A vida é feita de escolhas que fazemos em momentos cruciais que irão nos definir para sempre. Desde que os paradoxos da mecânica quântica, o experimento imaginário do gato de Schrödinger e a sua interpretação de Hugh Everett que abriu a possibilidade da existência de muitos mundos com diferentes versões de nós mesmos, parece que a angústia do “para sempre” ficou ainda maior, na literatura e no cinema: será que fiz a escolha certa? E se fosse possível ver a escolha da minha outra versão? Poderia ter uma segunda chance? A série Apple TV “Matéria Escura” (Dark Matter, 2024-) é mais uma produção na onda atual de filmes sobre multiverso. Embora o impacto cultural dos enigmas quânticos esteja no século XX, é nesse século que a angústia da escolha é ampliada, no estranho zeitgeist que domina a atualidade. Um gênio da física bem-sucedido cria uma maneira de viajar pelo multiverso para trocar de lugar com o sua outra versão menos bem-sucedida, invertendo a premissa tradicional do gênero.
Desde a vitória do Brexit em 2015 e eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA no ano seguinte, parece que o mundo foi jogado para algum universo alternativo.
Um mundo de catástrofes climáticas e que ideias intangíveis da qual dependíamos e considerávamos como óbvias e claras passaram a não funcionar mais: Democracia, Estado de Direito, Verdade, Consenso etc.
No caso brasileiro, desde a vitória eleitoral de Bolsonaro e a escalada da pós-verdade nas estratégias de comunicação política da extrema direita.
A realidade parece que se tornou desorientadora o suficiente para a indústria do entretenimento nos oferecer uma enxurrada de histórias sobre universos alternativos, realidades paralelas e emaranhados quânticos: dos multiversos dos mundos cinematográficos da Marvel ao vencedor do Oscar Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, passando por séries como Constelação da Apple TV.
E, por que não, também a série O Problema dos 3 Corpos no qual passado, presente e futuro ocorrem simultaneamente num mesmo enredo. Um terreno fértil não só para a criatividade dos roteiristas (p.ex., você pode matar diversas vezes um personagem, mas sempre aparecerá uma nova versão alternativa) como também para o lucro dos estúdios.
Se esse universo misterioso quântico se tornou tão lucrativo, é porque está sintonizado a esse estranho zeitgeist do século XXI.
Este Cinegnose já discutiu em postagens anteriores como a física quântica impactou a cultura moderna, principalmente em dois temas: a viagem no tempo e o multiverso. Primeiro, o abandono da concepção clássica do tempo (entrópica) pela possibilidade de alterar o passado, criando linhas de tempo exponenciais; e com o multiverso, a existência de realidades não só paralelas, mas alternativas – como em “O Homem do Castelo Alto”, livro de Philip K. Dick e a série recente, no qual visitamos um mundo em que Alemanha e Japão ganharam a Segunda Guerra Mundial.
Certamente, o principal impacto íntimo foi o mito da segunda chance: será que el algum lugar existe uma versão bem-sucedida de mim mesmo ou mesmo pior? Que fez outras escolhas e traçou novos caminhos? Eu poderia pelo menos visualizá-los no passado ou no futuro para consertar erros e ganhar uma nova chance?
Todo esse impacto foi desenvolvido tanto no cinema quanto na literatura no século passado – e na Filosofia, mereceu as reflexões existenciais em torno da angústia feitas por Sartre.
Mas nesse século, parece que essa angústia da segunda chance ganhou uma nova dimensão, mais coletiva. Principalmente com o fenômeno do efeito bolha nas redes sociais e Internet e a relativização de noções dadas como óbvias como Verdade, Realidade e Ciência que trouxe talvez essa sensação social de entrarmos em alguma realidade alternativa – o crescimento de teorias em torno do chamado Efeito Mandela e a tese da Internet morta.
Como reflexo direto dessa zeitgeist que traçamos acima, temos agora a série da Apple TV Matéria Escura (Dark Matter, 2024), uma adaptação em nove episódios do livro homônimo de Blake Crouch de 2016.
Sua premissa é interessante: um gênio da física poderoso e bem-sucedido cria uma maneira de ir para um universo paralelo para trocar de lugar com o sua outra versão menos bem-sucedida. Interessante porque, em primeiro lugar, parece inverter a premissa tradicional do gênero: invejamos sempre a versão melhor de nós mesmos vivendo em algum lugar do multiverso.
Em segundo lugar, a série revisita a experiência imaginária que deu origem a tudo: o experimento do gato de Schrödinger, de 1935. Só que, dessa vez, em uma escala maior: uma enorme caixa com uma liga metálica inédita capaz de vedar completamente o contato do interior com o mundo exterior, contendo humanos que viverão na prática o momento da sobreposição quântica – verificada apenas no paradoxal mundo das micropartículas.
A Série
O professor de física Jason Dessen (Joel Edgerton - doravante conhecido como Jason 1) está levando uma vida tranquila como professor numa universidade de Chicago para alunos sonolentos e desatentos. Volta para casa todas as noites para sua amada esposa, Daniela (Jennifer Connelly), e o envolvente filho adolescente Charlie (Oakes Fegley).
Alunos tão sonolentos que são incapazes de ter a curiosidade despertada para a aula sobre o experimento imaginário do gato de Schrödinger (a chave de compreensão de toda a série).
Para aqueles que não conhecem o experimento, podemos descrevê-lo da seguinte maneira: um gato está preso numa caixa que contém um recipiente com material radioativo e um contador Geiger. Se o material soltar partículas radioativas e o contador detectar, acionará um martelo que, por sua vez, quebrará um frasco com veneno, matando o bichano. De acordo com as leis da física quântica, a radioatividade pode se manifestar tanto como onda quanto partícula. Ou seja, na mesma fração de segundo, o frasco de veneno quebra e não quebra, produzindo duas realidades probabilísticas simultâneas – sobreposição quântica.
Segundo o raciocínio, as duas realidades aconteceriam simultaneamente dentro da caixa, até que fosse aberta – a presença de um observador e a entrada da luz intervindo nas partículas acabariam com a dualidade no fenômeno do decaimento quântico.
O cotidiano do professor de meia idade é monótono, mas feliz, confortável e previsível, como requer a vida familiar.
Mas seus olhos cintilam quando seu amigo dos tempos de faculdade, Ryan (Jimmi Simpson), ganha um prestigiado prêmio de física e um milhão de dólares, criando a tensão: ele fez a opção da vida familiar, enquanto seu amigo o sucesso do reconhecimento da pesquisa científica, optando pela vida de solteiro e vivendo em frios laboratórios de pesquisa. Será que Jason fez a melhor escolha? Todos nós tivemos momentos de dúvida sobre o caminho não tomado.
Jason 1 caminha de volta para casa tarde da noite após uma festa de comemoração pelo prêmio de Ryan. Mas ele é sequestrado e drogado pelo Jason 2 - a versão de si mesmo que dedicou sua vida à ciência, se tornou rico e famoso, e secretamente desenvolveu uma maneira de pular através dos universos para substituir por Jason 1 e pudesse desfrutar de todas as bênçãos da vida familiar e deixar seu outro eu aparentemente amnésico no mundo de Jason 2.
Se Jason 1 teve um lampejo de inveja pelo sucesso de Ryan, sua outra versão bem-sucedida por algum motivo inveja a vida pacata e familiar de Jason 1.
A partir daí, duas histórias se desenrolam. Um é um thriller doméstico, já que Jason 2 tenta evitar ser desmascarado como um impostor, procurando os convidados do jantar que ele deveria conhecer há anos. Daniela sente que algo mudou, principalmente na cama – Jason 2 é um incansável sedutor.
A outra história é a pura ficção científica, enquanto Jason 1 gradualmente vai deduzindo o que aconteceu no mundo alternativo que Jason 2 abandonou (os meios de comunicação abordam o seu desaparecimento, criando um grande circo midiático) e para depois fugir como um Odisseu da alta tecnologia para viajar através dos corredores do multiverso. Tentando reencontrar a sua vida familiar perdida.
Jason 1 está acompanhado pela parceira de Jason 2, Amanda (Alice Braga), uma psiquiatra que preparou psiquicamente os viajantes do multiverso anteriores (não sabemos o quão bem eles se saíram, pois não conseguiram voltar). Ela mostra disposição para fugir e entrar no cubo de sobreposição quântica que Jason 1 abandonou em seus estágios iniciais, mas que Jason 2 passou a aperfeiçoar, ingerindo os compostos psicoativos experimentais necessários para ver e escolher todos os universos disponíveis.
Jason 1 e Amanda partem para uma viagem para partes variadas do multiverso em busca de seu verdadeiro lar. Versões alternativas de Chicago, de brilhantes e espetaculares a apocalípticas e devastadoras, são apresentadas.
Jason 1 vai encontrar as diversas versões da esposa Daniela e de seus amigos nas diversas realidades paralelas, seguindo a chamada “Interpretação dos Muitos Mundos” de 1957 feita por Hugh Everett na Universidade de Princeton.
A pós-modenidade dos Muitos Mundos
Na interpretação de Everett, esses dois gatos (morto e vivo) passam a ser considerados dois mundos independentes e sobrepostos sobre o mesmo tempo/espaço. Não são mais considerados uma “decoerência quântica” fruto da intervenção do observador que romperia com a função de onda. Everett considerava uma existência ontológica para cada um desses mundos, ou “subsistemas”, como afirmava.
Ou seja, cada momento de escolha em nossas vidas abriria diversas versões de decisões que não tomamos – universos alternativos sobrepostos no cosmos.
Não precisa dizer que à medida que os episódios avançam (estão sendo liberados semanalmente pela Apple TV) as histórias e as linhas do tempo se tornam cada vez mais complicadas, com Jason 1 e 2 confrontando suas escolhas e arrependimentos.
A mecânica quântica, o gato de Schrödinger e a interpretação de Everett incendiaram tanto a imaginação literária quanto cinematográfica. Mas também despertaram no século XX essa questão que o princípio da desconstrução pós-moderna da realidade: será que fiz a escolha certa? E se eu tivesse optado pelo outro caminho?
Aquela sensação pós-moderna de alienação expressada pela música dos Talking Heads de 1980 “Once a Lifetime”:
E você pode dizer a si mesmo/Essa não é minha linda casa/Essa não é minha linda esposa/O que é a casa bonita?/Onde a estrada vai?/Estou certo?/Estou errado?/Meu Deus! O que eu fiz?
O século XXI potencializa essa angústia sartreana da liberdade da escolha. Porque para cada lado que olhamos, com a crise daquelas ideias intangíveis que davam alguma solidez em nossas escolhas (Verdade, Ciência, Democracia, Consenso etc.), parece que sempre faremos a escolha errada.
Ficha Técnica |
Título: Matéria Escura (série) |
Diretor: Logan George, Celine Held |
Roteiro: Blake Crouch |
Elenco: Joel Edgerton, Jennifer Connelly, Alice Braga, Jimmi Simpson, Dayo Okeniyi, Oakes Flegley |
Produção: Sonny Pictures TelevisionMatt Tolmach Productions |
Distribuição: Apple TV + |
Ano: 2024- |
País: EUA |