O filme argentino “Nove Rainhas” (Nueve Reinas, 2000) do falecido diretor Fábian Bielinsnky continua ainda desconhecido no Brasil. Embora reflita o colapso econômico argentino do final da década de 1990 e a amoralidade que a corrupção e a inflação estariam provocando na cultura nacional, permanece bem atual. O impacto mundial (nos EUA mereceu um remake de qualidade bem inferior) da saga de dois anti-heróis trambiqueiros que descobrem que, na verdade, a própria sociedade é feita de pequenos e grandes golpes, fez Bielinsky afirmar que o sucesso do filme simbolizaria “a globalização do salve-se quem puder”. Provavelmente porque Bielinsky explora dois grandes arquétipos da literatura e do cinema: o "Pícaro" e o "Trickster".
“Nove Rainhas” (Nueve Reinas, 2000) se tornou um dos mais aclamados filmes argentinos recentes. Quase não foi visto no Brasil, renegado
apenas a festivais e obscuras exibições. Nos EUA fez tanto sucesso que rendeu
um remake com qualidade inferior chamado “171” (Criminal, 2004).
À primeira vista o filme se trata de mais uma estória de anti-heróis, pobres diabos que vivem de pequenos golpes na espera de encontrar a oportunidade de aplicar a grande e definitiva trapaça que o faça subir na vida e ser respeitado por todos. Mas há algo de perturbador no roteiro escrito e dirigido por Fábian Bielinsky: e se esse pobre diabo descobrir que, na verdade, a sociedade inteira é formada por anti-heróis e que jogos e trapaças já fazem parte da rotina de todos os níveis sociais, das ruas até as instituições? E se a sociabilidade for uma ficção necessária para encobrir esta realidade crua?
À primeira vista o filme se trata de mais uma estória de anti-heróis, pobres diabos que vivem de pequenos golpes na espera de encontrar a oportunidade de aplicar a grande e definitiva trapaça que o faça subir na vida e ser respeitado por todos. Mas há algo de perturbador no roteiro escrito e dirigido por Fábian Bielinsky: e se esse pobre diabo descobrir que, na verdade, a sociedade inteira é formada por anti-heróis e que jogos e trapaças já fazem parte da rotina de todos os níveis sociais, das ruas até as instituições? E se a sociabilidade for uma ficção necessária para encobrir esta realidade crua?
Toda a narrativa do filme se passa nas ruas e lugares
públicos em Buenos Aires (bares, restaurantes e saguões de hotéis) em um espaço
de tempo de pouco mais de 24 horas, da madrugada até a manhã do dia seguinte.
Marcos (Ricardo Darín) e Juan (Gaston Paulus) vivem de pequenos trambiques até encontrarem-se por acaso em um golpe malogrado em uma loja de conveniência. Tornam-se sócios em uma oportunidade que Marcos chama de “uma oportunidade em um milhão”: uma milionária negociação com um milionário espanhol envolvendo uma série de selos raríssimos falsificados, as “nove rainhas” do título. O negócio tem que ser realizado imediatamente, custe o que custar, já que o milionário deixará a cidade na manhã do dia seguinte. Enquanto o experiente golpista Marcos ensina ao jovem e inexperiente Juan os segredos do “ofício”, conta com a ajuda da irmã Valéria (Letícia Bredice) que trabalha no hotel onde o espanhol está hospedado. Mas questões familiares pendentes azedam a relação com a irmã, dificultando ainda mais o golpe milionário.
Marcos (Ricardo Darín) e Juan (Gaston Paulus) vivem de pequenos trambiques até encontrarem-se por acaso em um golpe malogrado em uma loja de conveniência. Tornam-se sócios em uma oportunidade que Marcos chama de “uma oportunidade em um milhão”: uma milionária negociação com um milionário espanhol envolvendo uma série de selos raríssimos falsificados, as “nove rainhas” do título. O negócio tem que ser realizado imediatamente, custe o que custar, já que o milionário deixará a cidade na manhã do dia seguinte. Enquanto o experiente golpista Marcos ensina ao jovem e inexperiente Juan os segredos do “ofício”, conta com a ajuda da irmã Valéria (Letícia Bredice) que trabalha no hotel onde o espanhol está hospedado. Mas questões familiares pendentes azedam a relação com a irmã, dificultando ainda mais o golpe milionário.
O interessante na narrativa é que a cada passo dessa jornada
eles encontram outros ladrões e farsantes, o que torna Buenos Aires numa selva
onde ninguém está livre de sua pequena ou grande parcela de corrupção. Cada
revelação encobre outra mentira e cada promessa conduz a um novo golpe. A única
certeza que o espectador tem é que nada é o que parece ser, até um
surpreendente final.
De imediato chamam a atenção o ritmo frenético e a fotografia
despojada. Além disso, como em todo bom filme de anti-heróis, consegue atrair a
simpatia do público se igualando a filmes do calibre de “Butch Cassidy”, "Os Bons Companheiros” e “Os Suspeitos”.
A primeira leitura sobre o filme é que ele é um reflexo do
colapso econômico argentino no final da década de 1990 após o corrupto governo
Carlos Menem e um ambiente de sucessivos pacotes econômicos, desemprego e
crescimento da criminalidade urbana. O filme expressaria essa percepção de
amoralidade e desaparecimento da fronteira entre o bem e o mal que a inflação e
corrupção estariam produzindo na cultura nacional. Mas o que impressionou o
próprio diretor Bielinsky é que a identificação com esse sentimento não foi
apenas na Argentina: “O mais curioso é que pude comprovar que as pessoas de
outras grandes cidades do mundo também se identificam com esse sentimento. Há
uma certa globalização do ‘salve-se quem puder’” (“Nueve Reinas, La Varita Del
Guante Blanco” disponível em http://www.clubcultura.com/clubcine/nuevereinas/nuevereinas2.htm).
O Anti-herói: pícaros e “tricksters”
No universo narrativo a figura do anti-herói é associada
tanto ao chamado personagem picaresco como ao “trickster”.
Na história da literatura o Pícaro é o típico personagem de
romances e novelas surgidos na Espanha no século XVII e XVIII com
características atuais daquilo que chamamos de malandragem: amoralidade e
pragmatismo onde a astúcia é colocada a serviço de interesses da sobrevivência
e busca de vantagens egoístas.
As "Nove Rainhas" |
Não se confunde com o Trickster (do francês “triche” ou
“tricherie” – trapaça, furto, engano), uma pluralidade de personagens
encontrados em diferentes culturas, mas que partilham de um mesmo conteúdo
arquetípico: o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, ora
atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os. Enquadra-se no gênero
literário da Farsa onde os papéis sociais invertem-se e a ordem social é
contestada.
No cinema, o Pícaro possui duas funções bem claras: trazer
um alívio cômico à narrativa e, como companheiro desastrado do herói, abrir os
olhos do protagonista para a natureza humana. Do burrinho amigo do Sherek ao
robô companheiro de Lucky Skywaker em “Star Wars” vemos personagens cômicos,
covardes e potencialmente corruptíveis.
Porém, em “Nove Rainhas” vemos a amoralidade e o pragmatismo
do Pícaro se espalhar em metástase na sociedade Argentina, como fala o
experiente Marcos em mais uma lição ao inexperiente Juan:
“Quer ver ladrões? Venha. Aqueles dois... esperando alguém com a maleta do lado da rua. Aquele... está marcando ponto para uma vítima. Estão aí, mas não os vê. É disto que se trata. Estão, mas não estão. Então cuide de sua maleta, sua valise, sua porta... sua janela, seu carro, suas economias. Cuide do seu rabo. Porque estão aí e vão estar sempre. Ladrões. Não... isso é como os chamam. São marreteiros, violadores, corruptos, valentes... larápios, putas, simuladores, batedores, boêmios, escutas... arrebatadores, trombadinha, operadores, ladrões...”
Fabio Bielinsky tem um olhar desesperançado para a sociedade
Argentina: das ruas até um banco que quebra a certa altura do filme deixando
uma série de correntistas, inclusive o golpista Marcos, desesperados esmurrando
as portas, tudo exala a corrupção, mentiras e reveses.
Fascínio ou identificação pelo anti-herói?
Os anti-heróis de “Nove Rainhas” criam nos espectadores muito
mais identificação do que fascínio. Quando Bielinsky se diz surpreendido com
essa mesma percepção em outros grandes centros urbanos do mundo onde o filme
foi exibido, acaba confirmando o efeito globalizante da narrativa. Se no anti-herói
trickster nos encontramos fascinados ao ver um personagem que inverte os papéis
sociais e contesta criticamente a ordem, no pícaro apenas nos identificamos com
o demasiadamente humano.
Principalmente quando o roteiro de Bielinsky mostra que toda
a sociedade é picaresca, das ruas às instituições financeiras. À menor
oportunidade qualquer um pensará em tirar vantagem do próximo. Se a
sociabilidade for uma mera ficção, então o anti-herói é um trágico pobre diabo:
pensa que é esperto, mas ignora que, na verdade, toda a sociedade já está à
frente, tramando golpes ainda mais elaborados e institucionalizados. Essa é a
verdadeira dialética negativa do Malandro.
Salve-se quem puder!
A “globalização do salve-se quem puder” pode encontrar suas
bases mais profundas na própria forma de sociabilidade e da organização do
trabalho no mundo globalizado. Em 1983 em seu livro “Trabalho e Reflexão –
ensaios para uma dialética da sociabilidade”, o filósofo José Arthur Gianotti
descrevia como o trabalho perdeu a sua medida de representação no Capitalismo
Tardio com a crise do valor-trabalho. O chamado “valor-trabalho” tanto em Adam
Smith como em Marx era a medida de representação dos valores das mercadorias e
da riqueza social, criando vínculos sociais e unindo os três componentes de um
processo produtivo clássico mediado pelo capital: matéria-prima, o homem
(trabalho) e o produto. Nessa esfera da produção eram travadas todas as lutas e
discussões decisivas da sociedade.
Com uma sociedade dominada pela circulação, consumo e
serviços, essa esfera se sobrepõe à produção enquanto medida ou percepção de
riqueza e valor. Perde-se a materialidade do trabalho para ingressar numa nova
sociabilidade dominada pela mídia, aparência, credibilidade, e disputas de
construção de imagens e percepções (publicidade, relações públicas, marketing
etc.) que passam a ser mais importantes do que o produto em si mesmo.
A medida social parece se diluir em jogos onde o sabido
sobrepõe-se ao sábio, a retórica à verdade e o acidente à essência. Se a
engenharia de opinião pública substitui a Política e a construção da imagem
pessoal substitui a proficiência, talvez aí estejam as origens do “salve-se
quem puder” que permeia a sociabilidade globalizada: a desconfiança de que as
regras e referências desapareceram e de que nada mais resta do que a “vontade
de poder” traduzida pelo ardil e a astúcia na construção de aparências.
No final, a dialética negativa do malandro: a malandragem
deixa de ter contornos épicos e contestadores para ser incorporada por uma
sociabilidade picaresca.
Ficha Técnica
- Título: Nove Rainhas (Nueve Reinas)
- Direção: Fábian Bielinsky
- Roteiro: Fábian Bielinsky
- Elenco: Ricardo Darín, Gastón Paulus, Letícia Brédice
- Produção: FX Sound, Industrias Audiovisuales Argentinas S.A., Naya Films S.A.
- Distribuição: Buena Vista Home Entertainment
- País: Argentina
- Ano: 2000