quinta-feira, novembro 18, 2021

A propaganda do futuro pós-humano no filme 'Finch'


Depois de vermos Tom Hanks, na virada do século, fazendo grandes monólogos com a bola “Wilson” em “O Náufrago”, no século XXI o ator aprimora sua expertise sustentando linhas de diálogos com uma inteligência artificial androide chamada Jeff. “Finch” (2021) é o veículo perfeito para Hanks: com a sua imagem de “Pai da América” é a escolha perfeita para dar calor a mais um filme de plataforma orientado por algoritmos: fim do mundo + um cãozinho + um robô. Porém, o “Pai da América” vai muito além disso: o tom agridoce que a maleabilidade de Hanks dá ao fim do mundo ajuda a confundir o individualismo do espírito americano com altruísmo. E ajuda a transformar o robô Jeff em garoto propaganda perfeito para tornar fofinho tudo que envolve as gigantes tecnológicas e os desenvolvedores de IA. Afinal, antropomorfizar cãezinhos e robôs é a receita perfeita para criar a imagem propagandística ideal para uma determinada agenda ser aceita pela opinião pública. 

A crítica especializada norte-americana costuma chamar Tom Hanks de “Pai da América”, assim como na década de 90 Meg Ryan era a “namoradinha da América”. Ambos pontilharam seus filmes com personagens comuns que se transformaram em figuras icônicas de uma América sedenta em resgatar seu espírito pioneiro e confiança na individualidade e resiliência.

Tom Hanks sustentou a fé no correio americano em O Náufrago, o adolescente que vive o sonho adulto em Big, o resgate da história dos EUA pela filosofia sobre o nada em Forrest Gump, a voz do clássico cowboy em Toy Story, o poder da iniciativa e da coragem em Apolo 13, um obsessivo agente do FBI em manter a Lei em Pegue-me se for Capaz e assim por diante.

Todos eles têm algo em comum: pessoas normais que fazem coisas extraordinárias. No fundo, o resgate dos princípios fundadores da descrição que os norte-americanos fazem de si mesmos: a fé religiosa da iniciativa individual, na resiliência diante a adversidade e no espírito empreendedor para revertê-la. Personagens agridoces que transbordam positividade e apego aos valores culturais americanos.

Somente esse ator “instantaneamente reconhecível” e “consistentemente maleável” poderia ser a aposta certa em mais um filme com um roteiro visivelmente orientado pelos famosos algoritmos das plataformas de streaming, cujas machine learnings encontram padrões nas escolhas dos usuários.

Sem Tom Hanks, o filme Finch (2021, disponível na Apple TV+) seria mais uma produção esteticamente pastiche, uma espécie de patchwork de tudo aquilo que dá certo em um filme para toda a família: robôs simpáticos (uma dupla que ecoa a célebre dupla desajeitada de Star Wars R2-D2 e C-3PO), um cachorro brincalhão e sensível em meio a um mundo pós-apocalíptico – nesse atual espírito do tempo Elon Muskiano, nove em cada dez sci-fi estão ambientados numa Terra pós-apocalíptica.

Porém, a mistura particular de pathos e confiança que exala de Tom Hanks, dá o calor e organicidade necessária a esse pastiche algorítmico – enquanto filmes pós-apocalípticos estão repletos de estoicismo e músculos, Finch nos mostra como a decência, vulnerabilidade e perícia podem superar o fim do mundo.



Situado em um futuro próximo, Finch acompanha um engenheiro de robótica e seu cãozinho que construiu uma rotina para si mesmo numa cidade de St. Louis devastada por uma catástrofe cósmica que transformou o planeta num inferno desértico sujeito a inesperadas tempestades de areia e irradiado por doses mortais de raios UV.

  Hanks dá um inesperado tom agridoce ao pós-apocalipse. Tão agridoce que acaba diluindo dois temas de relevância atual (afinal, essa é a função dos algoritmos: transformar questões complexas em simples palavras-chave para ajudar a busca dos usuários): o personagem de Hanks confunde individualismo com altruísmo e a responsabilidade que as pessoas carregam ao lidar com Inteligência Artificial (IA) – no caso, o robô Jeff. Um personagem tão impressivo que suscita uma questão: será que ele é apenas uma expressão do zeitgeist no qual IA se torna até curador de filmes em plataformas como a própria Apple TV+? Ou um “product placement” do Vale do Silício? – afinal, como veremos, o nascimento da IA Jeff em tudo se assemelha à digitalização da realidade empreendida pelo Google.




O Filme

Uma explosão solar destruiu a camada de ozônio e a maior parte da vida humana, animal e vegetal na Terra com radiação devastadora. Mesmo alguns segundos de exposição à luz do sol podem ser fatais. 

Finch (Tom Hanks), que já foi um engenheiro e gênio da computação de uma empresa tecnológica que prestava serviço ao Governo, é um solitário e um consertador por natureza. Criar engenhocas e busca alimentos em um traje antirradiação de alta tecnologia o manteve ocupado e o ajudou a permanecer vivo por 15 anos após o fim de quase tudo. 

Goodyear, o cachorro e um pequeno robô fofo chamado Dewey (uma mistura de WALL-E com clássico C-3PO) são seus únicos companheiros. Finch decidiu ficar todos esses anos no mesmo lugar. Afinal, pessoas desesperadas fazem coisas desesperadas: tanto a Costa Oeste ou Leste tem seus perigos criados por hordas que lutam por sobrevivência. Por isso, decidiu permanecer em seu laboratório subterrâneo em St. Louis, no Meio Oeste.

Porém, algo terrível se aproxima e que o forçará a abandonar sua rotina. Há a uma tempestade devastadora se aproximando rapidamente e eles não poderão mais ficar em sua casa. 

Mas Finch também tem outros planos. Anos de exposição às intempéries e subsistindo de pedaços perdidos de comida enlatada afetaram suas entranhas, transformando-se numa doença terminal. Considerando-se em dos últimos habitantes da Terra, Finch preocupa-se com o futuro do cãozinho Goodyear, sozinho no fim do mundo. 

Para Finch, o futuro será pós-humano. Por isso, sua responsabilidade é a de fazer o download de todo o conhecimento da espécie humana para uma IA androide que se autodenominará como Jeff. 




Quase toda a grande biblioteca do laboratório (72% dos dados, afinal falta pouco tempo para a chegada da catastrófica tempestade) é digitalizada rapidamente pelas engenhocas inventadas por Finch, para fazer o download na IA de Jeff.

Como qualquer bom engenheiro, Finch programou o robô com as famosas diretivas de Isaac Asimov, mas acrescentou outra diretiva de substituição. Em vez da primazia da vida humana e do bem-estar de Asimov, Finch diz ao robô que sua primeira prioridade é cuidar do cão.

Quando a tempestade chega, eles partem em um trailer Fleetwood de 1984 alimentado por painéis solares no telhado. Finch quer ir a São Francisco e ver a Ponte Golden Gate antes de morrer. Ele nunca a viu, mas desde adolescente tem um cartão-postal com uma foto. Ele não tem ideia se é seguro lá, mas eles irão "seguir para o oeste pelas montanhas em busca de lugares que não foram saqueados".

Como todos os filmes de viagem, há um destino (“1.811 milhas de distância”, observa o robô) com muitas oportunidades de conflito com forças externas e entre si. Também existem perigos ao longo do caminho. Finch fica frustrado com sua criação e com sua incapacidade de programá-lo para ser tudo o que ele precisa. Mas, apesar de ter apenas 72% dos dados carregados, Jeff se revela uma poderosa machine learning: é capaz de produzir meta-conhecimentos – encontrar padrões e fazer estimativas probabilísticas.

Finch coloca valores “humanos” (ou norte-americanos) na programação: a iniciativa, a individualidade etc. Mas a IA Jeff irá muito além, na perspectiva pós-humana.

Aqui temos a primeira diluição que o roteiro opera sobre um tema tão crucial da atualidade: Jeff torna-se apenas uma IA pós-humana destinada apenas a servir de babá do cãozinho Goodyear.




Zeitgeist ou um case de product placement? Afinal, o que o engenheiro de robótica Finch faz é o que nos últimos anos o Google tem feito intensivamente com seus produtos como Google Books, Earth, Street View etc.: a digitalização da realidade para alimentar a gigantesca IA acalentada pelos cientistas e desenvolvedores do Vale do Silício. Trazendo temores que os próprios insiders das gigantes tecnológicas revelam, como abordamos em postagem anterior – clique aqui.

Zeitgeist ou product placement?

Nesse sentido, o filme é muito mais do que a expressão de um espírito de época (o pós-humanismo). Ao escalar um ator com, digamos assim, expertise em criar relações humanas com objetos inanimados (veja os seus monólogos com a bola “Wilson” em O Náufrago), há uma natureza propagandística na forma como as reponsabilidades éticas ou morais em relação a IA são diluídas no roteiro. Nos emocionamos, e até vertemos algumas lágrimas, ao vermos o crescimento de uma machine learning como algo análogo ao crescimento humano. 

Dessa maneira, Jeff é o garoto propaganda perfeito para tornar agridoce e fofinho tudo que envolve as gigantes tecnológicas e os desenvolvedores de IA. Afinal, antropomorfizar cãezinhos e robôs é a receita perfeita para criar a imagem publicitária ideal para uma determinada agenda ser aceita pela opinião pública.




E deixar de lado questões mais delicadas como as motivações ideológico-místico-religiosas envolvendo o pós-humanismo e a IA, deixa também a motivação profunda das Big Tech: assim como no filme, será que empresas como o Google pressentem que o futuro será pós-humano? Ou melhor, de que a humanidade em geral não tem lugar no futuro, a não ser uma elite tecnológica.

Isso conduz à forma como o filme Finch confunde o individualismo do protagonista com altruísmo. Como o próprio Finch confessa a certa altura, ele sempre foi alguém que não gostava de trabalhar em equipe por achar que sempre tinha as melhores soluções, numa aceita por equipes. 

Percebemos ao longo do filme que Finch nunca teve a menor preocupação em procurar sobreviventes ou tentar reerguer o que sobrou da civilização com todo o seu conhecimento e recursos tecnológicos. Não! Para ele, sua morte será a da própria espécie humana. E decide canalizar todo o conhecimento humano em uma... babá de cachorro.

Ao final de quase duas horas de linhas de diálogo do protagonista com um cão e o robô Jeff, ficamos pensando: será essa a imagem que as Big Tech têm de si próprias e do próprio futuro da humanidade? 



 

Ficha Técnica 

Título: Finch

Diretor: Miguel Sapochnik

Roteiro: Craig Luck e Ivor Powell

Elenco: Tom Hanks, Caleb Landry Jones, Marie Wagenman, Lora Martinez-Cunningham

Produção: Amblin Partners, Dutch Angle, Image Movers

Distribuição:  Apple TV+

Ano: 2021

País: EUA, Reino Unido

 

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