“Orçamento Secreto”, “Orçamento Paralelo”, “Pedalada Fiscal”, “Bolsolão”, “Fura Teto”. É o bate-bumbo diário da grande mídia contra as emendas parlamentares criadas para azeitar a aprovação da PEC dos Precatórios no Congresso, e prontamente suspensas pelo protagonismo do STF. Estratégia semiótica da “predicação analítica”: locuções que criam “blocos de pensamento” lavajatistas prontamente replicados por canais progressistas que, numa inacreditável Síndrome de Estocolmo, a esquerda também “lacra”. Participa da homogeneização do atual espectro político que ajuda a operar as três funções ideológicas dessa estratégia de predicação analítica: (1) Ocultar a indignação seletiva do jornalismo corporativo; (2) Ocultar o mal original: o teto de gastos; (3) Cair na armadilha do controle total de espectro e do movimento de pinça. Quem ganha? Sérgio Moro, futuro candidato antissistema com o controle de qualidade do lavajatismo.
No seu livro “A Ideologia da Sociedade Industrial”, o pensador alemão Herbert Marcuse dedicou um capítulo chamado “O Fechamento do Universo de Locução” para, didaticamente, descrever as táticas da linguagem midiática que gera no receptor o “novo conformismo” criado não pela censura, mas pela “locução fechada” por meios de blocos de pensamento que produziriam “fórmulas hipnóticas”.
Marcuse destacava a estratégia linguística de “predicação analítica”, forma de construção repressiva em que um substantivo específico é sempre ligado aos mesmos adjetivos, que se transformam em “atributos explicativos”, transformando uma sentença em “fórmula hipnótica” que, infinitamente repetida, fixa uma imagem na mente do receptor.
“O governador manda-e-desmanda”, “bomba limpa” etc., seriam exemplos de como essa forma de locução criaria um efeito mágico e hipnótico: projeção de imagens que transmitem unidades irresistíveis, blocos de pensamento pré-fabricados, harmonia de contradições. Estratégia jornalística conhecida pela indústria da propaganda para criar “linhas de impacto” ou “incitadores de audiências” fazendo o receptor associar imagens a instituições, atitudes ou aspirações, fazendo que ele reaja de um modo específico, fixado.
“Orçamento Secreto”, “Orçamento Paralelo” são um desses “blocos de pensamento” aos quais Marcuse se referia que diariamente estão saturando nossos olhos e ouvidos. Indignação propagandística da grande mídia diante do “toma-lá-da-cá” das emendas parlamentares no momento quando a dupla Bolsonaro/Paulo Guedes impõe a necessidade da aprovação da PEC dos Precatórios no Congresso para que haja espaço no Orçamento para a implementação do Auxílio Brasil.
Indignados, colunistas da grande mídia gritam que as emendas se transformaram em “moeda política”, mobilizando milhões de reais sem qualquer publicidade ou transparência. Principalmente quando, às vésperas de um ano eleitoral, Bolsonaro apostaria todas as fichas no “populismo eleitoreiro” do Auxílio Brasil para melhorar sua imagem numa economia combalida pelo desemprego e inflação.
Enquanto os sabujos neoliberais, de costume, protestam contra a suposta irresponsabilidade em “driblar o teto fiscal” (ou, outro bloco de pensamento, “furar o teto”) , os “mercados” reagem em consonância com o tom do escândalo midiático: dólar dispara, Bolsa desaba, juros sobem.
Às véspera do ano eleitoral de 2022, no meio do “vestibulinho” promovido pelo jornalismo corporativo para encontrar uma “terceira via” (no qual, em poucos dias, o ex-juiz Sérgio Moro saiu na frente ao ser lançado à candidato à presidência pelo Podemos, pelo senador Álvaro Dias exortando que Moro “teve coragem de enfrentar o sistema”), essa estratégia de “predicação analítica” tem três funções na estratégia semiótica da guerra híbrida de informações – cuja emergência para o próximo ano é evitar a interrupção do plano de desconstrução nacional para definitivamente colocar o País no papel que lhe cabe na cadeia global do Grande Reset do Capitalismo: o de uma “banana plantation”, desindustrializado e com uma economia primarizada.
(1) Ocultar a indignação seletiva do jornalismo corporativo
Ora, por que o freak out midiático nesse momento com as emendas parlamentares, se a desvirtuação dessa ferramenta constitucional em moeda política foi, até aqui, uma prática comum em todas as reformas?
Por exemplo, os pagamentos a deputados sempre aumentam nos meses que precedem cada votação estratégica. Por exemplo, só em dezembro de 2016, o governo Temer pagou aos deputados federais um valor de R$ 2 bilhões, juntamente com o pacote das reformas da Previdência e Trabalhista. Silêncio da grande mídia. Ou melhor, algumas vozes até falaram sobre o assunto, como se tudo não tivesse passado de “afago” ou “agrado para a base de Temer no Congresso”.
Em 2019, um dia antes de uma reforma da Previdência, o governo empenhou R$ 1,1 bilhão. E tudo o que a grande mídia noticiou foi a negativa de Bolsonaro de que se tratasse de “toma-lá-dá-cá”.
Para a PEC 32/2020 (Reforma Administrativa), mais R$ 6 bilhões em emendas. Mais silêncio midiático, focado em que sempre está na austeridade fiscal, não importa o custo nada austero.
Porém, nesse momento a grande mídia mobiliza um inédito esforço em martelar um conjunto de locuções em predicação analítica. As preferidas: “Orçamento Secreto” e Orçamento Paralelo”.
Na primeira, a adjetivação “secreto” faz uma alusão de natureza conspiratória. Como se, de repente, as emendas parlamentares emergissem de reuniões ocultas e nada republicanas... não mais que de repente... E na segunda, a adjetivação “paralelo” dá o toque perfeito de criminalidade. Assim como um “governo paralelo” de alguma ameaçadora organização criminosa das sombras.
Repetidos diariamente (até pela própria esquerda) viram “blocos de pensamento” acríticos, criminalizando (ou melhor, judicializando) um dos mais importantes instrumentos da sociedade previsto pela Constituição de 1988 (artigo 165) que prevê, por meio de emendas, a participação do Legislativo na peça orçamentária encaminhada pelo Poder Executivo.
Uma possível crítica à imoralidade do “toma-lá-dá-cá” é substituída pela criminalização in totum pela grande mídia visando essa mesma reação na opinião pública. Nesse momento os analistas do jornalismo corporativo podem até falar em “transparência” e “publicidade” para o instrumento constitucional das emendas (aliás, necessidade nunca reivindicada, já que tudo apenas se tratava de “afagos”).
Porém, o objetivo já foi cumprido: criminalizar a política com seus jogos “secretos” (conspiratório) e “paralelos” (criminosos), o famoso “sistema” contra o qual se insurgirá a “terceira via” – claro, Sérgio Moro, aquele que teve a “coragem de enfrentar o sistema”. Novamente, o candidato “antissistema” será o mote para 2022, seja a terceira via Moro ou... Bolsonaro mesmo...
(2) Ocultar o mal original: o teto de gastos
Como coloca acertadamente o economista Paulo Kliass, “a PEC dos Precatórios é a desculpa da vez” (clique aqui). Enquanto para o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial o mantra da austeridade fiscal e superávit primário foi flexibilizado pela redescoberta da importância do poder público após a crise financeira de 2008/9, no Brasil a “âncora fiscal” continua sendo uma certeza teológica – aqui, grande mídia e o financismo transformaram o teto fiscal na “pièce de résistance” do neoliberalismo tupininquim.
O chamado Novo Regime Fiscal que congelou as despesas públicas por 20 anos está na origem do desespero de Paulo Guedes encontrar uma bola de salvação para Bolsonaro em 2022 – ele descobriu no Orçamento Geral da União que os R$ 90 bilhões dos precatórios poderiam ser “furados” (ou ter os compromissos empurrados para frente).
Ato contínuo, grande mídia alarma: “quer driblar o teto fiscal!” Não mais que de repente, os sabujos da mídia esqueceram toda as lições da pandemia (ter mais “empatia” e preocupar-se com as “desigualdades”) para mandar às favas quaisquer preocupações sociais e construir um outro bloco de pensamento: “Orçamento Secreto (ou Paralelo) + fura-teto”.
Novamente, o protagonismo do STF vem a calhar: a judicialização da política esconde do distinto público o pecado original da maldade neoliberal do teto de gastos. Afinal, pelo dogma neoliberal do financismo brasileiro, tudo deve ser congelado, menos a fatia crescente do Orçamento destinado aos pagamentos de dívidas e juros cobrados pela banca – que preenche os intervalos publicitários das redes de comunicação.
(3) Controle total de espectro e movimento de pinça
Em todo esse bate-bumbo diário contra orçamentos secretos, paralelos e fura-tetos, o que impressiona esse humilde blogueiro é como toda essa manipulação semiótica conseguiu homogeneizar o discurso de todo o espectro político.
Encontramos a mesma predicação analítica tanto na grande mídia quanto na midiosfera progressista e/ou de esquerda. E mais: o jornalismo corporativo lança mais adjetivações como “bolsolão” ou “pedalada fiscal” para denominar as trapalhadas de Guedes no apoio à PEC dos Precatórios. Acriticamente, a esquerda também adota os mesmos bordões.
Ora, a esquerda nada mais faz do que participar da mesma estratégia semiótica da direita, numa inacreditável Síndrome de Estocolmo: se a direita e a grande mídia criaram as narrativas do “mensalão”, “petrolão” ou da “pedalada fiscal” contra Lula e Dilma, por que não fazer a mesma coisa com Bolsonaro? Canais de esquerda começam a lacrar “Bolsolão” e “pedalada fiscal” de Bolsonaro/Guedes.
Porém, da mesma forma como Eduardo Cunha e Lula chamam Moro de “gangster”, o que a esquerda cria é uma armadilha para ela própria cair – algo previsto pelo “piloto automático” da Guerra Híbrida. É exatamente isso que a “terceira via” (ou mais precisamente, Sérgio Moro) espera: mostrar à maioria silenciosa que tanto Lula quanto Bolsonaro estão no mesmo barco – “bolsolão” e “pedalada fiscal” são recall perfeito para o antipetismo que equivaleria ao antibolsonarismo.
E, logicamente, Moro seria o contrário disso, o antissistema, a salvação, o fiel da balança, principalmente porque é um ex-juiz. O que ainda é mais alimentado pelas sucessivas notícias de absolvição de Lula, agora também noticiados pela grande mídia. Por quê? Para dar sustentação à narrativa da entrada na política do ex-juiz e ex-ministro Moro: “não conseguimos eliminar na Justiça a corrupção porque o “sistema” nos brecou... então vamos continuar a luta na política”.
Principalmente quando vemos outros ex-condenados da Lava Jato conseguindo a reabilitação política, podendo voltar a se candidatar em 2022 – clique aqui.
Com esse discurso mimético, a esquerda vê, assim como todo o espectro político, a Justiça como saída e o STF como o salvador. Isto é, o mesmo STF que ajudou a operar o golpe de 2016, o chamado golpe judicial “de veludo”.
E o que é pior: com esse discurso mimético que também judicializa a política, passa a apoiar o lavajatismo como categoria de pensamento – a esquerda, que outrora culpava o STF, agora o apoia como salvador. Canais de esquerda comemoram prisões e punições de blogueiros de direita. Tirar do ar e processar viram a tônica de uma política deteriorada: só há argumentos punitivos, sem debates ou exortações à organização de luta popular.
Movimento em pinça para o qual empurra a esquerda que ainda continua o único alvo do lavajatismo: judicializar significa censurar o debate político por ameaças jurídicas e custos de processos.
O pensamento lavajatista quer reduzir o debate político e público a advogados, denúncias, julgamentos, sentenças e punições.
E, mais uma vez, a esquerda será a vítima do cerceamento político: lá na ditadura foi a censura e a tortura. No século XXI, a judicialização e os “golpes de veludo” da guerra híbrida.