quinta-feira, maio 30, 2024

'O Podcast': MacGuffin, luta de classes e paranoia viral audível



Uma jornalista perde a credibilidade e o emprego depois de uma reportagem catastrófica.  Tenta salvar sua carreira aceitando uma tarefa ignóbil e humilhante: começar um podcast. Um “podcast click bait” sobre mistérios e conspirações. Até que acaba tropeçando em um e-mail com um número de telefone que será a descida na toca do coelho de uma suposta conspiração global sobre “tijolos pretos” que surgem do nada, governos ou, quem sabe, aliens.  Esse é o filme australiano “O Podcast” (Monolith, 2022, disponível no Max) que utiliza o célebre recurso narrativo de Hitchcock: o “objeto McGuffin”- os “tijolos pretos” são apenas pretextos para evidenciar a ansiosa e paranoica viralidade audível podcast e a intrusão dos ressentimentos da luta de classes na bolha digital.  

O célebre cineasta Françoise Truffault entrevistou Hitchcock para o seu livro sobre o mestre do suspense, quando o entrevistado se referiu a “MacGuffin” como uma técnica de roteiro. “O que é um McGuffin?”, perguntou curioso Truffault. “É um aparelho para capturar leões nas montanhas escocesas”, respondeu. “Mas não há leões nas montanhas escocesas”, indagou ainda mais curioso. “Bem, então você vê, McGuffin não é nada!?”, disse o enigmático Hitchcock.

É justamente isso! Expressão criada por Hitchcock, “MacGuffin” em uma história nada mais é do que um objeto que motiva os personagens e faz avançar a narrativa, mas acaba tendo pouca relevância na história em si. A técnica é muito comum, principalmente em filmes de suspense. Ele pode até reaparecer no clímax da história. Mas é pouco relevante para a compreensão da trama.

O thriller de suspense O Podcast (Monolith, 2022) é um exemplo clássico desse recurso. Apenas que, além de impulsionar a narrativa, desvia a atenção do espectador. Criando uma tal ambiguidade que as plataformas de streamer o define ora como ficção científica, ora como drama psicológico... ou de suspense.

O “MacGuffin” aqui no caso são misteriosos tijolos pretos que surgem do nada na vida de pessoas aleatórias, sugerindo algum tipo de fenômeno global que pode estar associado a disseminação de algum tipo de doença psíquica. Ou algum tipo de invasão alienígena. Ou, quem sabe, também a algum tipo de conspiração governamental que teria começado na Guerra Fria.

Ao cabo, as informações que uma jornalista começa a cavar sobre esse mistério, na verdade voltam-se contra si mesma dentro da clássica situação do detetive pós-moderno – os tijolos pretos são apenas o pretexto para discutir sobre podcasters, Internet e a disseminação de hoaxes e paranoias. Ou como a própria Internet, outrora trazendo a promessa de ser uma biblioteca, hoje alimentando uma cultura de pânico e paranoia.

O Podcast, do diretor australiano Matt Yesely, tem a virtude de tornar o podcast cinematográfico, em um filme slow burn sobre a ansiedade crescente de uma cultura TikTok na qual nos deparamos com falhas na Matrix, Efeito Mandela ou uma sensação dispersa deque há “algo errado”, seja com o mundo ou com as pessoas.



Claro, essa ansiedade não é nova. Mas parece que a cultura podcast amplificou essa percepção conspiratória e paranoica sobre a natureza da própria realidade. Ou uniu as pessoas em torno de um entendimento em comum que nada é o que parece. Depende do ponto de vista que olhamos qualquer tema.

O Podcast gira em torno de uma jornalista cuja credibilidade no mercado de notícias despencou depois de um erro de apuração em uma reportagem que no filme permanece tentadoramente incerto – as pistas nos fazem imaginar em algum tipo de escândalo no passado que continua repercutindo.

Exilada na casa da sua família, sozinha enquanto seus pais viajam, ela decide se juntar ao mundo superlotado e, muitas vezes, jornalisticamente questionável do podcasting – criar um programa chamado “Beyond Believable”, um podcast de investigações em torno de enigmas e conspirações que podem envolver de governos a alienígenas.

Uma jornalista em crise que se transforma em mais um investigador de Internet cujos instrumentos são smartphones, e-mails, redes sociais e sites de Internet. O mundo digital tautista, autorreferencial como a própria vida digital.

A transformação da própria natureza do trabalho jornalístico: da velha reportagem de jornalistas “em pé”, isto é, que iam a campo, agora temos jornalistas “sentados” – suas fontes são vozes e imagens espectrais de um ecossistema digital.

O Filme

O Podcast é um típico filme da estética da época da pandemia Covid-19: a atriz Lily Sullivan faz o único personagem isolado, atuando em um ambiente psicologicamente claustrofóbico (mas arquitetonicamente amplo em estilo minimalista, com uma ampla visão do jardim em uma casa suburbana). A trama sempre gira em torno de conversas telefônicas, e-mails e vídeo conferências. Além das sessões de gravações dos podcasts.



Ela caiu em desgraça no meio jornalístico depois de uma catastrófica reportagem em que não apurou o histórico ou intenções de uma fonte. Frustrada, ela embarca num projeto de um podcast que é uma espécie de programa sobre crimes e enigmas assustadores sobre mistérios mais estranhos do que a ficção - ou melhor, como ela confessa em um momento de frustração, um "podcast clickbait" para ouvintes com "níveis de QI abaixo de um macaco lobotomizado".

Ela ficou muito longe dos seus dias de glória. Mas, resignada, aceita embarcar nessa nova mídia digital.

Sua vida muda quando ela recebe um e-mail anônimo com o tema “o tijolo” e um número de telefone. Quando liga para o número indicado ela começa uma jornada por uma toca de coelho fenomenalmente concebida que soa exatamente como algo que alguém tropeçaria online no meio da noite. 

A breve versão é que algumas pessoas por aí “receberam” um enigmático “tijolo preto” — como elas entraram em posse delas permanece perturbadoramente vaga, aumentando o mistério. Tijolos pretos que parecem ter algum tipo de poder sobrenatural. Eles geralmente são precedidos por uma visão aterrorizante — um homem vê seu irmão que morreu anos antes, enquanto outro fala com a criança que nunca o conheceu — e eles geralmente são seguidos pelo que poderia ser chamado de um sentimento esmagador de pavor.

Nossa protagonista está hesitante no início, mas ela começa a suspeitar que há algo nessa história de tijolos à medida que seus números de podcasts continuam a aumentar, junto com a audiência. 



Temos várias sequências em que acompanhamos a construção de uma realidade para um podcast: como a jornalista emenda cuidadosamente trechos de gravações de áudio, eliminando trechos que não corroboram com a construção da paranoia sobre os tijolos pretos.

O roteiro de Lucy Campbell está lidando habilmente com muitas ideias aqui, incluindo o que poderia ser chamado de viralidade audível - a sensação de que uma história aparentemente vai se tornando mais verdadeira à medida que se repete.

É quando vamos percebendo que o tal “tijolo preto” cada vez mais torna-se um perfeito “McGuffin”: o misterioso objeto é apenas um pretexto para a discussão principal: a protagonista é o típico detetive pós-moderno – as investigações vão colocando a própria história da sua família como parte da resolução do enigma.

Uma família de classe média alta envolvida numa história de luta de classes com uma empregada doméstica e sua pequena filha, injustamente acusada por depredar os caros móveis de grife da família. E ser condenada a ressarcir os prejuízos – e o tijolo preto encontrado pela mãe vira parte do pagamento, como uma espécie de peça artística negociável com galerias de arte.

O filme faz questão de tornar tudo ambíguo até o final – como faz um bom MacGuffin, ele retorna no clímax final para deliberadamente deixar pontas soltas.

A investigação ora sugere uma deliberada criação de uma pandemia por uma conspiração governamental, ora uma invasão alienígena.

Mas a única pandemia visível é da viralidade audível – a exploração da ansiedade e paranoia que só cresce no ecossistema da Internet. 

E a única realidade alienígena é a do demasiado humano: os ressentimentos de uma luta de classes que emerge como um fato tão extraterrestre como uma invasão alien.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: O Podcast

Diretor:  Matt Vasely

Roteiro:  Lucy Campbell

Elenco: Lily Sullivan, Ling Cooper Tang, Ansuya Nathan, Terence Crawford

Produção: Black Cat White Rabbit Productions, Adelaide Film Festival

Distribuição: Max

Ano: 2022

País: Austrália

 

 

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