Essa última semana foi marcada por três coincidências significativas: a calamidade pública no Rio Grande do Sul, as esvaziadas comemorações do Primeiro de Maio e a noite em que “Copacabana virou a Broadway” (apud Globo News): o show gratuito de Madonna para um milhão e meio de pessoas como parte da celebração dos 100 anos da banca financeira. Mais precisamente, do Banco Itaú.
Aparentemente três episódios diversos (tragédia, fracasso e festa) – com os direitos de transmissão, no final de semana a Globo simplesmente ignorou a calamidade gaúcha e mobilizou seu jornalismo para bater o bumbo da “Madonna in Rio”. No máximo, deslocou um repórter setorista de Brasília para cobrir a tragédia. Isso porque Lula e ministros se dirigiram ao Estado. Num movimento da mídia hereditária escantear o atônito governador Eduardo Leite, para transformar a catástrofe ambiental estadual num problema de âmbito do Governo Federal.
Por que “coincidências significativas”? Por sincronicamente acontecerem na mesma semana. Se a convicção sincromística do escritor Norman Mailer estiver correta em sua obra “Existential Errands”, no despertar de grandes eventos ocorrem estranhas coincidências significativas como fossem espasmos da realidade. Para depois retornar ao “normal”. Ou ao “novo normal”, bordão repetido desde a crise da pandemia COVID-19.
Seria como se o cosmos, em seus movimentos de pulsação e ressonâncias, quisesse nos alertar sobre alguma coisa que ainda está para acontecer
Por serem sincrônicos, estão conectados numa simples lógica de causa-efeito, como bolinhas batendo uma nas outras como num jogo de bilhar.
Se não, vejamos...
Causa: Madonna transforma Copacabana na “Broadway brasileira”
Em março o banco Itaú anunciou o patrocínio da vinda da Rainha do Pop, Madonna, ao Brasil, em meio a uma sequência de quatro shows na Cidade do México que encerraria a “The Celebration Tour” que celebrava os 40 anos de carreira da artista.
Mas o Itaú, uma instituição financeira que lucrou 35,6 bilhões de reais no ano passado cujo setor ainda aumentou os juros do rotativo do cartão de crédito de 411,9% para 421,3% em março, não deixou isso acontecer.
Por cifras não reveladas por impedimento contratual, o banco conseguiu um “puxadinho” depois do final da tour: um show gratuito da cantora no Rio. Isso depois que Madonna ter gravado um vídeo publicitário comemorativo dos 100 anos do Itaú – Madonna como metáfora da trajetória do banco: longevidade e capacidade de se transformar ao longo dos anos.
As mais de um milhão de pessoas nas areias de Copacabana não celebraram apenas a oportunidade de ver Madonna e toda o seu entourage de graça. Celebraram por tabela a hegemonia da financeirização e a vitória daqueles que são os principais credores do Estado, impondo à nação a política monetária que mais lhe convém.
Mais do que isso, impõem uma certa concepção de “desenvolvimento nacional” mais parecida com o modelo de uma neocolônia digital: uma economia exportadora de commodities com um mercado interno baseado no crescimento do setor de serviços e todo o seu substrato ideológico (empreendedorismo, flexibilização, precarização etc.) e num acelerado processo de desindustrialização.
Processo acelerado com a Operação Lava Jato, cujo Estado do Rio de Janeiro foi um dos mais atingidos pela destruição da cadeia de produção do petróleo e gás, desmanche da indústria naval e da engenharia nacional.
Essa concepção de desenvolvimento nacional que interessa a banca financeira ficou patente com a exigência de que os governos estaduais e municipais desembolsassem 20 milhões de reais para os custos da infraestrutura pública e logística do evento. Sob o argumento de que o show da Rainha do Pop faria entrar na economia da cidade 300 milhões de reais.
E toca os telejornais da grande mídia mostrarem ambulantes e comerciantes felizes com o boom de turistas, para legitimar esse “projeto de nação” reforçado pela retórica midiática de que “o Rio está recuperando sua vocação para o turismo”.
O saudoso jornalista Paulo Henrique Amorim dizia que a Lava Jato iria transformar a gigante da engenharia Odebrecht num quiosque no Farol da Barra na Bahia. Ele não estava brincando...
Uma empresa com lucros bilionários num dos maiores salões de festas do planeta e sem pagar um tostão por isso, reunindo num cercadinho privado os cerca de 7.500 convidados VIP às custas de dinheiro público.
Pois é essa banca financeira que paga a grande mídia hereditária a bombardear diariamente os dois principais pilares desse projeto de Nação: (a) necessidade de ajustes brutais das contas do Estado (afinal, a banca é o seu principal credor), com superávit orçamentário e déficit nos programas sociais e defesa civil; e (b) destruição das leis trabalhistas, precarização, dessindicalização da força de trabalho sob a ideologia do empreendedorismo e meritocracia.
Efeito 1: o fiasco das comemorações do Primeiro de Maio
O fiasco da principal comemoração do Primeiro de Maio realizado no estacionamento da Neo Química Arena, do Corinthians, com participação de Lula e ministros, é um efeito do pilar (b) comemorado no show do sábado com a entrada dos 300 milhões na economia carioca. Esse projeto de (sub)desenvolvimento da Banca implica numa economia de serviços e commodities, cujo esvaziamento do Primeiro de Maio é a consequência mais visível: saem os proletários entram os precarizados.
O resultado direto das políticas neoliberais na veia nos governos Temer e Bolsonaro foi a redução de sindicalizados nos últimos dez anos: de 16,1% a 9,2%. Golpeados ainda com o fim do Imposto Sindical na reforma trabalhista de Michel Temer em 2017, o que vimos no Primeiro de Maio é o quadro de baixíssima capacidade de mobilização.
Junto com o Itaú, a Rainha do Pop veio celebrar essa vitória retumbante de uma ideologia que não só se tornou hegemônica, mas que também veio revelar o chamado controle total de espectro.
Resultado da guerra híbrida brasileira que colocou Temer e Bolsonaro no Estado para gerir o desmanche generalizado, o controle total de espectro mostrou como todo o espectro político está tomado pela paralisia estratégica: de figuras como Luciano Hulk (um dos VIPS do cercadinho do Itaú), aos diversos progressismos da esquerda, a artista virou uma espécie de heroína unânime: para o “isentão” Huck, Madonna foi o remédio da polarização política; e para a constelação de progressismos, a voz que deu “potência” ao LGBTQI+ e se levantou contra o ódio e preconceito do bolsonarismo.
Efeito 2: a calamidade pública do Rio Grande do Sul
O governador do RS Eduardo Leite é um dos ativos ideológicos da grande mídia, ao lado de Tarcísio de Freitas e Caiado. Esses últimos, como herdeiros cada vez mais desavergonhados do bolsonarismo.
Mas Eduardo Leite é diferente: para a grande mídia ele é um expoente da promessa de renovação da direita democrática. A esperança de o jornalismo corporativo no futuro não seja mais obrigada sujar as mãos na lama psíquica que sustenta a extrema-direita – muito embora Leite flerte com o bolsonarismo.
Ele é jovem, com convicções liberais e homossexual assumido. Ou seja, um simbolismo de modernidade, a própria encarnação brasileira do neoliberalismo progressista- o arco ideológico que vai do identitarismo e questões de gênero até chegar às maldades neoliberais.
Por isso o noticiário ofereceu um imenso guarda-chuva para ele se proteger da calamidade: agora o foco está em Lula e seus ministros – “o governo acertou o timing? Podia ter feito mais?”, como já ensaiou César Tralli da Globo News. Quanto tudo passar, esperam-se as indefectíveis pressões da Faria Lima e a gritaria do jornalismo corporativo sobre “ajustes” das contas públicas necessários para gerir o “rombo” deixado pela reconstrução do RS.
Enquanto a cobertura midiática destaca as “cobranças” e “alertas” postadas por Eduardo Leite nas redes sociais. Principalmente a cobrança de um “Plano Marshall” para o Estado
Um guarda-chuva imenso necessário porque a calamidade no RS é consequência direta do primeiro mandamento da gestão neoliberal: em primeiro lugar, o ajuste das contas públicas. Comemorado no início desse ano pelos jornalões como um exemplo de gestão: superávit de 3,3 bilhões de reais com as privatizações e Regime de Recuperação Fiscal.
O resultado: desmanche da Defesa Civil e das políticas preventivas e de legislação ambiental. Apesar da avant-première da calamidade desse ano acontecida em setembro do ano passado.
Temos o segundo efeito sincrônico do show de Madonna: enquanto Porto Alegre estava debaixo d’água numa enchente histórica, Madonna e um milhão e meio de pessoas estavam eletrizadas, celebrando o show da hegemonia da Banca financeira.
O show da comemoração da hegemonia ideológica do primeiro pilar do projeto de Nação patrocinado pela financeirização: ajustes brutais das contas públicas a todo custo.
E esse custo veio ser cobrado no Rio Grande do Sul que nesse momento tornou-se a vitrine perfeita dos resultados da distopia neoliberal – reparem como as imagens das ruas do Centro de Porto Alegre lembram cenas do sci-fi estrelado por Hugh Jackman, Caminhos da Memória (2021): um mundo pós-catástrofe climática na qual o nível dos oceanos sobe drasticamente, invadindo ou afundando cidades.
A elite monopolizou as terras secas, condenando as classes subalternas a viverem em áreas submersas ou quase – próximas a diques que eventualmente irão ceder com o aumento gradual do nível do mar.
Madonna e o fetichismo da liquidez
Mas há ainda uma conexão mais profunda entre o banco Itaú e Madonna, para além da metáfora da “longevidade e capacidade de se transformar ao longo dos anos”, como justificou Eduardo Tracanella, diretor de Marketing do Itaú.
Dos Yuppies na década de 1980 aos atuais “hipsters” da Faria Lima, a financeirização e a ideia da liquidez financeira (“dinheiro crédito”, “dinheiro contratual”, “dinheiro eletrônico” etc.) sempre teve sex appeal – financeirização e liquidez representam o futuro, a modernidade tecnológica, velocidade, algo esperto e inteligente.
Madonna foi a artista seminal dos novos tempos neoliberais do Estado mínimo e desregulamentações na Era Reagan-Thatcher dos anos 1980.
O estilo e atitudes da artista celebrados pela filósofa Camille Paglia (“suas constantes mudanças de estilo das roupas e cor do cabelo mostram uma profunda visão do sexo, muito mais do que o feminismo. Madonna é o futuro do feminismo”) são a própria expressão estética e midiática da liquefação da riqueza e da economia pela hegemonia ideológica do financismo.
Madonna é a modernidade líquida (Zygmunt Bauman), a celebração de tudo aquilo que pode ser líquido e flexível: sexo, identidade e, por que não, da banca financeira que a paga e a escolhe como a própria expressão do futuro.
Seguindo a tese de Norman Mailer, se nessa semana que passou testemunhamos espasmos da realidade, que grande evento será que estariam antecedendo?