terça-feira, agosto 06, 2024

Jamais chegaríamos na Lua sem a força da ficção em 'Como Vender a Lua'


Do quê é preciso para pousar na Lua? Certamente uma equipe de brilhantes cientistas de foguetes, obstinados geeks programadores de computadores e um experiente chefe do controle da missão que foi piloto da Força Aérea. Mas, de que adianta tudo isso se a NASA não conseguir vender o pouso na Lua para financiadores e opinião pública? De que adianta um pouso real na Lua se o evento não render imagens inspiradoras e com suspense hollywoodiano? Então, mais do que cientistas e geeks, é preciso um diretor de vídeos publicitários e uma relações públicas. Esse é o tema do filme “Como Vender a Lua” (Fly Me to the Moon, 2024). Calma! O filme não sugere que o pouso foi uma farsa. Mas de como a América entrou na era do artifício no qual a simulação e o entretenimento passaram a ser forças dominantes em todos os setores da sociedade. 

No final do ano 1960, os EUA estavam na chamada “sinuca de bico”. Os soviéticos estavam ganhando a corrida espacial (os primeiros a colocar tudo no espaço: um satélite, um cão, um homem, uma mulher, o primeiro passeio de um cosmonauta fora da nave). E a Lua era o próximo passo natural, já que a sonda soviética Luna 2 já havia atingido o solo lunar em 1959.

Em pânico, o presidente John Kennedy exortou o país a colocar um americano na Lua até o final daquela década de 1960. E as coisas não estavam nada bem: em 1967, três astronautas americanos morreram carbonizados num incêndio na cabine da Apollo 1, na torre de lançamento.

O impacto na opinião pública foi tão tremendo (num país já abalado pelos conflitos raciais pelos protestos na luta por direito civis e ainda as rebeliões dos jovens contra a guerra do Vietnã) que o Congresso abriu uma investigação, praticamente para acabar com o projeto Apollo. Principalmente depois da descoberta do chamado “Phillips Report”, dossiê que revelava problemas com o principal contratante da Apollo, a North American Aviation. Uma humilhação pública para o administrador da NASA, James Webb, que não tinha conhecimento do problema.

Para os EUA, a corrida à Lua não era apenas um inferno de logística. Era também o apocalipse de relações públicas.



Porém, os EUA tinham uma arma secreta: a simulação - do crescimento de Hollywood como indústria cinematográfica no início do século, passando por Las Vegas e toda a indústria de jogo e entretenimento nas décadas de 1930-40, a categoria de simulação se interpõe como algo que vai muito além da metáfora: transforma-se em força política e econômica real nas estratégias de comunicação aplicadas nas Relações Públicas e Publicidade.

Esse é o pano de fundo da comédia Como Vender a Lua (Fly Me to the Moon, 2024), dirigido por Greg Berlanti, um especialista em dramas e comédias românticas como Life as We Know It e Love, Simon

Por isso as pesadas críticas negativas contra o filme, em geral acusando Berlanti de ter e perdido no tom da produção – não se sabe se estamos assistindo a uma comédia romântica, uma sátira política cínica ou um drama pesado. A química entre os protagonistas feitos por Scarlett Johansson e Channing Tatum lembra a dinâmica das comédias românticas clássicas da dupla Doris Day e Rock Hudson: o homem racional e compenetrado que vê sua rotina virada pelo avesso por uma mulher linda e espevitada. 

Tudo no filme seria tonalmente confuso e longo.

Porém, na medida em que o filme progride, Como Vender a Lua se torna mais sério e elaborado: a maneira como Hollywood brinca como uma das teorias conspiratórias mais persistentes da História – a de que o pouso norte-americano na Lua teria sido uma elaborada farsa de relações públicas para salvar o recém-empossado governo Richard Nixon do fracasso político. Afinal, nenhum político americano queria se tornar notável por ter perdido a Lua para os comunistas. Principalmente no momento quando está na presidência do país tido como o mais poderoso do planeta.

Durante décadas, dúvidas têm perseguido o projeto Apollo 11. Quem realmente ganhou a corrida espacial? (Neil Armstrong pode ter sido o primeiro a pisar na lua, mas muitos defendem que os soviéticos realmente venceram a América no espaço). A NASA fingiu o pouso na lua? (os céticos ainda insistem que tudo foi encenado, seja por Stanley Kubrick ou por outra pessoa, para fins de relações públicas). 

Os roteirista Keenan Flynn, Bill Kirstein e Rose Gilroy pegam essas dúvidas e as extrapolam para aquilo que o próprio filme chama de “versão alternativa” dos eventos - que coloca a própria autenticidade da missão em risco. 




O Projeto Apollo era importante demais para ser colocado sob o risco de um desfecho incerto em um inferno logístico: e se os astronautas se estatelarem na superfície da Lua? E se a câmera de TV não funcionar sob o contraste brutal de temperatura na sombra ou quando exposta ao Sol? E se, sob a pressão da luta pela sobrevivência num ambiente hostil, os astronautas ignorarem a câmera de TV? 

Ora, se não apareceu na TV, logo nada aconteceu! Esse é um princípio simples de Relações Públicas: sem imagem, não existe nada para vender. Principalmente num evento ao vivo.

Portanto, o show do pouso na Lua deveria ser colocado nas mãos de gente mais capacitada do que o chefe do controle da missão em Houston. Deveria ser colocado nas mãos de um diretor de comerciais de TV e de uma publicitária da Madison Avenue.

O Filme

Situado durante a corrida espacial da década de 1960, em um momento em que a NASA estava lutando para manter sua legitimidade após o contratempo trágico inicial e os custos cada vez mais elevados do Projeto Apollo, o filme também toma sua parcela de liberdades com alguns dos fatos. 

Dessa maneira, Como Vender a Lua não é bem uma lição de história, nem uma comédia romântica e certamente não é um épico - o filme é uma mistura suave, mas agradável, de gêneros que só dá certo graças ao puro carisma de Channing Tatum e Scarlett Johansson, dois atores que parecem inesperadamente demonstrar uma boa química.



Johansson interpreta Kelly Jones, uma executiva de publicidade da Madison Avenue que, quando a conhecemos pela primeira vez, está fingindo estar grávida, com uma barriga postiça, enquanto fala docemente com um grupo de executivos da Ford em uma proposta de campanha destacando cintos de segurança recém-instalados em seus Mustangs. 

Kelly é alegre, persistente e encantadoramente dissimulada, cujos lances são muitas vezes tão falsos quanto o próprio nome dela – é uma mentirosa contumaz que sempre viveu à base de pequenos golpes. Até descobrir que na Publicidade tudo aquilo que sempre fez em sua carreira de pequenos trambiques é considerado legal na Madison Avenue. 

Ela é tão especialista em adotar diferentes sotaques e atitudes, e tão disposta a inventar histórias sobre si mesma, que suspeitamos desde o início que Kelly pode nem ser seu nome verdadeiro. 

Mas alguém descobre que os seus talentos em simulação podem ser mais úteis do que no mundo das vendas de carros e eletrodomésticos. Ela logo é abordada por Moe Berkus (Woody Harrelson), uma figura sombria do “Estado Profundo” da recém-eleita administração Nixon, que quer que ela vá para a Flórida e utilize o seu talento para salvar o projeto espacial: os geeks da NASA estão prestes a perder seu financiamento do Congresso. 

O frio e duro (e caro) mundo tecnológico estava precisando do appeal publicitário: que tal levar a corrida espacial para o café da manhã, entretenimento e moda? Que tal associar foguetes e astronautas como herói que vendem produtos do sonho americano? 




Além disso, na TV só se fala na guerra do Vietnã e protestos hippies. É hora da corrida à Lua ocupar o horário nobre.

Kelly não quer fazer isso, mas Moe sabe coisas sobre seu passado — inicialmente mantido vago para nós — para que ela seja obrigada a aceitar sob chantagem.

Os novos deveres de Kelly a colocam em conflito direto com Cole Davis (Tatum), o diretor de lançamento da próxima missão lunar Apollo 11. Com sua seriedade de propósito e comportamento estoico, ele não consegue compreender a mentalidade publicitária de Kelly: vender a Corrida Espacial ao público com colocações de produtos e parcerias publicitárias, enquanto tenta cortejar senadores relutantes para não cortar o financiamento da agência espacial.

É o momento “Rock Hudson-Doris Day”: a criação da tensão romântica e faíscas dos flertes sensuais entre opostos.

Estado Profundo e pseudo-eventos

Com a proximidade do lançamento da Apollo 11, o Estado Profundo decide que algo tem que ser feito para garantir que os comunistas não conquistem a Lua primeiro: é a hora de Kelly deixar de ser uma simples vendedora para se transformar numa produtora de eventos. É hora de virar uma relações públicas.



Sob o codinome de “Projeto Artemis”, Kelly terá que reunir esforços de produção para criar uma versão simulada do pouso na Lua – uma espécie de Plano B, no caso de a Apollo 11 não conseguir render as imagens perfeitas para a TV. Não basta pousar na Lua... o pouso deve ser telegênico – as imagens televisivas devem ser patrióticas, inspiradoras. Não pegaria nada bem ver astronautas desengonçados, tropeçando ou, pior, em pânico lutando pela sobrevivência.

Fique tranquilo! O filme não sugere que o pouso foi uma farsa – se bem que a ambiguidade final deixa tudo em suspenso: “Até parece mentira”, diz o agente do Estado Profundo ao ver as imagens reais do pouso da Apollo.

O que o diretor Greg Berlanti está querendo discutir é que presumivelmente algum elemento de ficção foi necessário para criar suspense e dar à história alguma forma amigável a uma opinião pública acostumada com as narrativas hollywoodianas.

É quando Como Vender a Lua torna-se interessante. É quando o diretor Greg Berlanti e seu elenco se divertem com as travessuras cômicas de um pouso falso sendo criado ao lado da verdadeira missão Apollo. E também quando as fronteiras entre ficção e a realidade começam a ficar borradas: no final, como distinguir o pouso real do produzido no estúdio?

Numa era em que vendas e imagens são mais importantes do que a realidade, havia uma coisa mais importante do que pisar na Lua: como vender a conquista da Lua para os americanos.

No mundo real uma equipe de cientistas de foguetes, assim como um piloto da Força Aérea que virou o capitão da equipe da NASA, Cole Davis, são essenciais para colocar a América na Lua.

Mas sem o cérebro de Kelly Jones, a Apollo 11 poderia nunca ter decolado - isso é o quão vital foi componente de relações públicas: primeiro, convencer o Congresso a financiar a missão; e depois cativar o público de TV.

Ao reconhecer isso, Como Vender a Lua captura um ponto de virada na história americana - quando os pseudo-eventos criados pelos colarinhos brancos da Madison Avenue se tornaram a força dominante de uma nação.

Quando a América entrou na “era do artifício” na qual a fabricação de ilusões (e do entretenimento) tornou-se uma força social dominante. A vida pública foi dominada por “pseudo-eventos” – eventos encenados, verdadeiras contrafações dos acontecimentos reais.

Chegando até mesmo na indústria do turismo – se outrora oferecia um passaporte para as pessoas viajarem através do mundo real, agora tornou os viajantes isolados em verdadeiros lugares artificiais habitados por nativos pitorescos em espaços cenográficos, (reproduções estilizadas dos nativos reais) para turistas que esperam ver cenas semelhantes às vistas anteriormente no cinema.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Como Vender a Lua

Diretor:  Greg Berlanti

Roteiro: Keenan Flynn, Bill Kirstein e Rose Gilroy

Elenco: Scarlett Johansson, Channing Tatum, Woody Harrelson, Donald Watkins, Nhoa Robbins

Produção: Apple Studios, These Pictures

Distribuição: Sony Pictures Releasing

Ano: 2024

País: EUA

 

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