todos aqueles que um dia já passaram pela Terra em toda a História. Um lugar que é uma espécie de segunda chance ou talvez uma espécie de purgatório.

Em Riverworld encontramos desde anônimos até grandes personagens históricos que cruzam o caminho do protagonista Matt, tais como o escritor e romancista norte-americano Mark Twain ou o conquistador e explorador espanhol Francisco Pizarro. Ao despartarem nesse mundo (as pessoas acordam submersas e desorientadas num rio para emergirem e nadarem até às margens), veem-se, involuntariamente, no meio de uma guerra travada por dois grupos de seres: os chamados “Salvacionistas” que querem destruir aquele mundo e libertar todas as almas, e o outro grupo que quer manter o status quo. Com seus poderes, esses seres (com rostos azuis em trajes de monge) interferem no curso dos acontecimentos, criando uma espécie de jogo de xadrez.

Como afirma Jeff Kripal (professor de Estudos da Religião da Rice University, Houston Texas), os comic books e livros de ficção científica se tornaram os evangelhos pós-modernos do Gnosticismo (sobre isso clique aqui e leia "The Postmodern Gnosticism & Gnosis" do Aeon Byte Gnostic Radio).

Descontando os flagrantes problemas de roteiro e produção (produção de baixo orçamento, muitos diálogos clichês e desnecessários, narração em vários momentos arrastada etc.), a estória de Riverworld é repleta de clássicos elementos míticos do Gnosticismo.

Para começar, a natureza ambígua do local onde acontece a narrativa (Riverworld) é ambígua: será um purgatório de almas? Um outro planeta? Almas humanas aprisionadas por ETs? Ou um simples pesadelo coletivo? Essa ambiguidade dá à estória um caráter de fábula, uma fábula gnóstica sobre o homem aprisionado num cosmos, servindo de joguete numa batalha entre deuses que não o amam. Onde nem a morte é saída. Após morrer, quase que imediatamente é ressuscitado para retornar ao jogo.

Vemos, então, após a morte ou um suicídio desesperado de alguém (falam em “suicídio express”), uma vasta região onde corpos em estado de dormência são mantidos como que depositados (visual que lembra Matrix) para serem despertados pelos seres que governam Riverworld, de acordo com suas conveniências táticas no jogo.

Talvez esse seja o tema mítico gnóstico principal explorado pelo filme: a visão desesperançada da morte e da reencarnação. Como já discutimos em postagem anterior, o Gnosticismo vê a reencarnação como uma perversa estratégia do Demiurgo para manter a humanidade aprisionada num círculo infinito. Na morte/reencarnação não há evolução, aprendizado. Há esquecimento, condenado a recomeçar sempre do zero.

Mas em Riverworld, esse mito gnóstico da reencarnação como prisão é levado ao paroxismo e desespero. Sthephen King em um dos seus livros de suspense e terror dizia que o inferno é a repetição. Pois bem, é exatamente isso que temos no filme: não há, pelo menos, a ilusão de recomeçar, a esperança de um novo dia. Todos são ressuscitados para recomeçarem do ponto em que morreram. O jogo não tem fim.

No gnóstico filme de Alex Proyas, Cidade das Sombras (Dark City), esse mesmo tema foi explorado: ETs que aprisionam seres humanos em uma cidade fake para, a cada meia-noite, serem colocados em estado de dormência para que as identidades sejam trocadas, com o objetivo de encontrar a essência humana no transitório.

Na mitologia gnóstica, um personagem feminino é de vital importância na trajetória humana no cosmos hostil: Sophia. Um dos mais importantes aeons na mitologia gnóstica essa personagem é explorada nos filmes gnósticos em três aspectos: como aquela que decaiu sob o jugo do Demiurgo, como aquela que desperta no protagonista a necessidade da gnose e como aquela que, secretamente, doa seu amor e sabedoria aos homens ao contribuir com importantes padrões arquetípicos à Criação.

Em Riverworld a personagem Jessie é aquela que motiva Matt a seguir em frente e lutar naquele mundo estranho. A personagem cumpre os dois primeiros aspectos enumerados acima: ela cai sob o jugo do “vilão” Burton (torna-se sua namorada, após perder as esperanças de encontrar Matt), que quer, a todo custo, mandar pelos ares aquele mundo através de uma bomba com potencia nuclear. Mas a busca de Matt por Jessie é a chave para a compreensão da natureza daquele mundo. Simbolicamente, fará o protagonista ir ao encontro da “nascente” do rio cujas almas vivem aprisionadas às suas margens.

Por fim, a ambiguidade do personagem Burton. Aparentemente é o “vilão” (utiliza-se de métodos violentos para conseguir seu objetivo), mas, no final, ele pretende destruir aquele mundo para libertar todas as almas humanas aprisionadas. Explodir tudo por meio de uma espécie de bomba atômica não parece ser a melhor das soluções: ele, na verdade, pretende um “suicídio express” final, sem volta, rompendo com o inferno da repetição. É a proposta de um gnosticismo cabalístico: transcender a alma pela aniquilação da matéria, sem redimi-la.

Todo gnosticismo nutre um ódio pela matéria, ao vê-la como uma prisão criada pelo Demiurgo para aprisionar a Luz. Porém, a forma de trasncendê-la é controversa: de um lado o gnosticismo cabalístico (um atalho rápido para a fuga do espírito) e, do outro, o gnosticismo alquímico (a transcendência somente é possível após redimir a matéria, isto é, resgatar nela os elementos sagrados que auxiliem a gnose).

Riverworld, ao lidar com todos esses simbolismos gnósticos, lembra essa dicotomia cabala/alquimia ao opor os personagens Matt/Burton: o primeiro quer resgatar Jessie/Sophia daquele cosmos. O segundo, só quer mandar tudo pelos ares.

Ficha Técnica:
  • Filme: Riverworld
  • Diretor: Stuart Gillard
  • Escritor: Phillip Jose farmer (livro) e Robert Wolfe e Randall Badat (roteiro)
  • Gênero: Drama/Sci-Fi
  • Elenco: Tahmoh Penikett, Mark Deklin, Peter Wingfield, Jeananne Goossen.
  • Ano: 2010
  • Produção: Reunion Pictures, Riverworld Productions
  • Distribuição: SyFy TV
  • País: EUA

Trailer Riverworld


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sexta-feira, julho 30, 2010

Autor do Blog "Cinema Secreto" lançará dois livros: "O Caos Semiótico" e "Cinegnose"

Já está no prelo da Giz Editorial dois livros que lançarei no próximo mês: “O Caos Semiótico – Ensaios Críticos de Estudos da Comunicação” e “Cinegnose: a recorrência de elementos gnósticos na recente produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005)”.

O primeiro é um relançamento, atualizado e ampliado. Lançado em 1996 teve duas edições pela Editora Terra. Esgotado o livro, não houve tempo para uma terceira edição com o fechamento da Editora Terra lá pelos idos de começo desse novo século.

Bem conhecido entre meus alunos da Universidade Anhembi Morumbi, passou, então, a frequentar sebos reais e virtuais na Internet e diversas cópias digitais em PDF.

Pois bem, finalmente teremos um relançamento com uma versão atualizada e ampliada. . Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno”.

A novidade é o último ensaio do livro: “Tecnognose: do Vale do Silício à Hollywood”. Foi um artigo apresentado no II Simpósio Nacional da ABCIBER – Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura realizado em outubro de 2008 na PUC/SP. Esse trabalho foi o ponto de partida de um projeto desenvolvido no Mestrado em Cinema da Universidade Anhembi Morumbi sobre como o imaginário místico (ou gnóstico) por trás novas tecnologias computacionais vão contaminar a produção cinematográfica da recente produção norte-americana nos aspectos temáticos, narrativos, iconográfico e simbólico.


Cinegnose

O segundo livro, como dá para perceber pelo extenso título, só pode ser uma dissertação ou tese de pós-graduação. Trata-se do primeiro caso: "Cinegnose" é uma dissertação de Mestrado defendida na Pós em Comunicação Contemporânea (Análise de Imagem e Som) da Universidade Anhembi Morumbi-São Paulo no ano passado.

Nesse trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana recente (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados em narrativas míticas do Gnosticismo (conjunto de seitas sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos da era cristã).

Temos a frequência de temas como conspirações cósmicas, universos paralelos, amnésia e paranóia, além da ambivalente relação entre o sujeito e a realidade, consciência (especialmente alterada por estados de consciência iluminados) e revolta contra sistemas autoritários de controle. Filmes como Cidade das Sombras (Dark City, 1998), a Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998), Show de Truman (Truman Show, 1998), Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001), entre outros, apresentam uma idéia geral de que o mundo que percebemos é uma ilusão criada por alguém que não nos ama e que a chave para revelar a ilusão e descobrir a realidade reside numa forma de autoconhecimento ou iluminação. Uma pista para descobrirmos essa conexão entre gnosticismo e cinema passa pela discussão entre misticismo e imaginário tecnológico. Esse período da produção cinematográfica norte-americana refletiria um imaginário tecnológico que alguns autores definem como “gnosticismo tecnológico” ou “tecnognose”.

Aguarde nesse Blog mais notícias sobre datas de lançamentos.

quarta-feira, julho 28, 2010

Fórmula 1: a Transparência do Mal transmitida ao Vivo

Para além das críticas moralistas contra Felipe Massa e o "jogo de Equipe" da Ferrari, o que assistimos ao vivo pela TV no último GP é a parte mais transparente na natureza do desenvolvimento tecnológico: a Hipertelia, o momento em que a tecnologia, de tão obesa pelo desenvolvimento hipertrofiado, volta-se contra si mesma. É o princípio gnóstico do Mal, da ironica inversão de cada ação humana.

“Sem Vergonha”. Essa foi a síntese da reação da mídia em relação às ordens implícitas enviadas por rádio dos boxes da Ferrari para que Felipe Massa deixasse o piloto espanhol e companheiro de equipe Fernando Alonso ultrapassá-lo na 48o volta do GP da Alemanha de Fórmula 1. As críticas limitam-se ao moralismo, ou condenando Felipe Massa por se curvar contratualmente a exigência de ser o piloto “número 2” da equipe (e muito bem remunerado para isso!) ou acusando a Ferrari de atitude anti-esportiva e manipulação de resultado (já multada pela FIA em US$ 100 mil após o último GP).

E já não é a primeira vez que manipulações de resultados ocorrem na categoria de elite do automobilismo. É ainda recente na lembrança o acidente propositalmente provocado por Nelsinho Piquet no GP de Cingapura em 2008 para favorecer o então companheiro de equipe da Renault, Fernando Alonso.
Uma das características da crítica moralista é culpar unicamente a ação individual, como resultante de um mau juízo ou de valores condenáveis. Essa crítica esquece das tendências estruturais ou conjunturais que envolvem os indivíduos e de onde partem as motivações das ações.

Há algo de mais profundo na categoria mais tecnologizada do automobilismo, algo que envolve o sentido de uma tecnologia que hipertrofiada volta-se contra si mesmo. Desde à época de Alain Prost, assistimos ao fim de uma era onde o resultado das corridas eram resolvidos pelo “braço” e perícia do piloto. Telemetria, suspensão ativa, câmbio automático etc, fizeram, em meados dos anos 90, a categoria entrar em crise. De tão cara, a alta tecnologia ficou concentrada em uma ou duas equipes, acabando a competitividade. Ironicamente, a F1 teve que regredir tecnologicamente para subsistir alguma competitividade, mas o cenário pouco mudou. Os caríssimos investimentos exigem um campeonato “dirigido” com manipulações pontuais, seja nas mudanças de regras ou em atitudes desesperadas como essa do GP da Alemanha.

Partindo de reflexões gnósticas sobre a essência do Mal, o pensador Jean Baudrillard conseguiu localizar na tecnologia o princípio da “reversibilidade simbólica”, a irônica presença do Mal que torna esse cosmos imperfeito. Baudrillard propôs uma hipótese perturbadora: e se os sistemas tecnológicos estiverem caminhando para um vanish point, um ponto de inversão e entropia, ou seja, se eles estiverem num estágio de inversão da finalidade inicial (a do valor de uso da tecnologia, sua utilidade e funcionalidade), tendendo a um ponto de inércia, a um ponto zero? Esta é a tese é igualmente partilhada por Ciro Marcondes Filho .
"Acredita se que todos os processos desenvolvam-se¬ até um certo ponto e que, sendo este ultrapassado, perdem sua eficácia e tomam¬-se absolutamente disfuncionais. O desenvolvimento da ciência, que até um certo momento foi impulsionado por toda a sociedade, recebeu fortes investimentos da indústria, dos governos e instituições sociais, esse mesmo desenvolvimento passou, a partir desse ponto de disfunção, a ser prejudicial à sociedade, na medida em que pôs em risco sua estabilidade e mesmo sua existência”. (MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão. São Paulo, Scipione, 1995. p.58 9.)

Os sistemas tecnológicos tenderiam a um estado de obesidade, de excesso generalizado, até inviabilizar a finalidade original que os fez surgir. É aquilo que Baudrillard chama de hipertelia. A sofisticadíssima tecnologia automobilística da Fórmula 1 chega a um ponto que inviabiliza a competitividade e a sobrevivência da própria categoria esportiva. Poucas escuderias poderiam ter a tecnologia de ponta disponível para, no mínimo, serem competitivas. Resultado: foi obrigada a regredir sua tecnologia para os anos 70.
“Exxon: o governo americano pede à multinacional um informe global sobre todas as suas atividades no mundo. Resutado: doze volumes de mil páginas, cuja leitura, para não dizer a análise, ocuparia vários anos de trabalho. Onde está a informação? Aqui cão começa uma patafísica dos sistemas. Esta culminação lógica, esta escalada não se limita, por outro lado, a oferecer inconvenientes, ainda que seja uma catástrofe em câmera lenta” (BAUDRILLARD, Jean.Estrategias Fatales. Barcelona, Editorial Anagrama, 1984, p.11-2)

Esta reversibilidade irônica, patafísica (absurda) está por todos os setores cuja tecnologia se hipertrofia.

Na Guerra do Golfo em 1991, o mesmo pode se e dizer do avião invisível aos radares que, de tão sofisticado e caro aos cofres públicos dos EUA, poucas vezes levantou vôo. Ou os automóveis atuais, sofisticados, estáveis e velozes, vivem presos em congestionamentos. Resultado: os acessórios tomam conta das inovações tecnológicas, para que o motorista se sinta cada vez mais confortável nos engarrafamentos.

Ou ainda a infecção hospitalar que surge, ironicamente, no ambiente mais asséptico e controlado possível: a hipertrofia asséptica resulta no oposto, isto é, um ecossistema tão limpo que um vírus pode se propagar catastroficamente pela inexistência de barreira biológicas como, por exemplo, predadores.

O grau zero da informação televisiva: a expansão do número de canais em um aparelho de TV volta-se contra o próprio conteúdo. Diante de 300 canais, é impossível escolher qual assistir. Resultado: o efeito zapping, onde o divertido não assistir ao conteúdo, mas trocar compulsivamente de canais. A tecnologia televisiva volta-se contra o próprio valor de uso da informação.

A obsessão da tecnologia em expandir-se para alcançar funcionalidades e utilidades cada vez mais precisas, eficazes e de alto desempenho, resulta, ironicamente, na absoluta inutilidade. É a “transparência do Mal”. Tal como um acidente catastrófico de um trem-bala, a tecnologia bate de frente, em alta velocidade, com o princípio do Mal que governa o cosmos.

Voltando às críticas moralistas da mídia sobre a F1, não devemos esquecer que o sacrifício público de Felipe Massa é a parte mais visível da hipertelia de uma categoria que, de tão obesa tecnologicamente, aniquila qualquer possibilidade de jogo ou competição.

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quinta-feira, julho 22, 2010

"Bezerra de Menezes" surpreende ao romper com o Ciclo Vicioso do Sagrado e do Religioso na Mídia


"Bezerra de Menezes - Diário de um Espírito" (2008), produção cearense de Glauber Filho e Joe Pimentel, surpreende por ter sido um sucesso de público, mesmo distoando do chamado "padrão Globo Filmes". Em consequência o filme conseguiu romper com o ciclo vicioso onde, em nome do chamado "grande público", traduz-se temas do espiritismo e da religiosidade dentro dos clichês do ecumenismo da Auto-ajuda.  

Depois de assistir ao filme “Bezerra de Menezes – Diário de um Espírito” é impossível não ser tentado a fazer uma comparação com o filme “Chico Xavier” (2010). Primeiro vejamos as semelhanças: ambos os filmes tratam o tema Espiritismo e acabaram de tornando sucesso de público. E as semelhanças param por aí.

São dois filmes com o tema Espiritismo, mas com estéticas, condições de produção e, acima de tudo, diferenças brutais no tratamento do tema da religiosidade, sagrado e transcendência.


Para começar, o filme “Bezerra de Menezes” foi muito mal recebido pela crítica. A produção cearense de Glauber Filho e José Pimentel foi criticada por ter um “roteiro tosco”, narrativa “verborrágica”, de possuir uma estética que lembrava “as novelas da TV Bandeirantes nos anos 80”, de não “cativar” ou produzir “identificação” com o espectador e de simplesmente ignorar as recentes técnicas cinematográficas de edição, decupagem e montagem dos últimos 40 anos etc.

Ao contrário, "Chico Xavier" se vale plenamente desse apuro técnico, com uma narrativa “esperta”, clipada, com movimentos de grua, travellings e narrativa de criar suspense e identificação. Como discutimos em postagem anterior, a opção estética por um “padrão Globo de qualidade” (produção, atores e estética) determinou uma abordagem do fenômeno espírita de forma genérica e abstrata para atingir um grande público (fossem espíritas, ateus ou católicos). O resultado foi a redução da religiosidade e do sagrado ao mínimo denominador comum da religiosidade midiática: o ecumenismo pós-moderno, ou seja, uma religiosidade traçada pelo ideário da auto-ajuda e do autoconhecimento, aplicável a qualquer credo ou público.

Muito diferente disso, “Bezerra de Menezes” mantém a dignidade da doutrina espírita. Aborda os temas da reforma íntima e do afinco de Bezerra de Menezes na luta interior pela conversão ao Espiritismo sem despencar nos clichês do otimismo empreendedor da auto-ajuda. Pelo contrário, aborda conceitos mais especializados à doutrina como Lei de Ação e Reação, Animismo, concepção teológica do Kardecismo etc., particularizando a religiosidade Espírita, evitando cair no ecumenismo pós-moderno e generalizante de “Chico Xavier”. E, apesar dessa particularização, marcando as diferenças teológicas e doutrinárias do Espiritismo diante de outras formas de religiosidade, mesmo assim o filme foi um sucesso de público (Sim, há salvação fora do “padrão Globo de qualidade”!).

segunda-feira, julho 19, 2010

Iconolatria e Ecumenismo Pós-Moderno em "Chico Xavier"


Mais do que um filme que evita tratar o tema Espiritismo para um nicho de público especializado, "Chico Xavier" de Daniel Filho apresenta um sintoma do destino da religisiosidade e do sagrado na atualidade. Ao tratar o tema de forma comercial, para o grande público (ateus, católicos ou espíritas), reduz o Espiritismo ao mínimo denominador comum de toda religiosidade na indústria do entretenimento: iconolatria e um, por assim dizer, ecumenismo pós-moderno.

Depois da comédia de costumes, os olhos do cinema de massa do chamado período de “retomada” do cinema brasileiro volta-se para o Espiritismo e religiosidade. Depois do sucesso de “Bezerra de Menezes – Diário de um Espírito” de Glauber Filho e José Pimentel, Daniel Filho (no esteio de sucessos de bilheterias como “Se Eu Fosse Você”) explora esse recente filão temático do cinema brasileiro.

A primeira coisa que chama a atenção no filme “Chico Xavier” é o apuro técnico com muitos travellings e movimentos de grua com câmera, a decupagem “clipada” e inquieta, a narrativa marcada por sucessivos flash backs (o eixo da narrativa – o “tempo presente” – é a noite da histórica participação do protagonista no Programa “Pinga Fogo” da TV Tupi em 1971 que, de uma hora programada, acabou se estendendo para três). O resultado visual é a da fluidez e suavidade, ainda evidenciado na escolha da trilha com músicas atonais de Egberto Gismonti. Somada ao cast de atores da TV Globo, temos um filme com o chamado “padrão Globo de qualidade” em que a linguagem cinematográfica é absorvida pela televisiva: profusão de planos médios e fechados, evitar contrastes fortes e a fotografia em tons pastéis e muito iluminado. E, principalmente, a personalização da narrativa, sublinhada pelo predomínio dos primeiros planos.

É aqui que reside no filme Chico Xavier o sintoma de como a religiosidade e o sagrado são abordados na indústria do entretenimento: na iconificação do sagrado, e na dispersão da religiosidade numa espécie de, por assim dizer, “ecumenismo pós-moderno” onde o sentimento religioso e a filosofia doutrinária são retiradas do contexto original para ser filtrado pelo ideário do auto-conhecimento e da auto-ajuda.

Além disso, dois fatores adicionais devem ser considerados para entendermos a visão do espiritismo e da religiosidade passada pelo filme: o ateísmo do diretor Daniel Filho e o agnosticismo do ator Nelson Xavier (que representou Chico Xavier na velhice). Somada a proposta de um filme para todos os públicos, temos como resultado o seguinte: em vez de colocar em primeiro plano o espiritismo, o filme posiciona Chico Xavier como uma grande personalidade brasileira, que sofreu abusos de uma madrinha malvada e lutou para sobreviver à descrença, deixando um legado de paz e conforto para famílias que perderam entes queridos.

Uma “lição de vida” que representa o pragmatismo que é a base de todo ideário da auto-ajuda: pouco importa se Deus existe ou não. Se acreditar Nele lhe trás felicidade, então Ele existe. O filme filtra a vida de Chico Xavier pelo ideário da auto-ajuda ao reduzir toda doutrina e filosofia a conservadoras lições de vida que, no final, justificam a crueza do cotidiano. Mais do que estratégia comercial para buscar grandes bilheterias, é um sintoma do destino do sagrado e da religiosidade na indústria do entretenimento.

“Disciplina, Disciplina, Disciplina!”

Nas relações do indivíduo com a experiência do sagrado (do indivíduo com o abstrato ou o Todo), a iconolatria (adoração de imagens, estátuas etc.) é o aspecto regressivo da religiosidade. Ao reduzir a expressão da religiosidade a um ícone, passamos a ter uma relação fetichista com a imagem, reduzindo toda a expressividade ou doutrina a um personagem ou entidade aparentemente física e tangível.


Por exemplo, ao invés de entendermos o evangelho idolatramos compulsivamente a figura de Cristo na Cruz.

Indo para outro extremo, da mesma forma, toda a filosofia do comunismo é reduzida à idolatria da imagem de Che Guevara. O resultado da idolatria é a massificação do ícone: pessoas colocam aplicam a imagem de Che Guevara em camisas, pára-brisas de carros e baús de motos sem jamais terem lido uma linha sobre suas idéias. Apenas sabem que Che foi “um cara que lutou pelo que acreditava, assim como eu!”.

Esse mesmo processo de iconificação encontramos no filme “Chico Xavier”. Duas frases, uma dita pelo personagem Chico Xavier e outra pelo seu guia espiritual Emannuel (frases retiradas de contextos doutrinários e filosóficos da literatura espírita) demonstram isso: “Ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas qualquer um pode recomeçar e fazer um novo fim”, diz Chico Xavier; e “Disciplina, Disciplina, Disciplina!”, os três mandamentos proferidos por Emannuel para orientar a missão que Chico Xavier assumiria na sua vida.

Dessa forma o protagonista é transformado no campeão do ascetismo, da ética marcial da autodisciplina e da renúncia. A doutrina e filosofia espírita é reduzida, dessa maneira, ao mínimo denominador comum de toda a religiosidade. O sentido particular dessas frases é eliminado em nome de uma moral ecumênica de auto-ajuda: lute, pense positivo, acredite em você mesmo, seja forte e lute pelos seus ideais.

Teologia Secularizada em Chico Xavier

O filme coloca em confronto três personagens: os padres católicos, os ateus e os espíritas. Com isso, o filme contempla todos os públicos ao expor todos os pontos de vista em relação ao fenômeno mediúnico: Fraude? Simples manifestação do Demônio? Prova da existência da vida após a morte? Todos os pontos de vista são pragmaticamente sintetizados numa espécie de ecumenismo pós-moderno: não importa a crença, filosofia, doutrina ou ponto de vista. Todos devem se curvar aos fatos da vida onde, acima de tudo, rege a disciplina, o ascetismo e crer em si mesmo.

Como um ícone, Chico Xavier é transformado em “lição de vida” para todos: ateus, católicos e espíritas. Esse é o novo ecumenismo, aquele que reduz ou neutraliza a experiência do sagrado e da religiosidade à teologia secularizada da Auto-ajuda onde, tal como na Teologia Positiva, o indivíduo é liquidado em nome da Totalidade e da crueza da vida.

Ficha Técnica:
  • Diretor: Daniel Filho
  • Elenco: Nelson Xavier, Angelo Antonio, Tony Ramos, Letícia Sabatella
  • Gênero: Drama
  • Duração: 124 min
  • Ano: 2010
  • Distribuidora: Sony Pictures

sexta-feira, julho 16, 2010

"Para o Infinito e Além": a Gnose de Buzz Lightyear


A trilogia Toy Story explora uma rica simbologia sagrada cujas origens estão na antiguidade com a Teurgia e Alquimia que envolve a gnóstica relação com os simulacros humanos (bonecos e fantoches e, na modernidade, autômatos, replicantes e andróides). Porém, de forma ambígua onde a Gnosis é dominada pela Episteme.

Certa vez o Prof. Marcelo Tassara, em uma das aulas do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, falou sobre a habilidade das animações norte-americanas, voltadas para o público infantil, de tornar divertidos temas trágicos, pesados e adultos.

Desde Bambi (onde o protagonista perde a mãe de forma cruel) até Wall-E (ficção científica cínica e dark) as animações dos estúdios norte-americanos exercitam essa capacidade de fazer crianças rirem do cruel e do trágico.

A trilogia Toy Story não é diferente. Brinquedos desesperados em não perder o amor e a atenção do seu dono Andy (o mítico plot freudiano da relação da criança com a mãe na primeira infância), crianças sádicas que destroçam cruelmente brinquedos (outro plot freudiano, a crueldade infantil do drama edipiano ainda não resolvido) e um personagem, Buzz Lyghtyear, que acredita plenamente no script inserido nos seus chips pela indústria fabricante, a identidade de herói intergalático. Buzz não se acha um brinquedo, mas um herói dentro de uma narrativa espacial épica.

Até que, numa sequência rica em simbologias, Buzz vê a si mesmo (ou para mais um exemplar da sua série) numa propaganda na televisão, onde o fabricante anuncia o produto Buzz Lightyear com suas especificações, embalagem e as falas pré-programadas que Buzz repete como suas. Em destaque no comercial uma frase que decisivamente desconstrói Buzz: “esse produto não voa”. Perplexo, desiludido e impotente, mesmo assim Buzz tenta voar saltando do alto de uma escada para se esburrachar em seguida. Uma sequência triste, assim como a perda da inocência da infância, uma metalinguagem forçosa que toda criança terá que fazer ao descobrir que os scripts de seus jogos infantis estão contidos num mundo ainda maior e incompreensível.

Toy Story explora uma simbologia arquetípica dos bonecos e fantoches, isto é, a simbologia mística e sagrada dos simulacros humanos onde, na atualidade, temos a continuação com Replicantes, Ciborgues e personagens humanos híbridos. Uma simbologia essencialmente gnóstica onde o homem projeta, no seu simulacro, a sua própria condição de prisioneiro na realidade física criada por um Demiurgo ou Titereiro. Na cultura popular do século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus. Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil.

Teurgia e Alquimia

O fascínio humano por bonecos, fantoches (que, mais tarde, se tornariam brinquedos infantis) e demais simulacros humanos têm sua origem nos filósofos e sacerdotes Helenísticos. Platão falava em um ser chamado Demiurgo, criador do mundo visível, personagem largamente usado na antiguidade para explicar a origem da alma humana a partir de uma forma Divina e Original: Anthropos. Do Mundo das Formas Anthropos desceu ao mundo material, originando o homem.

Apesar de ser uma forma inferior, o ser humano teria dentro de si fagulhas divinas da sua origem (Anthropos). Portanto, objetivo da sua existência seria galgar os degraus que o façam retornar às suas origens divinas. Nós, humanos, não passaríamos de simulacros do Humano Primal, assim como o mundo dos nossos sentidos é um simulacro do Mundo das Formas. Através do autoconhecimento ou gnose poderíamos então retornar à Luz é à vida eterna possuída por Antropos, esse humano essencial.

A Teurgia surge no mundo helenístico como a primeira forma de alcançar isso através da manipulação da matéria onde, assim como o Demiurgo, podemos dar vida e alma a uma forma material e inferior. Se temos dentro de nós uma parte desse Anthropos, podemos retornar a ele exercendo as mesmas habilidades reservada aos deuses: imitatio dei por generatio animae, imitar Deus criando vida.


Para Victoria Nelson (“The Secret Life of Puppets”) essa é a origem secreta do fascínio atemporal por bonecos e fantoches ao longo da história. Para a autora, é na Alquimia que temos esse encontro decisisivo entre gnosis e epistemis, entre a ciência experimental e a prática religiosa através de sucessivas operações que reproduzem as etapas da criação do cosmos físico pelo Demiurgo até a redenção da matéria representado pela criação da “Pedra Filosofal” ou da “criança/homunculus” (“pequeno homem”, também chamado como “mannikin”).

Na modernidade, essas origens sagradas são relegadas ao mundo da infância e, na literatura e cinema, ao gênero do terror: Frankenstein, bonecos assassinos e fantoches que ganham vida própria e dominam seu criador, bonecos de vudu etc.

Na infantil fusão entre brinquedo e criança, onde a alma do objeto absorve as melhores qualidades do seu dono (ternura, bondade, coragem etc.) temos esse simbolismo atemporal da dimensão sagrada dos simulacros humanos. Se no mundo adulto a espisteme reprime a gnosis (a racionalidade supera o Sagrado), será na infância o último e transitório reduto dessa dimensão perdida.

Como vimos em postagem anterior, são nos jogos infantis que a criança ri do Mal (acaso, aleatório, acidente) presente no cosmos físico. Da mesma forma, a atualização da manipulação dos simulacros humanos na infância é a sobrevivência desses mitos teúrgicos e alquímicos da antiguidade. A fusão boneco/criança (a projeção na matéria inanimada das manifestações das partículas de Luz divina presentes em cada um de nós) repete, para a visão do adulto, de forma pueril e inconsequente, todo o drama mítico dos passos a serem galgados para a gnose.

Simulacros Humanos na Indústria do Entretenimento

Voltando à sequência em que Buzz Lightyear descobre-se como um briquedo, Toy Story explora e atualiza este fascínio gnóstico pelos simulacros humanos: assim como no Gnosticismo o ponto de partida da gnose é a descoberta que o mundo real não passa de um véu de ilusões, Buzz descobre que toda a sua existência não passava de um programa pré-fabricado pela indústria de brinquedos.

Mas há uma ambigüidade nessa gnose de Buzz Lightyear.

Sabemos que, desde Toy Story de 1995, os roteiros das animações dos Studios Wall Disney são orientados pelo chamado “Memorando de Vogler”: um memorando corporativo escrito por Christopher Vogler propondo uma estrutura de formulas para um roteiro de sucesso baseado nas idéias do historiador de mitos Joseph Campbell como solução para o estúdio superar os sucessivos fracassos das animações do estúdio nos anos 80. A partir daí originou-se o bem sucedido “Paradigma Disney” de roteiro baseado na arquetípica “Jornada do Herói”.

Mas apenas isso não sustenta uma estrutura-clichê de um produto de entretenimento. É necessário mais: conteúdos arquetípicos que falem fundo para a alma humana. Assim como a gnose de Buzz que trás o fascínio atemporal pelo drama de fantoches e bonecos que lutam pela liberdade (veja, por exemplo, em Blade Runner – 1982 – e Quero ser John Malkovich – 1999).

Na verdade uma gnose governada pela episteme (toda a tecnologia de produção de imagens digitais e a estrutura-clichê dos roteiros). Se na Teurgia e Alquimia Gnose e Episteme buscam o encontro, aqui na indústria do entretenimento temos a submissão da Gnose, do Sagrado e de toda dimensão mística à Episteme: a busca por resultados financeiros do estúdio, o cálculo científico das reações emotivas do público etc. Brinquedos que não são mais manufaturados pela criança, mas pela indústria do entretenimento que, tal qual o Drama de Buzz, impõe um script à fantasia infantil.

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segunda-feira, julho 12, 2010

Disney XD Freestyle Football: um projeto Tecnognóstico para o Futebol?

Um projeto tecnognóstico paira sobre o futebol. A vinheta do canal Disney XD que apresenta o futebol submetido a uma telemetria imaginária reflete um projeto regressivo que visa confinar o Jogo e o Lúdico no interior de uma tecnologia que pretende extirpar o Mal (o erro, a falha, o acaso) como uma fraqueza humana. É o que se esconde por trás de cada reivindicação por tecnologização do esporte a cada erro de arbitragem.

Enquanto digitava mais uma postagem para esse blog Cinema Secreto, meu filho assistia ao canal Disney XD. Dentre as várias vinhetas que recheiam os intervalos da programação (e como há intervalos em TV por assinatura!) uma chamou-me a atenção e parei de digitar. A vinheta se intitulava “Disney XD Freestyle Football”, alusiva ao evento da Copa do Mundo na África do Sul (assista ao vídeo no final dessa postagem).

No vídeo vemos um adolescente fazendo embaixadas e malabarismos com uma bola de futebol. Com recursos de edição clipada, o mesmo adolescente aparece sucessivamente em vários ambientes urbanos (campo de futebol society, quadra de esportes, interior de um depósito etc.) dando continuidade às suas manobras com a bola.

De repente, um recurso metalingüístico inspirado claramente nos games de computador: os movimentos do jogador são apresentados em slow motion e a trajetória da bola e o movimento do jogador são esquadrinhados por linhas geométricas como uma espécie de telemetria, apresentando os graus dos ângulos e curvaturas. A bola não cai uma vez, não há falhas, as linhas da telemetria mostram a perfeição dos movimentos. No último plano o jogador adolescente dá um forte chute para o alto, a bola sobe e a câmera acompanha o movimento mostrando, do alto, o jogador pulando com os punhos cerrados como um vencedor num estádio lotado e uma chuva de papéis picados.


Logicamente a destreza do adolescente é o resultado da montagem de sucessivos planos, dando uma ilusão de continuidade das ações. Mas para uma criança, ainda alheia aos recursos técnicos de edição e montagem de um vídeo, o efeito realista é evidentemente forte.

Mais do que a ilusão produzida pela edição e montagem, há algo mais profundo e significativo nesse vídeo. Uma mudança de paradigma para o futebol, refletindo uma tendência que envolve todas as mídias: a racionalização e neutralização do Mal.

Como já abordamos em postagens anteriores, do ponto de vista gnóstico o cosmos físico, desde o seu início, é constituído na sua essência pelo Mal. As manifestações dessa natureza ontológica do Mal estão no caos, aleatório, imperfeição, “reversibilidade simbólica” (Cf. Baudrillard: a Paz tende a Guerra, o Bem ao Mal, o movimento à entropia etc.), acidente.

Como afirmou Stephan Hoeller (no livro “Gnosticismo: a tradição oculta”), as descobertas científicas como a Teoria do Caos e da Incerteza no campo da Física comprovaram a desconfiança dos gnósticos em relação ao cosmos físico: o domínio da imperfeição e do Mal, uma espécie de ordem e simetria caótica e não-linear, onde cada ato resulta num efeito contrário em dimensões exponenciais.

Certamente é no Jogo, no Lúdico, na Fantasia e no Erotismo que essa natureza manifesta-se de forma clara. É nesses campos que experimentamos um prazer irônico e paradoxal: o prazer no erro, na falha. Explicando melhor, o prazer do jogo não está no desempenho maximizado que eliminasse todas as possibilidades de erros, resultando numa transparência total. Pelo contrário, o prazer está no percurso, no perigo, no inesperado que deve ser contornado, superado ou não.

Mas todo o complexo midiático ou a indústria do entretenimento se recusam a aceitar essa natureza não-linear do Jogo e do Lúdico. Racionalizam e neutralizam a presença do Mal através de ídolos que nunca falham, exímios craques em 100% do tempo.

"Princípio do Desempenho" e “Brancura Total”

Dois pensadores refletiram, cada um partindo de pressupostos diferentes, sobre essa tendência midiática: o alemão Hebert Marcuse e o francês Jean Baudrillard.
Partindo do referencial da chamada Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, Marcuse tematizava nos anos 60 a ideologia do “princípio do desempenho” que estava por trás da aparente liberação da sexualidade na cultura do capitalismo tardio. A sexualidade não estava sendo liberada a partir de seus próprios termos (fantasia, erotismo, jogo etc.), mas a partir de princípios do mundo do trabalho e da mercadoria: eficácia, eficiência, produtividade, resultado, lógica do mundo racional e da linearidade. O sexo hiperbolizado, maximizado, anabolizado (tamanho do pênis, o número de orgasmos alcançados, e assim por diante). Do campo do lúdico e do erótico o sexo salta para o campo do desempenho e da maximização lineares.

Jean Baudrillard parte de referenciais gnósticos cátaros e maniqueos (como explicitamente declarou em entrevistas próximas da sua morte) para denunciar a tendência da mídia em criar uma espécie de “brancura total”: um mundo des-simbolizado, sem erros, falhas, sujeira, desperdício. Através de uma progressiva tecnologização criar um mundo com total transparência, assepsia e limpeza. Denegar a “reversibilidade simbólica” onde cada ato produz o seu oposto: a transparência do Mal.

Um projeto tecnognóstico para o futebol?

Voltando à vinheta do Disney XD, temos inscrito nesse vídeo a aspiração da denegação do Mal no jogo: extrair do futebol seu aspecto mais lúdico (a falha, o erro, o acidente) por meio do imaginário tecnológico (linhas de uma telemetria imaginária). Futebol deixa o campo do lúdico para se inserir no desempenho e na “brancura total”.

Talvez esteja em andamento um projeto tecnognóstico (no sentido cabalístico e não alquímico – sobre essa distinção importante dentro do Gnosticismo veja os links abaixo) para o futebol. Os crescentes protestos da mídia especializada contras as “falhas” da arbitragem e a reivindicação por tecnologia no futebol (chips ou sensores na bola, arbitragens por vídeos etc.) certamente expressam essa tendência anti-lúdica para o esporte. A aspiração cabalística da Tecnognose em impor ao mundo disforme e caótico um código binário que imponha autoritariamente a ordem, linearidade, previsibilidade, num cosmos que, na sua essência é exatamente o oposto.

Mas o prazer de todo Jogo é o contrário: o prazer em burlar essa telemetria que o Demiurgo quer impor ao seu cosmos defeituoso e rir, ironicamente, de cada falha, de cada acidente. Ou, como fala o Coringa de Heath Ledger: “Por que tão sério?”.

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sábado, julho 10, 2010

No princípio era a crise: a ontologia do Mal no Filme Gnóstico

A estrutura narrativa do filme gnóstico simbolicamente representa o drama cósmico descrito pelas narrativas do Gnosticismo: Criação e Queda em um único Ato. Um cosmos corrompido desde o início da Criação, o Mal como elemento principal de um escript que aprisiona um protagonista exilado das suas verdadeiras origens espirituais.

Se um gnóstico escrevesse uma bíblia, seu primeiro versículo seria “e no princípio era a crise”. Já que no princípio era a Crise e não o Verbo, o mundo físico foi um produto terminal, em crise e declínio desde o seu início. Para o Gnosticismo, a criação do mundo já é Queda pela presença ontológica do Mal na sua própria constituição, existência e dinamismo. Identificar o Mal com a existência material não significa incorrer na concepção religiosa tradicional da oposição entre matéria/espírito, Verdade/Mentira, Bem/Mal etc., num dualismo onde a matéria é considerada moralmente má por ser a fonte do pecado e da decadência espiritual. Ao contrário, o Mal para o Gnosticismo tem uma concepção Ontológia e não moral, isto é, o Mal é a essência constitutiva do próprio cosmos físico. Isso significa que ele possui algo de corrompido e falso desde o início.

A principal narrativa mítica da gênese da Criação/Queda e a concepção do Emanacionismo: a criação do mundo físico veio por uma serie de desdobramentos de cima para baixo com gradações de carências e perdas. O eixo espacial desse movimento são as diversas esferas ou éons. Esse dinamismo afeta a própria divindade que do repouso da sua eterna pré-existência é atirada na História do mundo. Isso significa que o Demiurgo, ao tentar reproduzir a plenitude do Pleroma nas esferas inferiores, incorreu em sucessivas dispersões do “Um”, em constantes espelhamentos ou emanações sucessivas, numa cadeia de irradiações que vão enfraquecendo até resultar num cosmos falso ou mal na sua essência.

Duas conseqüências práticas resultam dessa condição ontológica do Mal:

Primeiro, do ponto de vista do gnosticismo cátaro do pensador francês Jean Baudrillard, o mundo é tomado por uma “reversibilidade simbólica”: cada ação resulta no seu oposto – a Paz na Guerra, a construção na destruição, a utilidade no desperdício, o Bem no Mal etc. Cada nascimento do novo resulta numa reversão, devolução.

Segundo: a absolvição da humanidade por ela não ser a culpada pelo estado de coisas. Nunca houve um pecado original, a não ser dentro da própria divindade demiúrgica que criou esse mundo. Portanto, a “salvação” não viria da renúncia de si mesmo, da negação do indivíduo como origem do pecado ou do Mal. Pelo contrário, através da Gnose buscar dentro de cada um de nós as partículas de Luz que se dispersaram com o caótico dinamismo da cadeia de emanações que criaram esse cosmos físico. Salvação é conhecimento daquilo que foi perdido. Conhecer é lembrar, a partir da conscientização de exilados que todos nós somos.

A presença do Mal no Filme Gnóstico

A narrativa do filme gnóstico vai representar simbolicamente essa narrativa mítica da gênese do Mal. Isso vai tornar o filme gnóstico estruturalmente distinto do filme tipicamente hollywoodiano ou “comercial”.

Qual a estrutura prototípica de um filme “hoolywoodiano” ou de um “produto de monopólio”? Quem nos dá essa resposta de uma forma sintética é o pesquisador alemão Dieter Prokop que identifica a seguinte elaboração da consciência do público na estrutura do “produto de monopólio”:


“Nos produtos de monopólio domina o esquema do questionamento e da reconstrução da ordem. Os valores vigentes são desrespeitados, atacados e novamente restaurados. É um jogo necessário da fantasia, pois repete-se todas as vezes na estrutura do produto e nas expectativas; é uma tentativa de tornar-se consciente do que custa o desvio das normas.” (PROKOP, Dieter, "Fascinação e Tédio na Comunicação: produtos de monopólio e consciência" IN: Dieter Prokop (Coleção Grandes Cientistas Sociais), Sâo Paulo: Ática, 1986, p. 178,



Temos nessa análise de Prokop a estrutura-clichê de “quebra-da-ordem-e-retorna-à-ordem”. O roteiro do filme começa apresentando um cosmos ordenado, com a vigência de normas e valores normais (primeiro ato: a família feliz, o grupo de amigos, a sociedade em sua rotina cotidiana etc.). Repentinamente temos a quebra da ordem com a irrupção do Mal (ponto de virada para o segundo ato onde o Mal se desdobrará: serial Killer, assaltante de bancos, terroristas, explosões, incêndios, assassinatos etc.). E finalmente a restauração da ordem original descrita no primeiro ato (o terceiro ato: o duelo final entre o Bem e o Mal, com a vitória dos personagens representantes do Bem e o retorno à ordem).

Esse é o significado profundo do chamado Paradigma Sydfield dos três atos de um típico roteiro cinematográfico.

Ao contrário, o filme gnóstico começa com a Crise, Queda, logo no Primeiro Ato: os protagonistas já se encontram numa situação inautêntica, corrompida, conspiratória. Sentem que há algo de errado, sensação de estranhamento, de não pertencer àquele mundo. Pressentem o Mal na própria realidade e não como resultante de pecados dos seus próprios atos.

Em Donnie Darko (2001), por exemplo, o filme começa com o protagonista acordando de um estado sonambúlico no meio de uma estrada com sua bicicleta ao lado. Como parou ali? O filme já começa em desordem. Como também no filme gnóstico europeu O Homem que Incomoda (Den Brysomme Mannem, 2006), cujo filme começa com o protagonista descendo de um ônibus em uma estranha e inóspita localidade, sem saber o quê faz ali e nem como chegou lá. Ou ainda em A Passagem (Stay, 2005) onde não só o psiquiatra protagonista, mas o próprio espectador (por meio da fotografia “estourada”) sente, desde a primeira cena, que há algo de errado naquela cidade onde as ações de desenrolam.

O Mal está na própria realidade que envolve o protagonista, e não nos atos “pecaminosos” dos personagens (ações de quebrem a ordem “boa”). Por exemplo, no filme “de monopólio” o Mal está presente em cada ação “errada” do personagem que desestabiliza a ordem e é punido por isso: o jovem que desobedece a mãe vai para o acampamento onde Jason o espreita (Jason de Sexta-Feira 13 não é o Mal, mas o anjo que pune os pecadores), os terroristas punidos ao final em Duro de Matar por terem quebrado o harmonioso mundo de um Shopping Center.

O filme gnóstico simbolicamente retrata essa cosmogonia corrompida e em Queda. Protagonistas se descobrem jogados dentro de uma trama que não sabem quando começou, o porquê da sua existência e o que fazem ali. O todo é falso é a única verdade semente pode ser encontrada dentro de si. Por isso, as narrativas gnósticas exigem personagens paranóicos, exasperados, à beira da psicose, esquizofrenia e loucura. É a revolta da verdade presente no indivíduo contra uma totalidade falsa desde o início:

“No início era a crise’ – assim seria a primeira frase de uma bíblia gnóstica, se eles conseguissem a proeza de se contentar com uma única Escritura. E já que no início foi a Crise, e não o Verbo, o mundo corpóreo é o produto terminal desse épico de declínio. O drama, num só ato, de Criação e Queda, requer protagonistas à altura: exorbitantes, impulsivos, expressivos, barulhentos. (...) intensidade no limite da histeria, estardalhaço, promiscuidade de impulsos, vontades e afetos feéricos.” (FIORILLO, Marília. O Deus Exilado – breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 119.)


A distinção entre o filme gnóstico e o filme “comercial” vai além das diferenças estéticas ou temáticas: reside nas diferentes concepções do Mal. No filme “de monopólio” o Mal está presente do indivíduo que “peca” (quebra da ordem pela sua ignorância, maldade, vício, corrupção, egoísmo etc.) devendo ser punido para redimir a ordem e mostrar ao espectador o quanto custa desestabilizar a Ordem.

Ao contrário, no filme gnóstico o Mal deixa o campo moral para alcançar um estatuto ontológico: o protagonista prisioneiro de um drama em um só ato, vítima de mais um desdobramento de um equívoco de dimensões cósmicas.

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domingo, julho 04, 2010

Trabalho de conclusão da pós da UAM estuda a recorrência de anjos na recente produção cinematográfica

Entender como a figura mitológica e arquetípica do Anjo é representada no cinema a partir de análises fílmicas, análise da imagem e Mitologias foi o objetivo de Ionara Lermen e Milton Siqueira Jr. com o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) "Cinema e Mitologia: a representação fílmica do personagem anjo", defendido em banca pública no dia 19/06 na pós-graduação em Cinema da Universidade Anhembi Morumbi (UAM).

A oportunidade que tive em orientar este TCC dentro do programa de pós em Cinema, Fotografia e Multimídia da Universidade Anhembi Morumbi foi de grande sincronicidade. O projeto de Ionara e Milton foi apresentado para mim num momento em que ministrava a disciplina Estrutura de Roteiro na Graduação em Comunicação e estava envolvido nas discussões em torno de Campbell, Vogler e a utilização de arquétipos e narrativas míticas nos roteiros cinematográficos e, ao mesmo tempo, vinha de recente defesa da dissertação de mestrado sobre a recorrência de elementos do Gnosticismo na produção cinematográfica.

A partir do filme de Win Wenders, Asas do Desejo (1987), a pesquisa da dupla detectou um crescimento no número de filmes que trabalham com o personagem arquetípico do anjo. O por quê dessa tendência, a pesquisa apontou para três hipóteses:

Primeiro: o crescimento na utilização da simbologia arquetípica em diversas narrativas midiáticas audiovisuais como publicidade, telenovela etc., com o objetivo de despertar desejos e associar temas, emoções e sentimentos a marcas, como na Publicidade.

Segundo: partindo das idéias de Nelson Brissac Peixoto, a recorrência do personagem Anjo no cinema seria um sintoma da saturação das imagens e estímulos sensoriais organizados como clichês dentro da Pós-Modernidade. A figura do Anjo representaria o anseio pela pureza, inocência perdida, um "olhar da primeira vez" de um anjo que vivia na eternidade e, de repente, cai no mundo material e experimenta as experiências banais pela primeira vez, buscando a transcendência no mundo material.

Terceiro: A própria evolução tecnológica do cinema que não mais precisa de luzes e película para as suas produções. Através de ferramentas oferecidas pela computação gráfica e seus efeitos especiais a criação de personagens etéreos e divinos torna-se mais fácil, tornando-se uma tendência considerável nos últimos anos. Soma-se a isso, personagens como gnomos, duendes, fadas, ETs etc.

A partir de análises de filmes como Asas do Desejo, Dogma, Anjos Rebeldes, Cidade dos Anjos, Constantine, a dupla de pesquisadores descobriu que as características mitológicas são conclusivamente judaico-cristãs.

O Curta-Metragem


Ao final a dupla apresentou sua produção audiovisual no formato curta-metragem "Se Essa Rua Fosse Minha" (o TCC da Pós em Cinema e Fotografia da UAM consiste na produção de artigo científico e de um produto audiovisual). O projeto teve o objetivo de inverter a fábula presente na cantiga infantil contando a história de um relacionamento entre um anjo e uma menina, o mundo da "miticidade" e o da realidade "mundana".
Mais do que isso, através de uma atmosfera dramatúrgica permeada de ludicidade e surrealismo, o curta re-interpreta a figura do anjo por um viés gnóstico: através de elementos simbólicos como o céu, a pena (que representa as asas), as brincadeiras infantis, a maçã, o caminho de brilhantes e o coração, o anjo abandona as representações tradicionais judaico-cristãs para ingressar no universo mítico do Gnosticismo. Nesse curta, o a anjo quase vira um Aeon!

Ficha Técnica:

  • Roteiro e Direção: Ionara Lermen e Milton Siqueira Jr.
  • Atores: Rafael Reigado (Anjo Azhazel), Ana Beatriz Cedro (Isabel criança), Fernanda Migotto (Isabel adulta).
  • Direção de Fotografia e Montagem: Milton Siqueira Jr.
  • Direção de Arte, Figurisno e arte gráfica: Ionara Lermen
  • Trilha Sonora: André Cortada
  • Agradecimentos: Ultrassônica Produções e ITD-Instituto Tecnológico Diocesano Santo Amaro
  • Orientação: Prof. Me. Wilson Roberto V. Ferreira

sábado, julho 03, 2010

A mídia racionaliza a presença do Mal: a desclassificação do Brasil na Copa

Se para o Gnosticismo, desde que foi criado, o Universo é imperfeito pela presença do Mal, o papel da indústria do entretenimento é o de encobrir essa natureza ao tentar racionalizar com scripts moralizantes eventos originados puramente do acaso e do inesperado. A Copa do Mundo e a desclassificação do Brasil é mais um exemplo dessa estratégia midiática.

Nos grandes eventos midiáticos, não importa o gênero, desde os atentados de 11 de setembro nos EUA à cobertura de um evento esportivo como a Copa do Mundo de Futebol, ficam mais evidentes os mecanismos pelos quais a indústria do entretenimento elabora, racionaliza e, depois, neutraliza a presença do Mal. No caso, a desclassificação do Brasil diante da seleção da Holanda. Simplesmente a indústria do entretenimento não pode aceitar o acaso, o imponderável, o reversível, o inesperado.

Acontecimentos devem ser enquadrados no interior de estruturas-clichê, verdadeiros scripts que racionalizam ou dão um sentido, um “valor de uso”, a eventos destituídos de qualquer sentido. São a mera expressão de uma ausência de sentido, do acaso, da presença do Mal como constituinte do cosmos em que habitamos.

Antes de prosseguirmos, temos que explicar de que “Mal” estamos nos referindo. Não estamos falando do Mal no sentido moral, diabólico (o “mau”) e, muito menos, no sentido disfuncional ou da ignorância. Dentro da visão gnóstica o Mal tem a ver com a própria constituição do cosmos físico, a forma imperfeita e decadente como esse universo foi criado pelo Demiurgo. A criação já foi queda, crise, desde o seu início. Há uma existência ontológica do Mal na História. Para além do pecado, ignorância ou maquinações malignas, o Mal tem a ver com um drama de dimensões cósmicas: um universo criado de forma imperfeita e decaída. E por que este mundo material criado pelo Demiurgo é imperfeito? Por que nele encontram-se inconciliáveis e, ao mesmo tempo, inseparáveis, o Bem e o Mal. Dessa forma, para cada ato bom produz-se um efeito perverso: a produção reverte-se em destruição, a paz produz a guerra, a realidade a ilusão, e assim por diante.

Talvez onde mais se expresse esta natureza do Mal seja nos jogos infantis: as crianças divertem-se com o jogo, com o acaso, com a reversibilidade, com o girar, ficar tontas, experimentar a própria natureza do cosmos no interior do qual se reencarnaram: brincar com o inesperado e o reversível – objetos se transformam em outro, caixinhas em trens, e bolas são lançadas sem saber exatamente onde vão cair. A criança ri do inesperado, do incerto.

Voltando à cobertura da Copa e a desclassificação do Brasil, a indústria do entretenimento simplesmente não pode aceitar a natureza de “jogo” do futebol. A derrota deve ser racionalizada e inserida a fórceps num script já anunciado: a derrota da “Era Dunga”.

Não obstante o fato de a seleção ter dominado todo o primeiro tempo, e “aquelas” bolas não terem entrado para ampliar o placar e matar o jogo e o fato do primeiro gol da Holanda se originar de um cruzamento fortuito que resultou inesperadamente em gol depois do goleiro Julio César e o volante Felipe Melo “baterem cabeça”, esses simples expressões do Mal não podem ser aceitas pela cobertura midiática.

Se para a própria natureza lúdica do jogo essas manifestações do acaso que deveriam ser a fonte de diversão e graça (a reversibilidade e inutilidade dos atos), para a indústria do entretenimento deve ser neutralizadas. Por quê?

O Jogo do Terrorismo

Um exemplo dramático disso são as ações terroristas Os atos terroristas são verdadeiros incômodos para a lógica midiática. São fatos efêmeros que não podem ser interpretados ou assumidos por algum sentido ou valor. Como fato midiático, os atentados terroristas demonstram a própria reversibilidade dos sistemas de comunicação. Os atentados não são feitos para entrarem na História, mas para as ondas concêntricas da mídia.Um atentado como o de 11 de setembro nos EUA não tinha objetivo pragmático ou lógico (chegar ao poder, iniciar uma guerra etc.). Nenhuma interpretação moral ou política podia ser dada: o atentado foi uma ação sem sentido político ou estratégico - não visava a tomada do Poder e, muito menos, a desestabilização do sistema político. Espetáculo puro, aparência pura. Mas, através de uma estratégia de simulação, a mídia procura racionalizar, tenta trazer o episódio para o seu script racionalizante: fanatismo islâmico? Vingança de Bin Laden? Bonapartismo Civil de Bush? Todas as alternativas de explicação do porquê do atentado terrorista se anulam e se equivalem numa espiral interpretativa sem fim.

O Script do “Fim-da-era-Dunga”

Fazendo uma analogia com a Copa do Mundo, o script dramático da racionalização da derrota do Brasil já estava anunciado: psicólogos e psicanalistas convocados para explicar o comportamento arredio do técnico, colunistas esportivos defendendo que Dunga tirava o prazer do “futebol bem jogado” e ia contra as “verdadeiras raízes” do futebol brasileiro representadas por Garrincha e Pelé e atualizadas nos “novos craques” do Santos Neymar e Ganso, injustamente não convocados pelo “pragmático” Dunga.

A seleção brasileira tem que ser, ao mesmo tempo, lúdica e com “prazer de jogar”, mas, também, sempre vencedora. Esse script paradoxal é aplicado ao “trauma” da desclassificação, negando a própria noção de prazer e jogo que atiçam contra Dunga.

Na presença do Mal (do acaso e do inesperado) no futebol e no jogo em geral é que reside o prazer, e não numa suposta origem idílica e romântica do futebol brasileiro (supostamente negada pelo conspirador Dunga) que nos garantiria nunca perder.

Assim como os atos terroristas que não visam o Poder ou o Estado, mas apenas o espetáculo, a derrota “injusta” de uma seleção traída pelo acaso (ou pelo Mal) demonstra a inutilidade “divertida” do jogo. A indústria do entretenimento precisa racionalizar ou dar uma lição de moral à derrota, como bem demonstram as colunas dos comentaristas esportivos de hoje.

A derrota deve dar uma lição de moral (o fim do “dunguismo”) para provar que, no final, a vida tem um sentido moralmente bom e que o Mal é fruto dos nossos erros e pecados, e não um elemento que constitui e define a própria existência. O prazer irônico no Jogo e no Lúdico (sentir graça de um drama cósmico) é a sua prova inconteste.

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