quinta-feira, novembro 11, 2021

Tecnologias nos deixam vulneráveis à pandemia do esquecimento em 'Memórias do Amor'


“Memórias do Amor” (Little Fish, 2020) é um filme estranhamente familiar com os tempos atuais, embora rodado em 2019: uma pandemia assola o planeta, criando medo e desespero. Porém, não é uma pandemia comum: é uma “aflição neuro-inflamatória” que nos faz perder a memória, lentamente ou de uma só vez. O que traz caos ao planeta: imagine, p. ex., um piloto de avião que, de repente, esquece como pilotar... O filme apresenta a ironia de uma pandemia de perda de memória ocorrer numa sociedade tecnológica na qual as mídias se transformaram no nosso principal estoque de informação. O que faz lembrar a sombria profecia do rei egípcio Thamus sobre a invenção da escrita: quando confundirmos informação com memória nos transformaremos em ignorantes, porque em algum momento esqueceremos o que foi um dia sabedoria.

Em “Fedro”, de Platão, é contada uma história sobre Thamus, rei de uma grande cidade no Alto Egito. Um dia, Thamus recebeu o deus Theuth, inventor de muitas coisas, entre elas o cálculo, a geometria, a astronomia. Theuth queria apresentar essas invenções ao rei para torná-las disponíveis ao povo egípcio.

Enquanto Theuth explicava suas invenções, o rei expressava aprovação ou desaprovação, se a explicação era fundamentada ou mal fundamentada. Quando chegou na escrita, Theuth foi enfático: “Meu senhor rei, aqui está uma invenção que irá aperfeiçoar tanto a sabedoria quanto a memória dos egípcios. Uma receita segura para a memória”.

Mas o rei Thamos não se entusiasmou tanto quanto o inventor: 

Aqueles que adquirirem a escrita irão parar de exercitar a memória e se tornarão esquecidos, porque confiarão apenas na escrita para trazer coisas à lembrança por sinais externos, ao invés de usar os próprios recursos internos. O que você descobriu é a receita da recordação, não para a memória. E quanto à sabedoria, seus discípulos receberão uma grande quantidade de informação, por isso, terão a reputação de serem muitos instruídos, porém sem a instrução adequada. Na maior parte do tempo, serão apenas ignorantes, sem a sabedoria verdadeira.

Essas observações do rei Thamus se tornaram proféticos prognósticos sobre a sociedade tecnológica que surgiria séculos depois – mais do que a escrita, a sociedade da informação criou todo um conjunto de mídias impressas, visuais, audiovisuais, eletrônicas e digitais para estocar informações. Cujos usuários passaram a confundir com a própria memória. Afinal, esqueceu? Dá um Google!

E o próximo passo foi confundir a informação com sabedoria e conhecimento. A obesidade informativa acabou se convertendo em desinformação até chegar ao obscurantismo espalhado na mais avançada tecnologia da informação e comunicação: a Internet. Como atesta a disseminação de fake news, pós-verdades, memes e, o que é pior, a instrumentalização política e de propaganda de tudo isso.



Esse paradoxo do rei Thamus envolvendo informação, memória e sabedoria é o que está atrás do argumento do Memórias de um Amor (Little Fish, 2020), filme do diretor Chad Hartigan, com roteiro de Mattson Tomlin baseado em conto homônimo de Aja Gabel, publicado há uma década. Embora o filme pareça falar exatamente para o nosso momento de crise pandêmica da Covid-19 – as imagens do filme são assustadoramente familiares, embora rodadas em 2019.

O mundo está sendo afligido por uma perda de memória viral denominada NIA – aflição neuro-inflamatória: enquanto muitas pessoas perdem a memória de uma só vez, tornando-se perdidos e solitário porque perderam seus entes queridos, outros vão criando lentamente lacunas na memória. A mente tenta desesperadamente suprir essas lacunas, criando falsas memórias. Portanto, o filme pondera: o que seria melhor? Perder a memória de uma só vez esquecendo quem você foi? Ou conviver com falsas memórias criando tensões crescentes com todos ao redor, ante as lacunas se transformarem num grande vazio de memória?




Memórias do Amor nos mostra o nosso mundo, altamente tecnológico: TVs espalhando 24 horas por dia notícias sobre a pandemia, a esperança de ensaios clínicos com a cura da doença, a onipresença da ferramenta de busca do Google como fonte de memória disponível, um protagonista que é fotógrafo, tentando se agarrar as memórias visuais etc. E como tutorias na Internet acabam espalhando desinformação e piorando ainda mais o problema. 

Definitivamente, informação não é nem memória e nem sabedoria, como alertou o rei Thamus lá na Antiguidade.

O Filme

No meio de toda essa loucura, encontramos Emma (Olivia Cooke) e Jude (Jack O'Connell) se apaixonando e se casando. Ela é uma técnica veterinária em um abrigo de animais em Seattle. Ele é um fotógrafo e ex-viciado que está limpo há cinco anos após reabilitação. 

As primeiras cenas são do futuro: um encontro em uma praia isolada com a ajuda de um cachorro doce chamado Blue. 

Corta! E o filme pula para o passado, nos primeiros dias vertiginosos de seu romance através de uma narrativa impressionista: mergulhos em um parque aquático, fogos de artifício em uma festa de quintal, beijos roubados em uma boate. Esses momentos, que parecem tão livres e fugazes, assumem um significado maior à medida que o filme avança. Um típico dispositivo dos atuais filmes independentes que inicia sempre em tom etéreo, mas que será relevante para contar uma história sobre a natureza fugaz e alusiva da memória.




Na medida em que seu relacionamento avança, vamos descobrindo o contexto: todos no mundo estão perdendo coletivamente a memória para algo chamado NIA. 

Os sintomas são percebidos pela primeira vez em vítimas que repentinamente esquecem quem são ou o que estão fazendo, como um pescador que se esquece de como dirigir um navio e então se joga para fora para nadar para casa. Depois, há o motorista do ônibus que se esquece do motivo pelo qual está dirigindo, então se afasta e caminha para o meio da rua. Ou a maratonista que continuou correndo após a linha de chegada porque esqueceu o propósito da corrida.

 “No início, havia algo de lindo nessas histórias. Pessoas cujas vidas foram roubadas deles”, diz Emma em uma voz melancólica que assombrará o filme do início ao fim. “Mas essas histórias se tornaram mais frequentes, e uma narrativa mais assustadora começou a se desenrolar”, continua Emma.

Para alguns, a NIA surge do nada e rápido, mas não para Jude que, depois de se casar com Emma, ​​começa a esquecer pequenas coisas, como onde ele colocou as chaves, ou a discussão que teve anteriormente com Emma. Mas começa a piorar à medida que esquece o número do apartamento ou quando descobre pequenas fotos polaroides dela, que, assim como no filme Amnésia de Nolan, têm o nome "esposa" escritas no verso. 

Jude é fotógrafo, enquanto Emma tem aspirações de ser escritora. O que são, em si atos, desesperados para tentar não esquecer definitivamente das suas próprias histórias ou uma série de momentos. 




Uma sequência aterrorizante mostra um amigo comum de Emma e Jude, um músico chamado Ben (Raúl Castillo), primeiro se esquecendo de como tocar uma música que está ensaiando em um estúdio. E depois se tornando histérico e paranoico ao esquecer da sua própria namorada com quem mora, Samantha, para depois tentar matá-la com uma faca de cozinha.

O pânico toma conta do mundo e do casal Emma e Jude. Na Internet começam a surgir tutoriais de curas alternativas como, por exemplo, uma pequena intervenção cirúrgica no céu da boca para se realizar uma “punção cerebral” com uma pequena cânula. Claro que Emma, com seus conhecimentos de cirurgia veterinária, tentará fazer isso em Jude. Mas, sem sucesso. 

É simbólica a sequência de volta no tempo para uma festa à fantasia nos primeiros encontros de Jude e Emma. Ela fantasiada com uma roupa vitoriana é recebida por Jude que não sabe a referência histórica da fantasia. Para tentar impressionar Emma, secretamente dá um Google para depois surpreendê-la.

Memórias do Amor suscita uma questão: será que a sociedade tecnológica fragiliza nossas memórias ao confundi-las com dispositivos de recordação? Será que essa fragilidade interna nos tornou suscetíveis a essa pandemia neurológica?

Igualmente simbólicos são os protagonistas: Emma é britânica e com um forte sotaque e que parece resistir mais ao vírus. Ele, um fotógrafo norte-americano que rapidamente sofre a deterioração da memória. De um lado, a tradição de séculos da história europeia; e do outro, a superficialidade de uma sociedade norte-americana baseada na fugacidade da cultural visual e audiovisual.

Perder as memórias é esquecer quem nos somos, perder nosso próprio Self. Portanto Memórias do Amor parece repercutir a sombria profecia do rei egípcio Thamus: no fundo, estaríamos entregando a nós mesmos às fontes externas de recordação: dos hieróglifos e escrita cuneiforme até as mídias digitais. 

O final do filme é ambíguo, deixando uma mensagem com o típico otimismo pós-moderna, partilhado pela filosofia autoajuda como, por exemplo, Cientologia: mas esquecermos de nós mesmos poderia ter algo de positivo: se deletarmos o passado, poderíamos construir um novo futuro, sem os vícios do nosso antigo Self?

A questão é que seria necessário um outro filme, cuja estória descrevesse um vírus que destrói algo muito além da memória: a própria alma.


 


Ficha Técnica 

Título: Memórias do Amor

Diretor: Chad Hartigan

Roteiro: Mattson Tomlin

Elenco: Olivia Cooke, Jack O’Connell, Raúl Castillo

Produção: Black Bear Pictures, Oddfellows Entertainment

Distribuição:  IFC Films

Ano: 2020

País: França, Bélgica

 

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