Participei neste último sábado (12/12) de uma banca examinadora do trabalho de conclusão da pós lato sensu em cinema da Universidade Anhembi Morumbi. O trabalho era de Vivian Cristina Cardozo com o tema “Da Tragédia Moderna ao Jogo de Representação no Documentário Jogo de Cena de Eduardo Coutinho”. A apresentação oral de Vivian apenas confirmou-me o que senti na leitura do trabalho: uma potencial discussão sobre a presença da religiosidade e do sagrado no audiovisual.
Vivian inicia fazendo um histórico das transformações do conceito de tragédia na arte dramática: das trajetórias dos personagens míticos da antiguidade, passando pelas tragédias medievais e elizabetanas (momento de transição do herói coletivo para o herói indivíduo) até chegar a tragédia na Modernidade. Temos, então, um novo modelo estético ficalizado na angústia, sofrimentos e dilemas individuais. A Justiça é algo abstrata, restando ao homem isolado no mundo apegar-se à “religiosidade” para fazer frente à experiência da morte e da perda.
Vivian vai localizar este componente no documentário de Eduardo Coutinho Jogo de Cena, onde 23 mulheres relatam seus acontecimentos trágicos, “pequenas tragédias pessoais de mulheres comuns, que tentaram resgatar suas próprias histórias por meio da experiência audiovisual.”
O interessante é a aproximação que autora faz entre o foco trágico de Coutinho com elementos narrativos auto-reflexivos: atrizes que interpretam as protagonistas reais e que, mais tarde, falam para a câmera a dificuldade que tiveram para interpretar o papel, narrativa que incorpora elementos cênicos típicos do teatro etc. O jogo de representação de Coutinho (atrizes, cenários, visão frontal do espectador e personagens reais) cria situações ambíguas: ao entrar uma pessoa em cena, o espectador não sabe se é uma entrevistada ou atriz. O objetivo é produzir distanciamento, reflexão sobre as histórias contadas.
O resultado da pesquisa de Vivian foi a produção de um pequeno documentário dirigido pela autora, Aquarius, onde em aproximadamente 10 minutos vemos o depoimento de duas atrizes sobre experiências de perda e morte (também experimentados na vida pessoal da autora). Temos aqui o apego à “religiosidade”: sonhos que o papel volta para se despedir, a gravidez de uma das atrizes contrapondo-se com a morte (morte/renascimento) etc.
Cena de "Aquarius"
Que experiência “religiosa” é essa? Com certeza não uma religiosidade cristã tradicional, mas uma experiência muito mais mística do que propriamente religiosa. Faz parte da tragédia na Modernidade: isolado em um mundo aparentemente sem sentido, dominado por uma percepção de Justiça fria, distante e abstrata, o indivíduo apega-se a fragmentos de religiosidade como verdadeiras bóias para enfrentar a corrente. O resultado é uma percepção muito mais mística do que religiosa. Estamos nos aproximando de um espírito gnóstico de percepção do sagrado. É o componente central da Tragédia na Modernidade.
Tal qual a literatura Romântica dos séculos XVIII e XIX que experimentou a insuficiência da linguagem em representar esta natureza trágica da Modernidade, temos no pequeno documentário Aquarius de Vivian e em Jogo de Cena de Coutinho o recurso da IRONIA como forma de refletir esses limites da representação. Isto é, a única forma de representar através de um documentário esta natureza trágica do indivíduo e o seu apego a um misticismo gnóstico é através de uma narrativa irônica: assim como a realidade é uma ilusão ou, no mínimo, carece de um sentido imanente, da mesma forma a narrativa fílmica é ilusão e ambiguidade, exigindo do espectador distanciamento para desvelar os véus do ilusionismo cinematográfico.