sexta-feira, maio 18, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O filme argentino “Nove
Rainhas” (Nueve Reinas, 2000) do falecido diretor Fábian Bielinsnky continua
ainda desconhecido no Brasil. Embora reflita o colapso econômico argentino do
final da década de 1990 e a amoralidade que a corrupção e a inflação estariam
provocando na cultura nacional, permanece bem atual. O impacto mundial (nos EUA
mereceu um remake de qualidade bem inferior) da saga de dois anti-heróis
trambiqueiros que descobrem que, na verdade, a própria sociedade é feita de
pequenos e grandes golpes, fez Bielinsky afirmar que o sucesso do filme
simbolizaria “a globalização do salve-se quem puder”. Provavelmente porque Bielinsky explora dois grandes arquétipos da literatura e do cinema: o "Pícaro" e o "Trickster".
“Nove Rainhas” (Nueve Reinas, 2000) se tornou um dos mais aclamados filmes argentinos recentes. Quase não foi visto no Brasil, renegado
apenas a festivais e obscuras exibições. Nos EUA fez tanto sucesso que rendeu
um remake com qualidade inferior chamado “171” (Criminal, 2004).
À primeira vista o filme se trata de mais uma estória de
anti-heróis, pobres diabos que vivem de pequenos golpes na espera de encontrar
a oportunidade de aplicar a grande e definitiva trapaça que o faça subir na
vida e ser respeitado por todos. Mas há algo de perturbador no roteiro escrito
e dirigido por Fábian Bielinsky: e se esse pobre diabo descobrir que, na
verdade, a sociedade inteira é formada por anti-heróis e que jogos e trapaças
já fazem parte da rotina de todos os níveis sociais, das ruas até as instituições?
E se a sociabilidade for uma ficção necessária para encobrir esta realidade
crua?
Toda a narrativa do filme se passa nas ruas e lugares
públicos em Buenos Aires (bares, restaurantes e saguões de hotéis) em um espaço
de tempo de pouco mais de 24 horas, da madrugada até a manhã do dia seguinte.
Marcos (Ricardo Darín) e Juan (Gaston Paulus) vivem de
pequenos trambiques até encontrarem-se por acaso em um golpe malogrado em uma
loja de conveniência. Tornam-se sócios em uma oportunidade que Marcos chama de
“uma oportunidade em um milhão”: uma milionária negociação com um milionário
espanhol envolvendo uma série de selos raríssimos falsificados, as “nove rainhas”
do título. O negócio tem que ser realizado imediatamente, custe o que custar,
já que o milionário deixará a cidade na manhã do dia seguinte. Enquanto o
experiente golpista Marcos ensina ao jovem e inexperiente Juan os segredos do
“ofício”, conta com a ajuda da irmã Valéria (Letícia Bredice) que trabalha no
hotel onde o espanhol está hospedado. Mas questões familiares pendentes azedam
a relação com a irmã, dificultando ainda mais o golpe milionário.
O interessante na narrativa é que a cada passo dessa jornada
eles encontram outros ladrões e farsantes, o que torna Buenos Aires numa selva
onde ninguém está livre de sua pequena ou grande parcela de corrupção. Cada
revelação encobre outra mentira e cada promessa conduz a um novo golpe. A única
certeza que o espectador tem é que nada é o que parece ser, até um
surpreendente final.
De imediato chamam a atenção o ritmo frenético e a fotografia
despojada. Além disso, como em todo bom filme de anti-heróis, consegue atrair a
simpatia do público se igualando a filmes do calibre de “Butch Cassidy”, "Os Bons Companheiros” e “Os Suspeitos”.
A primeira leitura sobre o filme é que ele é um reflexo do
colapso econômico argentino no final da década de 1990 após o corrupto governo
Carlos Menem e um ambiente de sucessivos pacotes econômicos, desemprego e
crescimento da criminalidade urbana. O filme expressaria essa percepção de
amoralidade e desaparecimento da fronteira entre o bem e o mal que a inflação e
corrupção estariam produzindo na cultura nacional. Mas o que impressionou o
próprio diretor Bielinsky é que a identificação com esse sentimento não foi
apenas na Argentina: “O mais curioso é que pude comprovar que as pessoas de
outras grandes cidades do mundo também se identificam com esse sentimento. Há
uma certa globalização do ‘salve-se quem puder’” (“Nueve Reinas, La Varita Del
Guante Blanco” disponível em http://www.clubcultura.com/clubcine/nuevereinas/nuevereinas2.htm).
O Anti-herói: pícaros e “tricksters”
No universo narrativo a figura do anti-herói é associada
tanto ao chamado personagem picaresco como ao “trickster”.
Na história da literatura o Pícaro é o típico personagem de
romances e novelas surgidos na Espanha no século XVII e XVIII com
características atuais daquilo que chamamos de malandragem: amoralidade e
pragmatismo onde a astúcia é colocada a serviço de interesses da sobrevivência
e busca de vantagens egoístas.
As "Nove Rainhas"
Não se confunde com o Trickster (do francês “triche” ou
“tricherie” – trapaça, furto, engano), uma pluralidade de personagens
encontrados em diferentes culturas, mas que partilham de um mesmo conteúdo
arquetípico: o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, ora
atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os. Enquadra-se no gênero
literário da Farsa onde os papéis sociais invertem-se e a ordem social é
contestada.
No cinema, o Pícaro possui duas funções bem claras: trazer
um alívio cômico à narrativa e, como companheiro desastrado do herói, abrir os
olhos do protagonista para a natureza humana. Do burrinho amigo do Sherek ao
robô companheiro de Lucky Skywaker em “Star Wars” vemos personagens cômicos,
covardes e potencialmente corruptíveis.
Porém, em “Nove Rainhas” vemos a amoralidade e o pragmatismo
do Pícaro se espalhar em metástase na sociedade Argentina, como fala o
experiente Marcos em mais uma lição ao inexperiente Juan:
“Quer ver ladrões? Venha. Aqueles dois... esperando alguém
com a maleta do lado da rua. Aquele... está marcando ponto para uma vítima.
Estão aí, mas não os vê. É disto que se trata. Estão, mas não estão. Então
cuide de sua maleta, sua valise, sua porta... sua janela, seu carro, suas
economias. Cuide do seu rabo. Porque estão aí e vão estar sempre. Ladrões.
Não... isso é como os chamam. São marreteiros, violadores, corruptos,
valentes... larápios, putas, simuladores, batedores, boêmios, escutas...
arrebatadores, trombadinha, operadores, ladrões...”
Fabio Bielinsky tem um olhar desesperançado para a sociedade
Argentina: das ruas até um banco que quebra a certa altura do filme deixando
uma série de correntistas, inclusive o golpista Marcos, desesperados esmurrando
as portas, tudo exala a corrupção, mentiras e reveses.
Fascínio ou identificação pelo anti-herói?
Os anti-heróis de “Nove Rainhas” criam nos espectadores muito
mais identificação do que fascínio. Quando Bielinsky se diz surpreendido com
essa mesma percepção em outros grandes centros urbanos do mundo onde o filme
foi exibido, acaba confirmando o efeito globalizante da narrativa. Se no anti-herói
trickster nos encontramos fascinados ao ver um personagem que inverte os papéis
sociais e contesta criticamente a ordem, no pícaro apenas nos identificamos com
o demasiadamente humano.
Principalmente quando o roteiro de Bielinsky mostra que toda
a sociedade é picaresca, das ruas às instituições financeiras. À menor
oportunidade qualquer um pensará em tirar vantagem do próximo. Se a
sociabilidade for uma mera ficção, então o anti-herói é um trágico pobre diabo:
pensa que é esperto, mas ignora que, na verdade, toda a sociedade já está à
frente, tramando golpes ainda mais elaborados e institucionalizados. Essa é a
verdadeira dialética negativa do Malandro.
Salve-se quem puder!
A “globalização do salve-se quem puder” pode encontrar suas
bases mais profundas na própria forma de sociabilidade e da organização do
trabalho no mundo globalizado. Em 1983 em seu livro “Trabalho e Reflexão –
ensaios para uma dialética da sociabilidade”, o filósofo José Arthur Gianotti
descrevia como o trabalho perdeu a sua medida de representação no Capitalismo
Tardio com a crise do valor-trabalho. O chamado “valor-trabalho” tanto em Adam
Smith como em Marx era a medida de representação dos valores das mercadorias e
da riqueza social, criando vínculos sociais e unindo os três componentes de um
processo produtivo clássico mediado pelo capital: matéria-prima, o homem
(trabalho) e o produto. Nessa esfera da produção eram travadas todas as lutas e
discussões decisivas da sociedade.
Com uma sociedade dominada pela circulação, consumo e
serviços, essa esfera se sobrepõe à produção enquanto medida ou percepção de
riqueza e valor. Perde-se a materialidade do trabalho para ingressar numa nova
sociabilidade dominada pela mídia, aparência, credibilidade, e disputas de
construção de imagens e percepções (publicidade, relações públicas, marketing
etc.) que passam a ser mais importantes do que o produto em si mesmo.
A medida social parece se diluir em jogos onde o sabido
sobrepõe-se ao sábio, a retórica à verdade e o acidente à essência. Se a
engenharia de opinião pública substitui a Política e a construção da imagem
pessoal substitui a proficiência, talvez aí estejam as origens do “salve-se
quem puder” que permeia a sociabilidade globalizada: a desconfiança de que as
regras e referências desapareceram e de que nada mais resta do que a “vontade
de poder” traduzida pelo ardil e a astúcia na construção de aparências.
No final, a dialética negativa do malandro: a malandragem
deixa de ter contornos épicos e contestadores para ser incorporada por uma
sociabilidade picaresca.
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
Publicidade
Coleção Curtas da Semana
Lista semanalmente atualizada com curtas que celebram o Gnóstico, o Estranho e o Surreal
Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes d...
Domingo, 30 de Março
Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>