“É mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do Capitalismo”, disse certa vez Fredric Jameson. Por quê? Basta uma olhada nos títulos de filmes sci-fi nas plataformas de streaming e a retórica metonímica diária dos telejornais: acompanhamos a engenharia do consenso em torno de uma presunção da catásfrofe – as mudanças climáticas e o esgotamento dos recursos naturais estão levando à destruição do planeta! Mas não do Capitalismo, que vê na crise a repetição de uma velha lógica descrita por Marx e Weber: a pressuposição subjetiva da escassez gera valor. Esse é o pressuposto do “Capitalismo Verde” ou “Green New Deal”: o problema não está na sociedade, está numa Natureza tão frágil que precisa de ajuda: iniciativa privada, financeirização mas, principalmente, socializar as perdas e privatizar os ganhos. Três pequenos contos relacionados com a COP 26 mostram isso: o clichê “Ethno World” dos organizadores da Conferência, a carreata de 85 veículos de Joe Biden pela ruas de Roma e a “galhofa” de um diplomata norte-americano.
Três pequenos, mas significativos contos associados à Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas – a COP 26:
(1) Txai Suruí, ativista indígena de 24 anos e fundadora do Movimento Juventude Indígena em Rondônia, foi a representante brasileira na COP 26. Em seu discurso, acusou as “mentiras vazias e promessas falsas”. Celebrada pela mídia corporativa brasileira como “a voz do Brasil” (na ausência do presidente Bolsonaro) e o “reconhecimento pela ciência do conhecimento indígena”, Suruí deu uma rápida entrevista para a “Edição das 16” da GloboNews (01/11) entre os corredores do evento. Em meio a sua fala em que correlacionava justiça climática, social e proteção de territórios indígenas, a jovem ativista, em trajes “tradicionais” e rosto pintado, cometeu uma pequena “gafe”: de passagem, observou que, na verdade, estava com um traje indígena peruano, cedido pela organização do evento para o seu pronunciamento na plenária.
(2) Joe Biden embarcou na Europa para a COP 26 em Glasgow, Escócia. Mas, antes disso, o presidente dos EUA cruzou Roma em uma carreata de 85 veículos – uma impressionante caravana com várias limusines, SUVs e vans devoradoras de gasolina e diesel. Com destaque para a sua nova limusine Cadillac “The Beast 2.0”, com um potente motor diesel 5.0.
Tudo isso para visitar o Papa Francisco no Vaticano onde discutiu com o Pontífice as mudanças climáticas. "Todos nós temos essa obrigação para com nossos filhos e netos de reduzir o uso de combustíveis fósseis”, vaticinou após desembarcar de uma carreata movida a combustíveis fósseis que supostamente causariam a “crise climática”. O que também incluiu viagens no Air Force One para a Europa e aviões de transporte levando alguns dos veículos para o exterior, emitindo uma considerável quantidade de carbono.
“Onde estava Greta Thunberg para se enfurecer no Twitter sobre a enorme carreata de Biden” - Paul Joseph Watson (@PrisonPlanet) 30/10/2021.
(3) Quem conta essa história é o jornalista Luis Nassif:
“No auge da era do etanol, Otto Reich veio ao Brasil. Tratava-se de um diplomata americano especialista em América Latina, estreitamente ligado à família Bush, e organizador de uma tentativa de golpe contra Hugo Chávez na Venezuela. Vinha atrás de negócios da economia verde e embalado pelas conclusões de cientistas sobre o aquecimento do planeta. Em um encontro em um hotel em São Paulo foi mordaz: “Nenhum de nós acredita no aquecimento do planeta... Mas temos que aproveitar os bons negócios” – clique aqui.
Ethno World e o Capitalismo de escassez
Podemos considerar que, por pouco, a brava ativista Txai Suruí não recebeu da organização da COP 26 algo como um cocar ou vestimenta Apache – afinal, é essa a visão “ethno world” que a indústria climática do Capitalismo Verde possui a respeito dos “povos originários” do planeta.
Enquanto isso, o presidente líder da causa climática (US$ 1,75 trilhões para seu projeto de lei para gastos sociais e climáticos) se desloca numa imperial carreata/caravana que gera um total de 2,2 milhões de libras de carbono. O que comprovaria o modus operandi revelado pela sinceridade do diplomata norte-americano Otto Reich na visita ao Brasil.
Desde o crash da bolha especulativa de 2008, foi acesa a luz amarela para o Capitalismo: “Pensamos que o capitalismo corre o risco de desmoronar. O negócio, que no passado era muito reticente quanto ao mecanismo de investir de forma sustentável, planeja aumentar sua visibilidade. Precisamos entrar todos juntos nisso. Seremos mais agressivos porque precisamos”, alertaram Al Gore e David Blood em artigo do Financial Times de julho de 2017 que pareceu mais um manifesto sobre a necessidade de salvar o capitalismo do que um libelo pela salvação do planeta.
“É mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, afirmou certa vez Fredric Jameson. Ao lado do novo salto mortal da financeirização com o dinheiro digital, também a Natureza se oferece como a fronteira final para a comoditificação – uma nova oportunidade para criar a mais nova bolha especulativa – e, claro, com muita injeção de dinheiro público. Afinal, também para a indústria climática as perdas devem ser socializadas. E os ganhos privatizados.
A lógica pela qual se orienta essa nova indústria é menos científico-ambiental do que econômica através da velha lei do mercado no Capitalismo, descrito tanto por Karl Marx quanto pelo sociólogo Max Weber - em última instância, para produzir mercantilização e gerar valor a economia capitalista exige o pressuposto subjetivo da escassez: o valor de uma mercadoria somente pode ser determinado se ela for um bem “escasso” no sentido de que atenda a uma demanda sempre crescente e nunca satisfeita, pois a sua “utilidade” é sempre tomada como insuficiente ou um bem escasso na sociedade.
“É propriamente decisivo, para uma atuação racional com respeito a um objetivo, que tal escassez seja pressuposta subjetivamente, e que se trabalhe em consequência com tal orientação” (WEBER, Max. Economia Y Sociedad, Edit. Fondo de Cultura, México, p. 17.)
Os pressupostos desse novo negócio estão dados através da engenharia do consenso (psyOps + RP): o meio ambiente, a camada de ozônio e as condições de sobrevivência humana num planeta em aquecimento tornaram-se bens escassos. Afinal, não é isso que filmes sci-fi com a ideologia Elon Musk (nove em cada dez produções) que povoam as plataformas de streaming nos informam? – heróis que audaciosamente colonizam exoplanetas para fugir da Terra agonizante.
Diariamente somos bombardeados por alarmantes telejornais apresentando imagens de enchentes imprevisíveis, incêndios descontrolados, tempestades de areia pegando de surpresas áreas urbanas e tufões devastando as vidas de famílias inteiras.
Seriam evidências de que o fim se aproxima se não fizermos nada? Mas não fizermos QUEM, cara pálida? Por que o sempre atento jornalismo corporativo não percebe a distribuição desigual dos prejuízos dessas tragédias climáticas? Sempre quem sofre, perde o próprio teto e vê a própria vida virar de ponta-cabeça são os mais pobres, condenados a viver em áreas de risco.
Claro que o leitor poderá dizer que os apocalípticos incêndios na Califórnia atingem também aqueles hollywoodianos bairros repletos de mansões. São exceções que acabam confirmando a regra – são propriedades cobertas por seguros milionários e, muitas vezes, propriedades que nem são residenciais.
Enquanto isso, aquelas assustadoras imagens de tempestades de areia que atingiram o interior de São Paulo (exibidas metonicamente antes da previsão do tempo) são colocados na conta do “aquecimento global”. Com o objetivo manipulador de tirar o foco na desertificação do interior do Estado promovida pelo agronegócio, dentro da política neoliberal de primarização da economia brasileira – a tal “banana platation”.
Passos da engenharia do consenso
Em primeiro lugar, essa engenharia do consenso em torno das mudanças climáticas necessita expurgar as contradições sociais e a própria História – aquilo que Roland Barthes chamava de processo semiológico de construções de “mitologias”.
Com exceção do Cadillac de Joe Biden, TODOS NÓS precisamos fazer alguma coisa. A humanidade sempre é vista de uma forma tão abstrata quanto o “ethno world” da organização da COP 26.
Essa abstração produz aquele imaginário individualista (privatista) do “se-cada um-fizer-a-diferença-o-planeta-será-salvo”.
Em segundo lugar, a engenharia do consenso tem que demonstrar para o distinto público, porque o mercado, a iniciativa privada e o Capitalismo são a única esperança que nos resta para salvar o planeta.
Como sempre, entra em ação os sci-fi tipo Elon Musk mostrando que aqueles bravos heróis arriscando a vida em exoplanetas cruzaram milhares de anos-luzes em sofisticadas espaçonaves do setor privado. Ou, para quem não gosta do gênero, tem os telejornais com imagens heroicas do ator William “Capitão Kirk” Shatner sendo mandado para o espaço a bordo da Blue Origin, do bilionário Jeff Bezos.
Depois do entretenimento e infotenimento subliminares, entra o argumento principal da cartilha neoliberal: os custos do combate à mudança climática são altos demais para os governos assumirem por conta própria e que o setor privado sempre tem melhores respostas. para os defensores do capitalismo verde, a parceria público-privada garantirá que a transição do capitalismo marrom para o verde seja neutra em termos de custos. Investimentos com preços eficientes em novas tecnologias supostamente impedirão a humanidade de cair no abismo.
Não é à toa que, dessa vez, a estrela-ativista Greta Thunberg ficou de fora da COP 26: descobriu-se que a sua verve de rebeldia juvenil é mais eficaz lá fora, nas ruas do entorno do evento.
Vídeos publicados em redes sociais mostravam Greta saindo de uma estação de metrô para rapidamente ser cercada por outros manifestantes. Ela atravessa a multidão, no meio de fotógrafos e de outros participantes da manifestação.
Segurando um microfone numa praça em Glasgow, acusa os líderes políticos e chefes de Estado de “traição” por não cumprirem às metas para combater às mudanças climáticas. “Trinta anos de blá-blá-blá”, protestava Greta.
Dentro da engenharia de consenso, essa COP 26 assumiu uma função de imolação pública dos políticos e do Estado: nas ruas vemos protestos cujo ativismo é financiado por corporações tanto verdes quanto marrons. Assim como Greta Thunberg, uma das estrelas do Green New Deal cuja imagem foi construída pela start up tecnológica “We Don’t Have a Time” que atua em três mercados: mídia social, publicidade digital e crédito de carbono – a pedra de toque do Green New Deal – clique aqui.
A ideia é colar no Estado e seus dignatários a imagem da incompetência, “blá-blá-blá”, da “falta de vontade política” e falta de conhecimento técnico-científico, cuja iniciativa privada teria de sobra.
O capitalismo verde defendido setor privado parece ser mais um artifício para evitar um ajuste de contas real. Se os líderes empresariais e financeiros fossem sérios, eles reconheceriam a necessidade de mudar drasticamente o atual curso, para garantir às sociedades a distribuição equânime dos benefícios.
Não se trata de substituir ativos verdes por ativos marrons, mas de compartilhar as perdas que o capitalismo marrom impôs a milhões e garantir um futuro até mesmo para os mais vulneráveis.
O problema é que o Capitalismo Verde quer criar soluções que sejam mantidas dentro dos limites do próprio sistema econômico que devastou a Natureza. E mais: que as chamadas “soluções limpas” e, principalmente, a escassez (de água potável, energia etc.) tornem-se oportunidade de criação de valor e precificação das novas commodities verdes.
Do movimento ambientalista ao Capitalismo Verde
O movimento ambientalista contemporâneo surgiu como tendência influente no pós-guerra, principalmente na Europa e América, com o surgimento dos movimentos contraculturais que idealizavam uma associação entre alta tecnologia industrial com a vida rústica integrada à Natureza. Contestavam o modelo de civilização em vigor.
Alguns de inspiração marxista acreditavam que o problema estava no modo de produção capitalista, onde a ganância do Capital produzia desperdício e destruição.
A vigorosa emergência do movimento pegou na época os sociólogos de surpresa. Mas a reposta foi rápida com o surgimento do chamado Clube de Roma (fundado em 1968 por acadêmicos, cientistas, diplomatas e empresários) que em 1972 publica o relatório Os Limites do Crescimento, elaborado pela equipe do MIT – Massachussetts Institute of Technology. Nessa publicação está a origem de toda a atual agenda corporativa sobre o meio ambiente com temas que seriam cruciais para a humanidade tais como energia, poluição, tecnologia, saúde e crescimento populacional.
Há uma reviravolta em relação à crítica ambientalista da contracultura: se lá o problema estava no modo de produção e nas relações sociais de trabalho (e, portanto, a causa ambiental estaria associada a questões mais amplas como direitos humanos, liberdade, desenvolvimento equitativo etc.), a partir do Clube de Roma a questão se desloca da sociedade para exclusivamente a Natureza, abordada como dotada de recursos finitos e escassos. Portanto, o problema estaria na irracionalidade humana em não saber disso e insistir no crescimento industrial e populacional. O culpado é o homem, pensado como um ser genérico, abstrato, sem definir classe social ou nacionalidade.
O decisivo para a nova ordem econômica é a concepção dos recursos naturais como bens escassos. Se eles estão acabando, seja pelas mudanças climáticas, seja porque o planeta é pequeno demais para as ambições humanas, passam a serem bens altamente estimados e valorizados. A escassez é o pressuposto econômico no capitalismo para a transformação de qualquer coisa em mercadoria.
O neoliberalismo acredita que o mercado é a única instância que sincronizaria de forma racional a oferta e a demanda - a mercantilização generalizada é agora inscrita na Natureza. Em outras palavras, a escassez dos recursos naturais é a justificativa “orgânica” para a ordem mercantil, com o apoio do discurso ambientalista corporativo.
Por isso, não são surpreendentes notícias de que ONGs ambientalistas como o Greenpeace tenham o apoio financeiro de grandes empresas petrolíferas, Fundação Rockfeller e mercado de energia elétrica – sobre isso clique aqui.
Um exemplo dessa convergência entre mercado e ambientalismo são os créditos de carbono (sistema de compensação onde empresas que não tenham conseguido diminuir a emissão de gases podem comprar créditos de terceiros que fizeram tais ações) negociados em bolsas de valores, leilões etc., criticados por mais favorecer o mercado financeiro do que o meio ambiente – sobre isso clique aqui.
Na medida em que se coloca o mercado como a única instância onde supostamente se equalizaria racionalmente os recursos naturais escassos, estes deixam de ter o controle público por meio das pressões pela privatização.
As consequências são muito mais político-econômicas do que os supostos benefícios que salvem o planeta:
(a) O Estado entrega para o Capital e para o mercado que autorregule o conjunto de iniciativas ambientais. Sem planejamento global, tudo fica entregue às iniciativas individuais que “façam a diferença”. Enquanto as famosas parcerias público/privadas esperam a injeção de dinheiro público para a socialização das perdas;
(b) Deixando de fora qualquer iniciativa pública (afinal, qualquer iniciativa estatal será sempre “política” e, por isso, intrinsecamente corrupta e ineficaz), as políticas ambientais deixam de ser justas e equânimes – a financeirização e comoditificação tomam conta das políticas ambientais criando novas formas de colonização de países pela via do endividamento. Como no caso M-Kopa Solar, fornecedora de kits solares no Quênia, Tanzânia e Uganda – ao invés de vender energia solar, na verdade vende crédito com altas taxas de juros – clique aqui.
(c) A engenharia de consenso em torno da urgência criada pelas mudanças climáticas transforma um problema social e político (a distribuição desigual dos prejuízos ambientais) em uma questão meramente de solução técnico-científica. Em outras palavras, tira o foco no Capitalismo para a Natureza – ironicamente, a presunção da catástrofe vira oportunidade de lucro, confirmando a velha lógica do Capital descritas por Marx e Weber: a escassez gera valor. No caso, a escassez de futuro (midiaticamente martelada todo dia) produz a necessidade de esperança oferecida pelas soluções mágicas privatistas que “fazem a diferença”.