Vivemos mais um hype na grande mídia sobre as chamadas “fake news”. Que agora miram a calamidade ambiental no Rio Grande do Sul. Os “colonistas” do jornalismo corporativo mostram todo o seu repertório de indignação moral e amaldiçoam essa praga supostamente exclusiva das redes sociais. Mais uma vez, o hype midiático sobre fake news ocorre como estratégia diversionista para esconder algo. Dessa vez, a forma inovadora pela qual o chamado “jornalismo profissional” está fornecendo munição para algo que vai muito além das “fake news”: uma estratégia ampla de contrainformação com dois objetivos: tirar o protagonismo de Lula e espalhar cascas de bananas orçamentárias (sob a lupa do TCU) para, quem sabe, servir de álibi para um processo de impeachment. A novidade semiótica é o “jornalismo metonímico para recorte”: como passar munição para a extrema-direita por baixo da mesa.
Não obstante o fenômeno da desinformação ou notícias falsas se confundirem com a própria história do jornalismo, de repente a nova geração de jornalistas descobriu o fenômeno das “fake news”, surgindo uma nova especialidade no ramo: os checadores em agências (ou “plataformas”) de “fact-checking”.
Essas expressões, faladas na língua inglesa, certamente ganham uma aura hype (“fake news” e congêneres como “pós-verdade” foram eleitas “palavras do ano” pela Universidade de Oxford em 2016 – popularizado pela vitória de Trump) e de novidade para um fenômeno que existe desde que Gutenberg inventou a prensa em 1447.
Se sabemos que as notícias falsas e campanhas de desinformação sempre acompanharam a grande mídia (do caso da Escola Base dos anos 1990 à ficha falsa de Dilma Rousseff do DOPS publicada na primeira página da Folha de São Paulo), por que o jornalismo corporativo, além de pesquisadores e acadêmicos da área, apressou-se a definir “fake news” como uma grande novidade?
Ao longo de diversas postagens (veja links ao final), esse Cinegnose descreveu como o hype das fake news foi CONVEEEEENIENT para o chamado “jornalismo profissional”:
(a) Motivo de marketing: assim como como o “orgânico” e o “saudável” criou o selo diferencial “premium” no mercado industrializado de alimentos, da mesma forma no mercado de notícias o “fact-checking” criou a notícia supostamente livre de toxinas, isto é, mentiras – mas não livre da “manipulação”.
(b) Motivo mercadológico: o avanço das mídias de convergência tecnológica na virada de século confrontou a hegemonia das mídias de massas. O debate em torno das “fake news” surgiu como uma engenharia de opinião para criminalizar a Internet e redes sociais: elas seriam intrinsicamente criminógenas – um ecossistema de informação que viabiliza golpes cibernéticos, pedofilia, bullying, mentiras, vício etc.
(c) Motivo epistemológico: somente o jornalismo profissional e corporativo, com o complexo de gatekeepers, editores e hierarquia na produção das notícias garantiriam à informação qualidade. Sob a grife do “jornalismo investigativo” – que confunde “investigação” com “apuração” e “checagem”. “Checagem” ou “apuração” é tautológico (checar se o conteúdo de um release corresponde à fonte emissora), enquanto “investigação” tem a ver com busca de informações que criem cenários, contextos e relações de causa e efeito.
Jornalismo de Guerra 2.0
Neste momento de Jornalismo de Guerra 2.0 (a volta do modo alarme do jornalismo corporativo para desestabilizar o governo Lula e garantir as conquistas neoliberais dos governos Temer e Bolsonaro) a retórica das fake news ganha uma nova utilidade, o item (d)
(d) Ocultar a forma como o jornalismo corporativo está abastecendo as redes de extrema-direita com munição para a criação de fake news – na verdade, uma grande campanha de desinformação. Principalmente nesse momento da catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul. Tudo porque para a grande mídia, o protagonismo de Lula deve ser, no mínimo, relativizado. Enquanto o ativo político midiático, o governador Eduardo Leite, deve ser protegido e empoderado com manchetes em construções frasais assertivas.
Até aqui, a grande mídia vem dando pernas à agenda bolsonarista e de extrema-direita (p. ex., a polêmica das “saidinhas”), tornando temas diversionistas em debates relevantes para a opinião pública. Porque debatido pelos seus “colonistas” em canais fechados de notíciais.
Porém, com a involuntária volta por cima de Lula, após o fracasso das comemorações do Primeiro de Maio, no protagonismo pelo socorro à calamidade no RS, o jornalismocorporativo mais uma vez está tapando o seu nariz para mexer na lama psíquica da extrema-direita. Se bem que “remotamente”, como em uma guerra por procuração: apenas fornece a matéria-prima, a munição para as redes bolsonaristas processarem com o expertise alt-right de comunicação.
Como? Através da grande novidade semiótica: o jornalismo metonímico de recorte.
Jornalismo metonímico
O jornalismo metonímico não é uma novidade. Principalmente na forma de “contaminação semiótica”: relativo ao conceito de metonímia, figura de retórica que retira a palavra do seu contexto semântico normal por ter uma relação de significação de contiguidade, material ou conceitual.
No caso do jornalismo, caracteriza-se pela “contaminação metonímica” entre signos de natureza diversa (texto, imagem etc.) segundo a seguinte fórmula: 1 + 1 = 3, isto é, uma notícia que contamina outra notícia totalmente diversa pode produzir uma terceira notícia totalmente diversa e ideologicamente intencional.
Uma contaminação produzida por relações de contiguidade textuais ou espaciais (diagração, proximidade texto e foto etc.), como no exemplo acima em que a proximidade do numeral “1 milhão” (relativo à notícia do censo escolar) contamina foto de manifestação bolsonarista em São Paulo. 1 + 1= 3: tinha 1 milhão na Avenida Paulista?
Claro, uma contaminação subliminar, fenomenológica.
Jornalismo metonímico de recorte e impeachment
Porém, a grande novidade é o jornalismo metonímico de recorte: uma parte é tomada pelo todo: a construção frasal da manchete sugere um significado contraditório em relação ao lead da matéria; ou, no caso do jornalismo eletrônico, o GC no rodapé da tela contraria aquilo que o entrevistado está dizendo.
O objetivo é oferecer material para recortes para serem ressignificadas nas postagens dos perfis de extrema-direita. Vejamos os exemplos abaixo:
No programa Estúdio I, do canal fechado Globo News, o ministro da Agricultura e Pecuária Carlos Fávaro explicava o motivo da negociação do Governo em importar arroz, diante do caos climático de RS. O ardil das perguntas dos “colonistas” de plantão (Andreia Sadi et caterva) era bombar a ameaça de desabastecimento com a destruição das plantações de arroz no Estado.
Pacientemente explicava que o abastecimento estava garantido porque a maior parte da safra já estava colhida. O arroz importado seria uma forma para reconstruir os estoques reguladores do Governo (desmantelado por Bolsonaro) para evitar movimentos especulativos de preços. Principalmente nesse momento de movimentos deliberados de contrainformação.
Não obstante, o GC no rodapé da tela permanecia “negociação de arrozpara evitar desabastecimento”. O contrário do que o ministro dizia.
A imagem da tela é um ótimo material para contrainformação (muito mais sério do que a acusação moral das “fake news”) – recorte o vídeo ou, quem sabem, coloque uma voz em Inteligência Artificial na boca do ministro.
O segundo caso da CNN é a munição perfeita para a atual onda de contrainformação de que Lula não quer ajudar um Estado que não votou nele.
Enquanto a manchete sugeria que foi o Governo Federal repassou menos verbas do que deveria (deliberadamente ou por incompetência – afinal... é o Estado), o lead da matéria estampava o contrário: o atraso está relacionado à falta de projetos que precisam ser apresentados pelas prefeituras.
Uma armadilha para o impeachment |
O que ficou claro na tentativa de “lacração” nas redes do prefeito de Farroupilha, Fabiano Feltrin. Histérico, o prefeito grava um vídeo da conversa com o ministro da Secom, Paulo Pimenta, que o ataca de maneira hostil, afirmando que não recebeu recursos do Governo Federal.
Pimenta falou do envio de R$ 300 mil para as primeiras 72 horas e de que a prefeitura ainda não tinha enviado o plano de trabalho para a formalização do pedido e a definição do tamanho da verba, para o envio de mais recursos. Quando Pimenta propôs um debate racional, o prefeito bateu o telefone na cara do secretário.
Sabemos de que essa ausência de formalizações, enquanto os prefeitos gritam por envio de bilhões a fundo perdido, é uma armadilha para Lula – sob a lupa do TCU, o presidente facilmente poderia, em três ou quatro meses, ser alvo de processo de impeachment. Enquanto o Congresso bombaria uma “CPI das Enchentes no RS”.
No caso do jornalismo metonímico de recorte da CNN o propósito é bem claro: recortar a manchete e soltar nas redes como prova da beligerância política de Lula, sob a “credibilidade” do jornalismo corporativo.
Por isso, toda a escandalização da grande mídia com as “fake news” sobre a calamidade em RS é hipócrita. Por baixo da mesa, trafica munição para a estratégia de contrainformação da extrema-direita.
Pelo menos, o presidente dos EUA, John Biden, é mais transparente: diz com todas as letras que continuará enviando armas, tanto para a Ucrânia quanto para Israel.