domingo, janeiro 24, 2016
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Desde os anos 1980 fundos de investimento de
Wall Street investem em Hollywood nos chamados estúdios independentes.
Ironicamente, os mesmos estúdios que inventaram o subgênero “cinema da crise”
que desde o crash da bolha especulativa imobiliária de 2008 denunciam as
“fraudes” e “mentiras” de Wall Street em diversos documentários e dramas
ficcionais. O filme “A Grande Aposta”, indicado ao Oscar desse ano, é mais uma
dessas produções supostamente críticas, mas ironicamente financiadas pelo
próprio sistema que denuncia. Wall Street é autoconsciente e cínica ao
financiar filmes como “A Grande Aposta”? Será quetoda “ganância é boa” ao ponto do sistema
financeiro lucrar com a própria denúncia de si mesmo?
As ondas da crise financeira global de 2008 continuam se espalhando não
só nas tendências econômicas, mas também no universo cinematográfico. Foi capaz
de criar uma espécie de subgênero que poderíamos denominar como “cinema da
crise”: Capitalismo - Uma História de
Amor (2009), A Ascensão do Dinheiro
(2009), O Último Dia do Lehman Brothers
(2009), Trabalho Interno (2010), Margin Call: O Dia Antes do Fim (2011), O Lobo de Wall Street (2013), para ficar
nos mais conhecidos.
Sejam documentários ou narrativas ficcionais, esses filmes têm em comum
o esforço em tentar explicar aos leigos a terminologia hermética dos sistemas
financeiros como subprimes, swaps, agências de classificação de risco, CDO
sintética, CDO composta, obrigações hipotecárias, tranches etc.
A Grande Oposta é mais um filme desse subgênero que inova o esforço
pedagógico ao misturar ficção e documentário, comédia e drama – um famoso
cozinheiro falando das suas estratégias culinárias e Margot Robbie em uma
banheira cheia de espumas fazem analogias para explicar termos financeiros; constantemente
a quarta parede é rompida quando o narrador onisciente (que na verdade é um dos
personagens) fala para o espectador; movimentos
de câmera característicos da linguagem documental; personagens se dirigindo ao
espectador para corrigir sua própria atuação ficcionalizada.
São recursos propositais que o filme utiliza para quebrar o ritmo e
criar uma impressão de autoconsciência e cinismo.
Ironias
Mas esse “cinema da crise” guarda algumas ironias. Primeira: são
produções de estúdios hollywoodianos e alguns chegaram a ser premiados e/ou
indicados para o Oscar, como o caso de A
Grande Oposta que concorre a Melhor Filme. O mainstream da indústria do entretenimento desmascarando fraudes e
mentiras de Wall Street?
Segunda: desde os anos 1980 fundos de hedge de Wall Street passaram a
investir em Hollywood, impactando a estrutura dos estúdios – passaram a
financiar produções de estúdios independentes como a Catch 22 Entertainment,
Lionsgate, Relativity Media e a própria Regency Enterprises, produtora de A Grande Aposta – sobre isso clique aqui.
Questão paradoxal: Wall Street investe em filmes que revelam suas
próprias mazelas à opinião pública? Como dizia Gordon Gekko (o inescrupulosa
especulador do filme Wall Street
feito por Michael Douglas) “a ganância é boa”. Mas ao ponto de fundos hedge de
Wall Street procurarem lucros em filmes onde eles próprios são denunciados?
Talvez essa ganância pragmática não seja surpreendente tendo em vista o
que praticaram em 2008: mesmo sabendo que as obrigações hipotecárias estavam
podres, asseguravam a saúde financeira a seus clientes enquanto secretamente
apostavam na explosão da bolha imobiliária. Afinal, dinheiro não tem ideologia,
moral ou pátria.
Máquina de propaganda
Mas no caso do cinema da crise, parece haver um propósito de utilizar
Hollywood mais uma vez como máquina de propaganda e de agendamento da opinião
pública.
Como o filme Obrigado Por Fumar
mostrou de forma magistral, em uma sociedade da informação é impossível negar,
esconder ou negligenciar fatos e tendências. Esse filme mostrou como a
indústria tabagista era capaz de financiar campanhas e pesquisas ao mesmo tempo
contra e a favor do tabaco – deixe que as pessoas escolham o que é melhor para
elas, mas o cigarro sempre estará em evidência – sobre o filme clique aqui.
A Grande Aposta parece ser mais um exemplo dessa tática,
dessa vez com o sistema financeiro onipresente nas produções hollywoodianas:
mostrar que a explosão da bolha imobiliária de 2008 foi o resultado da fraude,
mentira e relações promíscuas (profissionais ou sexuais, como de passagem
mostra o filme) entre as agências de classificação de risco e os bancos.
Fraude, mentira e promiscuidade são conceitos morais, perfeitos para um
filme que se limita ao foco microeconômico (as táticas dos investidores,
traders, bancos de investimento e fundos), passando ao largo das questões
macroeconômicas – Banco Central e o sistema bancário norte-americano.
Veremos que A Grande Oposta,
assim como todo o subgênero “cinema da crise”, é incapaz de abandonar o campo
da moralização (mostrar os “bad guys”) e fazer um questionamento ontológico ou
macroeconômico: como o sistema não apenas frauda, mas simula a riqueza com a substituição do dinheiro pelo crédito. E
como as crises são as novas formas destrutivas de realização de lucros (quando
crédito vira dinheiro), e não mais “o fim do capitalismo” como de forma
sensacionalista esses filmes parecem quer passar com termos como “último dia”, “o
fim” ou “o dia do apocalipse”.
O Filme
A narrativa acompanha quatro clarividentes excêntricos do mercado
financeiro de diversas origens que, dois anos antes do crash de 2008,
pressentem que a cintilante bolha do mercado financeiro iria explodir. Resolvem
fazer apostas em massa contra o mercado imobiliário (fazer seguros de hipotecas
subprimes), sob a descrença generalizada de todos: como um investidor vai
apostar contra uma das instituições econômicas mais sólidas do país?
Michael Burry (Christian Bale) é um médico que se tornou um guru de um
fundo de hedge. É o primeiro a pressentir que a inadimplência hipotecaria
subirá incontrolavelmente a partir de modelos matemáticos de tendências.
Mark Baum (Steve Carrell) é um investidor impulsionado por uma mistura
volátil de ódio contra o sistema, tristeza e profundo cinismo – considera-se o
último dos justos de Wall Street.
Jared Vennett (Ryan Gosling) é um especialista de hipotecas subprime do
Deutsche Bank onde está na melhor sequência didática do filme: explica o
significado do colapso das subprimes a partir de uma pequena torre com blocos
de madeira do jogo Jenga.
Ben Rickert (Brad Pitt) é um plutocrata com discursos conspiratórios,
fala baixinho e caminha calmamente e acredita que a civilização está condenada
– para ele, após “o fim” sementes para plantar serão a nova moeda. Ele vai
ajudar dois jovens investidores de um escritório montado na garagem da casa da
mãe a conseguir também apostar contra o mercado imobiliário.
O filme divide claramente os investidores em três categorias: os que
enriqueciam sem entender a especulação que estavam manipulando e inflando (a
striper que possui apartamentos e cobertura); os que sabiam perfeitamente o que
acontecia mas seguiam operando sem se importar com as consequências – afinal,
nada é mais sólido do que o mercado hipotecário; e os que anteciparam a crise.
Os protagonistas pertencem a essa terceira categoria que são
caracterizados como freaks, outsiders, corsários, autônomos como fossem abutres
pós-modernos que se antecipam à carniça. São mostrados como anti-heróis: Burry
trabalha de bermudas, descalço e ouvindo rock pesado enquanto lida com modelos
matemáticos; Baum odeia o sistema e é o único que apresenta algum escrúpulo com
as consequências da crise para os cidadão comunspela miséria e desemprego; Rickert é um
desiludido à espera do apocalipse e Jared um funcionário que aposta contra o
próprio banco que trabalha.
Fraude, mentira e simulação
Mas, como todos os demais, suas ações são também guiadas pelo lucro. Porém,
o filme retrata os heróis através dos valores mais caros da cultura
norte-americana: a iniciativa individual, empreendedorismo – a cena em que
Burry está atento à tela do computador e a câmera passeia pela estante de
livros e para em um exemplar de Adam Smith (o pai do liberalismo econômico) e o
escritório de investimentos montado na garagem da mãe de um dos investidores da
dupla ajudada por Rickert, como fossem os Steve Jobs do mundo financeiro.
A Grande Aposta insiste nos conceitos de “fraude” e “a mentira”
que estariam no “coração” da economia norte-americana. Esses conceitos são
morais porque originam-se da noção de dissimulação
– partem do pressuposto de que, em algum lugar, existe uma verdade que está
escondida: a verdadeira economia voltada ao seu valor de uso: a alocação
racional e justa de recursos escassos na sociedade.
Mas o que o filme não aborda é que no final todos os protagonistas
ganham créditos e não dinheiro como resultado das suas apostas. Tudo que verão
são números nas sua telas de computadores dos lucros creditados em suas
negociações.
Desde que o Estado deixou de ser a única instituição emissora de
dinheiro com as políticas neoliberais de desregulamentação, o sistema
financeiro passou a ser um emissor privado também de “dinheiro” – na verdade
crédito, riqueza virtual sem qualquer lastro com a economia real que simula ser riqueza.
Ou seja, os nossos heróis de A
Grande Aposta que “denunciam” as grandes falcatruas por trás da crise de
2008, serão os artífices da próxima crise – em algum momento esses créditos
terão que baixar à terra para transformarem-se em dinheiro: o Estado terá que
compulsoriamente lastrear esses créditos socializando o prejuízo (desemprego e
depressão econômica) para salvar a credibilidade do sistema financeiro. Que no
final tem o Estado como refém com a sua própria dívida transformada em papéis
comercializados no sistema financeiro global.
Parece que descobrimos que não é tão paradoxal Wall Street investir em produções
hollywoodianas“críticas” contra o
sistema financeiro: no final, o sistema nunca é colocado em xeque – resta
culpar os “fraudadores” e “mentirosos”.
Ou, como no emblemático final do filme Casablanca quando o inspetor Renault salva a vida do protagonista
Rick (Humphrey Bogart) ordenando: “prendam os suspeitos de sempre”. O mesmo
modus operandi aplicado ao filme A Grande
Aposta: procurem os homens “maus” para permanecer um sistema onde a iniciativa
individual e o empreendedorismo sempre buscam o bom lucro.
Ficha
Técnica
Título: A
Grande Aposta
Diretor: Adam McKay
Roteiro: Charles Randolph e Adam McKay baseado no livro de Michael Lewis
Elenco: Christian Bale, Steve Carell,
Ryan Gosling, Brad Pitt
Produção: Regency Enterprises, Plan B Entertainment
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
Publicidade
Coleção Curtas da Semana
Lista semanalmente atualizada com curtas que celebram o Gnóstico, o Estranho e o Surreal
Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes d...
Terça - Feira, 29 de Abril
Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>