quarta-feira, novembro 24, 2021

"Noite Passada em Soho": por que temos saudades de épocas que não vivemos?



Por que a nostalgia pós-moderna nos domina? Cada geração sempre tem saudades de épocas que não foram vividas, como se para obtermos alguma sensação de futuro precisássemos roubá-la do passado. “Noite Passada em Soho” (“Last Night in Soho”, 2021) até parece se alinhar a outros filmes que desconstruíram essa nostalgia do “futuro do passado” como “Meia Noite em Paris” (2011), de Woody Allen, ou “La Belle Époque” (2019) ao acompanhar uma jovem interiorana obcecada pela “swinging London” dos anos 1960 e que vai para Londres estudar design de Moda. Na medida em que o drama romântico começa a mergulhar no terror (sonhos lúcidos de viagem no tempo ao Soho dos 60’s começam a se fundir com a realidade trazendo seus fantasmas), o filme acaba caindo no plot do conto de amadurecimento por transgressão e punição – quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem.

Uma nostalgia paradoxal domina o cenário cultural há décadas: saudades de épocas que não foram vividas ou de lugares que jamais foram visitados. Foi a arte e arquitetura na década de 1980, colcha de retalhos de estilos e escolas de todas as épocas; o hype dos brechós nos anos 1990 onde víamos clubbers com vestidos mais parecidos com a cortina da casa da avó; e no século XXI começou com a nostalgia dos anos 70 e 80 no cinema (Kill Bill de Tarantino, um pastiche dos anos 70 e 80) e na música (o som indie de bandas como “Franz Ferdinand”, um revival dos 80’s).

Sem falar nos bares temáticos cuja decoração, arquitetura e estilo passeiam por todas as décadas. Há sempre uma nostalgia de algum lugar ou tempo esquecido que invariavelmente seriam tempos mais felizes ou melhores do que estamos vivemos. O passado sempre foi uma era dourada que depois teria decaído na mesmice em que vivemos.

Alguns filmes já questionaram de forma crítica e inteligente essa nostalgia pós-moderna como La Belle Époque (2019, o próprio dispositivo do cinema como máquina do tempo) ou Meia Noite em Paris (2011, no qual Woody Allen faz uma interessante desconstrução da nossa nostalgia).

Nesses dois filmes está a crítica da essência da percepção temporal pós-moderna, a nostalgia hiper-real: olhamos para o passado a partir das imagens que as mídias audiovisuais e a indústria publicitária forneceram para nós. Memórias metonímicas nas quais tomamos a parte pelo todo.

Mas não é o caso do filme Noite Passada em Soho (Last Night in Soho, 2021), do diretor Edgar Wright (Todo Mundo Quase Morto), que parte até de uma interessante premissa que permitiria fazer essa mesma desconstrução da nostalgia pós-moderna. Porém, acaba prisioneiro de um plot repetido por tantos filmes e por tantos gêneros: o conto clássico de amadurecimento – uma jovem provinciana vai à metrópole para realizar seus sonhos que acabam sendo dissipados pela cruel realidade das coisas.

Eloise Turner (Thomasin McKenzie) é uma jovem absolutamente saudosa de uma época que não viveu: a vibrante “Swinging London” dos anos 1960, mais precisamente a Carnaby Street no Soho, onde ficavam grandes butiques e pulsantes bares, cafés e casas noturnas. E ela canaliza a sua nostalgia no sonho de se tornar uma designer de moda.

Ela é uma garota provinciana da Cornuália, onde mora com sua avó. E o seu recorte daquela década revela isso: da “Swinging London” ela prefere as músicas populares românticas de Petula Clark e James Ray do que os experimentalismos psicodélicos de Pink Floyd ou mesmo Beatles do álbum "Sargent Peppers".



Sua nostalgia é metonímica: são discos de vinis, capas, vestidos, maquiagens, pôsteres de filmes da Audrey Hepburn etc. que criam uma totalidade excitante em technicolor de uma época que teria seria muito melhor do que a atual – músicas mais românticas, os homens como perfeitos cavalheiros, as mulheres mais glamorosas e a moda mais descolada.

Na medida em que Noite Passada em Soho vai evoluindo de um drama romântico para o terror, essa nostalgia hiper-real até começa a ser desconstruída ao ser revelada uma Londres mais próxima a era vitoriana de Jack O Estripador do que a modernidade romântica dos filmes de Hepburn.

Porém, ao mergulhar no terror deixa de ser um filme sobre a natureza do passado, como acessamos a memória, a criação e transmissão de uma mitologia hiper-real e o seu papel na transmissão e deformação nos objetos culturais que perduram.

Ao final, Noite Passada em Soho prefere se aninhar no velho clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem: no final, a vovó sempre teve razão.




O Filme

Eloise, de dezoito anos, é uma aspirante a estilista cujo quarto, na casa em Cornwall onde mora com sua avó, Peggy (Rita Tushingham), é um santuário para a cultura pop da vibrante Londres de meados dos anos sessenta. É um período para o qual Peggy olha para o passado com a paradoxal nostalgia pós-moderna. Afinal, ela criou Eloise com base na música e nos mitos daquela época.

Ela tem grandes sonhos de ir para Londres estudar Moda e se transformar numa estilista. Mas um fantasma a assombra: a mãe de Eloise tinha desejos semelhantes de trabalhar como designer. Sua mãe mudou-se para Londres quando Eloise tinha apenas sete anos, para perdê-la por suicídio. Agora vê seu rosto em cada espelho.

Agora ela decide mudar-se para Londres carregando uma mala repleta de vinis dos anos 1960, depois de ter conseguido uma bolsa de estudos na London College of Fashion. Mas sua avó amorosa (Rita Tushingham) teme por ela. Afinal, a neta pode ver e sentir emoções que os outros não podem, através de uma espécie de forte ligação psíquica com os ambientes.

A vida em Londres começa em uma república estudantil na qual divide o quarto com a vaidosa e invejosa Jocasta (Synnove Karlsen) e grupo de jovens festeiras demais para uma interiorana garota que veio da Cornualha. Decide, então, alugar um quarto em uma casa particular de propriedade da Sra. Collins (a falecida Diana Rigg) que, coincidentemente, preserva a sua casa nos estilos dos anos 60.




Quando Eloise adormece em seu novo quarto, em seus sonhos se vê transportada para meados dos anos 60 em Londres como uma nova persona: uma aspirante a cantora pop loira com um vestido bufante rosa que agressivamente abre caminho para tentar ser uma estrela em uma casa noturna. 

Ela se vê como seu próprio alter-ego que é entrevistado por um romântico e sedutor gerente de um clube chamado Jack (Matt Smith). Essa alter-ego acaba sendo outra personagem - uma jovem daquela época chamada Sandie (interpretada por Anya Taylor-Joy), cujo mundo cada vez mais problemático Eloise testemunha em seus sonhos noturnos. Ela é uma presença virtual, uma observadora que não consegue interagir com Sandie. Mas, ao silenciosamente testemunhar das degradações e perigos que Sandie enfrenta, Eloise começa a fazer esforços desesperados para intervir, para quebrar o espelho unilateral de silêncio transparente que a deixa ver e não ser vista, exceto por nós, espectadores.

Chocada, descobre a monstruosidade misógina da swinging London, que foi insuportável para sua mãe e que agora ela conhece: o sofisticado Jackie não passa de um cafetão que quer transformar Sandie numa prostituta, enquanto toda a imagem idílica do Soho dos 60’s se converte em uma violenta rede de prostituição de garotas atraídas pelo glamour da noite agitada por clientes endinheirados.

Impotente, testemunha as lágrimas, raiva e desespero de Sandy. A partir desse ponto, o filme começa a descrever dois mundos que vão se desintegrando a tal ponto que realidade e sonho começam a se confundir com consequências cada vez mais imprevisíveis.




O sobrenatural começa a invadir a vida de Eloise: fantasmas daquele passado (mais precisamente dos “clientes” de Sandy) começam a persegui-la. No seu quarto, ela testemunha cenas fantasmagóricas de antigos crimes. Hesitante, pergunta para a sua senhoria, a Sra. Collins, se houve um assassinato no andar de cima. A senhora revira os olhos e fala: “Isso é Londres... houve um assassinato em todos os cômodos de todos os prédios de todos os cantos desta cidade”.

Bem-vindos à Londres vitoriana de Jack, O Estripador – parece que a glamorosa e chique Soho dos swinging sixties apenas esconde estórias vitorianas macabras de Charlote Brontë e Vernon Lee. 

O futuro do passado

Noite Passada em Soho até começa a desconstruir essa nostalgia pós-moderna baseada na hiper-realização das nossas memórias pela indústria do entretenimento – a estética do futuro do passado. Como aponta Brissac Peixoto a respeito a respeito da filmografia de ficção científica da década de 80 onde encontramos esta nostalgia retro, artificial e de simulação:

A artificialidade desta personificação se evidencia no paradoxo de que para obter alguma sensação de futuro, temos que roubá-la do passado, deslocando-nos aos anos em que se formulava a fantasia de como seria a nossa época. Acontece então que enquanto nos anos 50 a projeção imaginária era na direção de um futuro próximo, nos anos 80 o fracasso desse sonho conduz a uma reapropriação nostálgica do momento em que o sonho foi enunciado. Filmes como ‘De Volta para o Futuro’ (Back to the Future, 1985) e ‘Peggy Sue, o passado a espera’ (Peggy Sue got Married, de Francis Ford Coppola, 1986), onde os personagens retrocedem no tempo, ilustra o desejo de voltar ao momento da constituição da família – mesmo que seja para repeti-lo compulsivamente - PEIXOTO, Nelson Brissac, “O Futuro do Passado”, In: (vários autores) Pós-Modernidade, Campinas: Editora Unicamp, 1987.

O “desejo de voltar ao momento da constituição da família” é um impulso mostrado pela personagem Eloise: não conheceu seu pai e sua mãe se matou quando Elli tinh apenas sete anos.  Revelador, talvez por ser essa a ontologia dessa nostalgia artificial: saudades de épocas que não foram vividas. Que nos filmes sci fi sobre viagens no tempo se aglutinam no mito da “segunda chance”.




Porém, essa é uma oportunidade perdida em Noite Passada no Soho. A tocante interpretação da avó de Eloise, Peggy, temendo que a neta repita a trajetória fatal da filha transforma o filme num conto de amadurecimento: da pior maneira possível, Eloise cresce, abandona seus sonhos estilosamente pós-modernos e se transforma numa graduanda bem-sucedida de design de moda.

Ao final, a narrativa cai facilmente no clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a ordem, o velho drama de transgressão e punição.

Não importa um gênero ou tema, esse clichê está sempre presente como uma forma de elaborar a fantasia e expectativas do público: ir ao cinema para quebrar a rotina e desprazer do cotidiano, ver de forma ritualizada a ordem (social, política etc.) ser quebrada no filme para, ao final, prepará-lo para retornar às suas obrigações diárias como se nada tivesse ocorrido. 

Mas sempre no final ou durante a narrativa, aquele que transgrediu a ordem deve ser punido até o arrependimento – no filme, manifestado no plot twist quase no final.  


 

Ficha Técnica 

Título: Noite Passado no Soho

Diretor: Edgar Wright

Roteiro: Edgar Wright, Krysty Wilson-Cairns

Elenco: Thomasin McKenzie, Anya Taylor-Joy, Matt Smith, Diana Rigg, Rita Tushingham, Michael Ajao

Produção: Focus Features International, Film4, Complete Fiction

Distribuição:  Focus Features

Ano: 2021

País: Reino Unido

 

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