O sucesso do J-Horror (o horror japonês) foi trazer na virada de milênio uma abordagem do gênero distante do Ocidente: ao invés da tradicional matriz edipiana, histórias de fantasmas prisioneiros no mundo físico em busca de vingança devido a traumas ou fortes emoções que não lhes permitem passar para um outro plano. Um fantasma conhecido como “onryō”, uma jovem que foi muito injustiçada por um homem na vida e agora busca vingança sobre os vivos. Marcada pela figura icônica dos cabelos pretos longos e pegajosos. “Exte: Hair Extensions” (Ekusute, 2007), de Sion Sono (Suicide Club), parece ser uma síntese desse gênero japonês, ao mesmo tempo em que faz uma piada interna contra o próprio J-Horror: os cabelos se transformam numa entidade com vida própria, em busca de vingança... em salões de beleza que vendem apliques feitos com fios de cabelos humanos. Sion Sono faz uma crítica social: a mercantilização do próprio corpo humano.
A partir do filme Ring: O Chamado (1998), o J-Horror (a onda de filmes japoneses de terror na virada de século) se impôs como uma nova abordagem do gênero bem distinta em relação ao Ocidente.
No Ocidente o horror está baseado essencialmente numa matriz edipiana: dramas envolvendo culpa, incesto, a sedução da inocência, sexo culpado (sadomasoquista), a percepção corpo fragmentada do corpo pelo infante pré-formação do ego (daí o porquê do fascínio pelos corpos despedaçados, vísceras e sangue no cinema de terror) etc.
Principalmente, o Mal e o Estranho como os nossos próprios impulsos aos quais deveremos renunciar na resolução do Édipo e na entrada ao mundo da Cultura. Os filmes de terror dramatizariam a nossa própria luta interna em ter que renunciar a Natureza (prazer, impulso, gratificação imediata) em nome da Cultura (renúncia e sublimação).
O J-horror abandonou a tradição dos filmes de monstros Kaiju (Godzilla, p. ex.) e zumbis (Bio Zombie, 1998), para privilegiar histórias de fantasmas ou entidades espirituais ainda fortemente ligadas ao mundo físico devido a traumas ou fortes emoções que não lhes permite passar para um outro plano. Estão presas nesse mundo, ou buscando vingança ou repetindo obsessivamente a cena que gerou o trauma.
Um tipo de fantasma conhecido como onryō, o fantasma de uma jovem que foi muito injustiçada por um homem na vida e agora busca vingança sobre os vivos. Normalmente, o homem que realmente fez o erro é deixado intocado pelo onryō (a menos que ele seja um personagem principal) e sua raiva tende a ser direcionada mais para qualquer um que tenha o azar suficiente de cruzar a sua frente.
Ou ainda o desespero do abandono de crianças pelos pais, solidão e abusos.
Exte: Hair Extensions (Ekusute, 2007), de Sion Sono (Suicide Club), parece ser uma síntese desse gênero japonês, ao mesmo tempo em que em muitos momentos funciona como uma piada interna ao J-Horror.
As garotas fantasmas do J-Horror são iconicamente célebres pelos seus cabelos. Uma entidade frequentemente vista em filmes de terror japoneses, geralmente uma jovem mulher, com cabelos pretos longos e pegajosos que cobrem seu rosto, vestida com um quimono ou mortalha de enterro branco. O rosto dela em si é muitas vezes bastante horrível de se olhar. Ela geralmente está descalça, se tiver pés.
Exte leva essa célebre iconografia ao paroxismo: Sion Sono fetichiza os cabelos, que ganham vida própria e se tornam vingativos, deixando um rastro de vítimas. Os próprios fios de cabelo são uma entidade onryō, embora originado de um onryō inicial que se vinga por procuração: através dos seus próprios signos indiciais – mechas de cabelos vendidas como extensões de cabelos oferecidas em salões de beleza para mulheres incautas.
Exte ainda combina todas as bizarras sequências de vingança capilar com um plot de abandono parental e abuso infantil – nada mais vulnerável e assustador do que ver uma pequena menina de nove anos vítima de violência doméstica tendo que lidar com um “monstro de cabelos”.
O gênio do J-Horror foi explorar a simbologia arquetípica do cabelo presente em diferentes culturas: a propriedade de concentrar espiritualmente a virtudes do ser, mesmo depois de separado do corpo – os cabelos permanecem unidos ao ser através de um vínculo de simpatia.
Por outro lado, em Exte o cabelo é mostrado como arma feminina de vingança, revertendo o simbolismo tradicional ou de sedução ou de recato: na iconografia cristão os cabelos longos e soltos é a ideia de sedução e pecado, como as representações de Maria Madalena. Ou de recato – esconder os cabelos se for casada ou comprometida. Quanto para o homem, as longas cabeleiras são representações da força vital, virilidade ou distinção de classe social – do personagem bíblico de Sansão às perucas brancas de monarcas e juízes.
O Filme
Exte abre com vigias fazendo uma ronda noturna em uma zona portuária de contêineres. Sentem um cheiro forte e fétido até localizarem a origem em um contêiner cheio de cabelos humanos com um corpo de uma mulher no meio deles.
O corpo é levado para o necrotério, mas é roubado por um atendente chamado Takeshi (Ren Osugi). Uma figura estranha e que tem um fetiche por cabelos femininos (“tricofilia”, atração sexual por cabelos) – ele passa as noites no necrotério selecionando os melhores cabelos para recolher mechas com uma tesoura. Mas ele sente que os fios de cabelo daquele corpo feminino são especiais. Então, ele decide roubá-lo do necrotério.
De volta à casa dele, Takeshi fica assustado ao descobrir que o cabelo ainda está crescendo e nasce do interior do próprio corpo através de feridas abertas, dos olhos e da língua. Sim, caro leitor, tudo muito nojento!
Mas também há uma história que corre como pano de fundo que, mais tarde, irá se conectar com as mechas daquele corpo misterioso.
Chiaki Kuriyama (Battle Royale e Kill Bill) estrela como Yuko, uma jovem ambiciosa cabeleireira. Ela é uma aprendiz que trabalha em um salão e que almeja participar de competições para tornar-se uma cabeleireira profissional.
A irmã de Yuko (“Mami”, Miku Satô) é uma bêbada que namora um desprezível cantor de karaokê e ignora e abusa de sua pequena filha. Yuko descobre isso quando a garotinha é abandonada na porta de sua casa para que sua mãe possa desaparecer com seu namorado.
Os dois plots se cruzam quando a estranha figura de Takeshi entra no salão de beleza em que Yuko trabalha (emblematicamente vestido com uma camisa com uma bandeira dos EUA estilizada). Ele carrega uma gaiola para pássaros repleta de extensões para cabelos. Amostras grátis oferecidas para as cabeleireiras do salão – é quando conhecemos como Takeshi transformou o seu fetiche em uma maneira de ganhar a vida: vende apliques ou extensões feitas pelas mechas de cabelos roubadas do necrotério.
Para ele, o corpo da misteriosa mulher é uma verdadeira mina de dinheiro: os fios crescem sem parar, virando uma fonte de lucros.
O que ninguém sabe, é que aqueles misteriosos fios de cabelos trazem a memória de uma morte violenta: ela foi sequestrada por traficantes de órgãos e os seus cabelos raspados para facilitar a retirada de diversos órgão do seu corpo – inclusive um olho.
Ela vira uma típica entidade onryō em busca de vingança, com a sua principal característica: a desproporcionalidade – a sede de vingança pode não encontrar os algozes, mas quem tiver o azar de passar na sua frente vai sofrer a desforra.
A primeira vítima surge no salão de beleza de Yuko: os cabelos dos apliques ganham vida e entram dentro da vítima através dos ouvidos, para vingar de forma violenta, mostrada em sequências com excelentes efeitos práticos cenográficos.
Com essa combinação entre abuso infantil e vingança, Exte concentra na mesma produção os tropos da maioria das histórias de origem dos fantasmas J-Horror: abuso e negligência infantil e violência sexual. Com esse contraste chocante, Sono sublinha a maneira como o gênero celebra a vingança do fantasma enquanto ilumina a questão muito mais séria e real do abuso infantil.
Exte é um filme incomum, porque ao mesmo tempo em que aborda os tropos principais do gênero J-Horror, se posiciona contra o próprio gênero com várias sequências metalinguísticas e irônicas sobre os clichês do horror japonês – o próprio argumento central do filme (cabelos que ganham vida e buscam vingança) já é uma espécie de piada interna dentro do gênero.
Também Sion Sono faz no filme um forte comentário social: a mercantilização generalizada na sociedade capitalista. Que começa com a emblemática camisa com a bandeira dos EUA estilizada do fetichista vendedor de apliques para cabelos.
A misteriosa jovem foi vítima de traficantes de órgãos para o mercado negro. Assim como o seu próprio cabelo, que vira fonte de lucro para o tricofilista.
Tudo isso em uma narrativa recheada de cenas indeléveis e bizarras: cabelos sendo vomitados de línguas, feridas abertas e até de máquinas de fax.
Ficha Técnica |
Título: Exte: Hair Extensions |
Diretor: Sion Sono |
Roteiro: Sion Sono, Masaki Adachi, Makoto Sanada |
Elenco: Chiaki Kuriyama, Megumi Satô, Tsugumi, Miku Satô |
Produção: Makoto Okada, Toei Company |
Distribuição: Toei Company |
Ano: 2007 |
País: Japão |