“Amor é um cão do inferno”, diz a tatuagem entre os seios de Alexia, a protagonista do filme francês “Titane” (2021). Esse aviso para qualquer um que queira se aproximar dela é também uma alerta para os espectadores que verão um filme estranho, de horror corporal extremo, impiedoso e, em alguns momentos, com algum humor negro. “Titane” é a realização das profecias pós-humanas para esse século, de escritores do século XX como J.G. Ballard ou cineastas como David Cronenberg: a angústia humana pela imortalidade por trás do fetiche da fusão da durabilidade do metal com a vulnerabilidade da carne. Uma jovem que é eroticamente atraída por carros é o ponto de partida para um filme cujo tema do hibridismo se conecta diretamente com o atual zeitgeist que motiva as novas tecnologias: a agenda pós-humana.
Em uma entrevista o escritor J.G. Ballard explicava o seu livro “Crash” (adaptado no cinema por David Cronenberg): “Crash tratava de que modo as novas tecnologias poderiam, de maneira terrível, despertar certas forças do inconsciente que estiveram adormecidas. O que me interessa era a psicologia do automóvel, a psicologia de uma violência potencial que há nos carros e a sexualidade que pode haver no desastre” – “Crash” In: Folha de São Paulo, 31/01/97.
Tanto o livro de Ballard quanto o filme de Cronenberg exploraram como a civilização do automóvel levou fantasias, fetiches e perversões a outro nível: o momento em que a tecnologia, em si mesma, tornou-se um atraente fetiche e objeto de fantasias de fusão entre metal e carne, despertando essas forças inconscientes da qual Ballard teorizava.
Essa civilização do automóvel transformou a tecnologia numa extensão do homem: cabeça, tronco e rodas. Porém, esse imaginário evoluiu para hibridização pós-humana: biotecnologia, clonagem, próteses, servomecanismos, implantes etc.
Nesse processo nossos corpos passam a revelar um duplo caráter: impulsos e vulnerabilidade, seus apetites vorazes e como o “nós” coletivo tenta lidar com tudo isso, ou empanturrando-se com as satisfações das pulsões por meio de fetiches, ou, inversamente, sublimando através da necessidade de outras coisas.
Mal-estar da civilização: como podemos controlar o que é inerentemente incontrolável – principalmente quando a tecnologia sedutora (com design sensual e potência) mobiliza essas pulsões, prometendo um tipo de gozo e prazer que não será mais passageiro. Mas que aspira a imortalidade pós-humana.
Titane (2021), vencedor do Palma de Ouro deste ano no Festival de Cannes, é um filme extremo em seu horror corporal, violento, impiedoso e, em alguns momentos, engraçado. A cineasta francesa Julia Ducournau (Raw) acompanha uma tendência recente de filmes sobre a hibridização humana, dentro do zeitgeist atual do pós-humano. Filmes como Jumbo (2020 - a atração amorosa de uma protagonista por uma roda-gigante, um fetiche chamado de “objectum” ou “objetofilia”) ou Lamb (2021 - a hibridização homem-animal) são exemplos dessa tendência atual.
Porém, em Titane a abordagem vai mais além do que o prazer fetichista – forma de prazer fragmentada, parcial, centralizada num objeto específico. No filme, o carro deixa de ser um mero suporte fetichista de prazer, como em Crash de Ballard/Cronenberg. Titane busca especular a fusão completa, pós humana, da carne com o metal – no caso, o titânio.
Titane até começa pela abordagem clássica do automóvel como fetiche de potência masculina – a protagonista como uma dançarina em uma feira de carros esportivos e clássicos customizados. Mas a narrativa aos poucos evolui para algo totalmente outro: o fetiche automobilístico quer transcender a si próprio – de mero objeto a uma fusão pós-humana não só do corpo com a máquina. Mas da carne com o metal em si. A sua durabilidade que superaria os problemas principais da existência corpórea: vulnerabilidade e mortalidade.
Ballard tem razão: as novas tecnologias estão despertando os nossos horrores mais profundos – a angústia da fragilidade da carne, da mortalidade e, inversamente, o desejo pelo virtual e transcendência da carne na sua forma mais radical: hibridismo pós-humano.
O Filme
Titane é forte, selvagem e estranho. A fantasia radical de sua premissa - uma mulher fica grávida de um carro – arranca o drama familiar pelo qual inicia e transforma-o em uma fantasia especulativa que exige do espectador uma grande suspensão da descrença – e que se torna o próprio tema do filme.
O que quer que esteja "errado" com a protagonista Alexia, e há muito errado, é anterior ao acidente de carro que quebrou seu crânio. Ela é vista pela primeira vez como uma criança problemática, de olhos mortos (interpretada por Adèle Guigue), olhando furiosa para seu pai enquanto faz barulho de aceleração do motor em conjunto com o veículo em movimento. É difícil evitar a ideia de que ela quer que o carro bata, ou pelo menos deseja que o acidente aconteça. Depois de sair do hospital (com uma cicatriz grampeada fixando uma placa de titânio em torno de sua cabeça raspada pela metade) ela joga os braços em volta do carro, beijando carinhosamente o vidro da janela do veículo. Uma união arrebatadora que marcará sua vida até o fim.
Corta para anos depois, com Alexis já adulta. Alexia (Agathe Rouselle) está se apresentando como dançarina erótica em feiras de automóveis. Ela está dançando em um local parecido com um hangar, onde carros são objetos fetichistas – vemos uma mulher ensaboando um carro e esfregando os seios contra uma janela lateral. Homens vagam entre os veículos, tirando selfies com as mulheres. Com sua atração implacável por carros, Alexia é a estrela da exposição. Dança com energia e sinuosamente em um Cadillac clássico, em imagens de êxtase crescente.
Mas, quando um fã masculino a persegue e a beija à força, ela o mata com uma vareta usada para prender o coque dos cabelos. Mais tarde, enquanto toma banho para se limpar d cena do crime, ouve um baque pesado e metálico na porta. É Cadillac vintage com o qual ela estava se apresentando há pouco. Ele está piscando os faróis para ela. Alexie aceita o convite e, nua, entra no carro para iniciar uma bizarra cena de sexo, nos bancos da frente, com o Cadillac.
O sexo no carro resulta em gravidez e Alexia, banhada de titânio, encara aterrorizada enquanto sua barriga cresce, seus seios vazam óleo de motor e óleo preto escorre de sua vagina no chuveiro. Seu corpo agora está em uma jornada que parece não a incluir.
A gravidez evolui numa relação direta com a intolerância radical de Alexia em relação aos pais e às tentativas de travar algum relacionamento com outras pessoas – sem sucesso, tenta relacionamentos homossexuais. Por isso, torna-se uma assassina implacável com sua vareta de prender os cabelos. Esses assassinatos são horríveis ao extremo e, ao mesmo tempo, ironicamente grotescas. Cujas cenas até lembram a construção narrativa de Tarantino em Kill Bill.
Depois de deixar uma testemunha nessa onda de assassinatos, ela é identificada e torna-se foragida da polícia. Quando ela vê uma imagem gerada por computador de como seria uma criança desaparecida chamada Adrien hoje, Alexia tem uma ideia brilhante. Sem hesitar, ela quebra o próprio nariz, amarra os seios e a barriga da grávida e vai a uma delegacia, apresentando-se como há muito perdido Adrien.
Esta é uma reviravolta perversa e irônica na história, e sinaliza a segunda metade do filme, muito diferente da primeira. Vincent (Vincent Lindon), o pai de Adrien, é um chefe de uma guarnição de bombeiros que se desmancha em lágrimas ao ver seu suposto filho.
Sozinho à noite, ele injeta em si mesmo esteroides, numa tentativa de adiar a decrepitude física da velhice. Vincent recebe seu suposto filho e o leva ao quartel de bombeiros. Adrien tenta desesperadamente manter o segredo de sua identidade, mesmo quando seu relacionamento com Vincent inevitavelmente se intensifica, a contagem regressiva da gravidez continua inexoravelmente e a polícia se aproxima de Alexia, a assassina em série.
O problema é que o quartel dos bombeiros é uma estufa masculina: os bombeiros - todos são homens - trabalham juntos, enfrentam a morte juntos e celebram juntos em cenas frenéticas de festas dançantes improvisadas que exalam um erotismo furiosamente submerso. O papel quase paternal de Vincent para os rapazes sob seu comando também é ambíguo - um deles, pelas costas, sugere que Vincent é gay - e a chegada de Adrien perturba e reorienta todo o grupo.
O simbolismo pós-humano - alerta de spoilers à frente
O eixo simbólico de Titane (e que conecta diretamente ao atual zeitgeist pós-humano) é a relação entre Adrien/Alexia e Vincent. Enquanto Vincent tenta a todo custo adiar os efeitos da velhice e decrepitude física (afinal, ele é o capitão de um quartel de bombeiros), Alexa traz em seu ventre o Novo: um ser híbrido de carne e titânio.
A sequência final do parto de Alexia, feito por Vincent é o fechamento simbólico de Titane: a carne decrepita e mortal dando à luz um novo ser potencialmente imortal.
Todas as novas tecnologias digitais e virtuais que nos cercam parecem desperta nessa geração essa angústia inconsciente pela imortalidade: a cada self ou perfil aberto em uma rede social, há o impulso mais profundo de querer criar uma versão de nós mesmos diferente, durável, que esteja livre das dificuldades e do caos da vida cotidiana.
Se no passado a existência eterna de Deus nos causava angústia (para o filósofo Kierkegaard fé e angústia seriam os dois lados de uma mesma moeda – fé numa entidade infinita e imortal pelo homem que sabe estar condenado ao inverso: finitude e morte), agora são as novas tecnologias que substituem a angústia da antiga fé religiosa.
A grande virtude da estranheza de Titane é de criar uma narrativa que corajosamente cai de cabeça nesse novo imaginário fetichista do hibridismo pós-humano homem-máquina: se no passado o fetichismo estava restrito ao submundo das perversões sexuais, hoje tornou-se a motivação explícita de toda a agenda tecnognóstica ou pós-humana da indústria computacional.
Ballard e Cronenberg foram os precursores no século XX do imaginário do pós-humanismo que nesse século toma conta do imaginário que motiva a tecnociência.
Ficha Técnica |
Título: Titane |
Diretor: Julia Ducournau |
Roteiro: Julia Ducournau, Jacques Akchoti, Simonetta Greggio |
Elenco: Agathe Rousselle, Vincent Lindon, Garance Marillier |
Produção: Kazan Productions |
Distribuição: Neon |
Ano: 2021 |
País: França, Bélgica |