O caso do assédio do
ator José Mayer à figurinista Susllem Tonani é marcado por uma ironia fundamental:
um ator, conhecido por interpretar nas telenovelas sempre o mesmo perfil de personagens
machistas e misóginos, é denunciado por recorrentes assédios
nos bastidores da Globo. Mera coincidência ou sincronismo entre ficção e
realidade? Desde que o chamado “O Método” (criado pela Actors Studio em 1947)
se perverteu em fórmula criadora de um tipo de ator que se limita a interpretar
a si mesmo em repetitivos perfis de personagens estimulados pela linha de
montagem de TV e estúdios de cinema, casos como esses se tornaram recorrentes. No caso da
Globo, marcado por um tautismo (tautologia + autismo) crônico, essa “doença
ocupacional” fica ainda mais evidente. Principalmente quando a reação tanto do
ator quanto da cúpula da emissora foi idêntica: alheios às mudanças que ocorrem
no “deserto do real” (empoderamento feminino, lutas por respeito, diversidade
etc.) são pegos de surpresa e tentam dar respostas oportunistas. E a da Globo é
a mais equizofrênica: diz respeitar as mulheres enquanto diariamente as submete
a papéis subalternos em reality shows, telenovelas e propagandas de cerveja.
Era começo dos anos 1990. Em mais uma edição do
Programa Matéria Prima da TV Cultura, apresentado por Serginho Groisman,
o ator Paulo Autran era o convidado. Com extensa atuação no teatro, naquele
momento Autran era mais conhecido pelos papéis em novelas da TV Globo como Guerra
dos Sexos e Sassaricando.
Groisman abriu para perguntas da plateia. E um
jovem indagou: “Autran, de todos os papéis em novelas da TV, qual deles tinha
mais a ver com você?”.
“Nenhum!”, respondeu Autran de maneira enfática. E
explicou que na profissão o ator deve representar e jamais ser o próprio
personagem, isto é, o ator deve manter sempre um certo distanciamento em
relação a ficção.
Essa resposta mostrou como Paulo Autran era filiado
a uma escola clássica de representação na qual a memória emocional (o psiquismo
do ator) era usada com cautela para dar realismo ao personagem. Na verdade era
mais uma técnica entre várias – concentração cênica, ações físicas etc.
Depois do chamado “O Método” (sistema de atuação
proposto pela Actors Studio de Nova York em 1947 cujos maiores expoentes foram
Marlon Brando e James Dean) tudo isso mudou: a ênfase passou a ser na
experiência emocional do ator necessária para dar realismo ao personagem – o
ator não pode se limitar a representar, mas também deve fornecer ao personagem
o psiquismo pessoal (sua memórias, medos e desejos) para dar espontaneidade e
autenticidade à encenação.
The Actors Sudio: a ficção se alimenta do psiquismo do ator |
O Método e a indústria do entretenimento
Mais tarde a indústria do entretenimento com sua
linha de produção industrial de filmes e, no caso da Globo, telenovelas,
perverteu o Método ao tornar atores escravos de determinados papéis - atores passaram então a interpretar a si
mesmos, investindo o próprio psiquismo em perfis ficcionais repetitivos.
Se a fábrica explora a força física e intelectual
do operário, a indústria do entretenimento explora o psiquismo dos atores.
José Mayer é mais um dos vários atores que acabaram
se especializando em um perfil de personagem e passou a interpretar a si mesmo.
Na Globo, sempre fez o tipo garanhão, o machão arrebatador que seduz todas as
mulheres que cruzam o seu caminho – o bem dotado Osni em Tieta, o galã
de meia idade que trai sua esposa, arrebatado pela beleza de uma misteriosa ninfeta
na minissérie Anita, entre outras.
Mesmo agora, com mais de sessenta anos, foi mais uma
vez escalado para viver outro papel de um machista maniqueísta em Viver a
Vida – um ricaço que já casou várias vezes e que sem a menor cerimônia trai
todas as suas mulheres e namoradas e em Lei do Amor o maquiavélico e também machista Tião Bezerra.
José Mayer em "Presença de Anita" |
Doença ocupacional?
Denunciado
publicamente por assédio sexual pela figurinista Susllem Tonani, a primeira
reação de Mayer foi sintomática: “não misturem ficção com realidade”, e disse
que as palavras e atitudes atribuídas a ele “são próprias do machismo e da
misoginia do personagem Tião Bezerra, não são minhas!”.
Surpreso com a reação da jovem figurinista de 28
anos que terminava o seu contrato provisório com a Globo (segundo ela, o
assédio ocorria desde fevereiro), Mayer quis se escudar atrás da ficção diante
de uma reação ameaçadora da vida real.
Temos nesse caso uma evidente correspondência entre
ficção e realidade, entre o ficcional Tião Bezerra e o ator José Mayer. Mera coincidência?
Ou um fenômeno sincrônico, sintoma de uma espécie de “doença ocupacional”
da linha industrial de produção de telenovelas? Será que Atores/operários,
obrigados a desempenharem perfis de personagens tão repetitivos, acabam se
tornando vítimas de um perverso encontro entre a jornada pessoal do ator e a
narrativa ficcional?
Se essa “doença ocupacional” da profissão de ator
regida pelo Método é recorrente na indústria do entretenimento (como, por
exemplo, em episódios como o de Heath Ledger cujo psiquismo foi afetado pelo
arquétipo do Coringa – clique aqui), no caso da Globo essa
patologia pode ser potencializada pelo tautismo (tautologia + autismo) crônico
de uma emissora fechada em si mesma na qual seja no jornalismo, seja no
entretenimento, criou um “paraíso artificial” que cada vez mais contamina seus
profissionais – sobre isso clique aqui.
Após a cúpula da emissora “apurar” as denúncias da
figurinista (sob pesada reação negativa nas redes sociais, principalmente
depois que o site da Folha retirou o texto da denúncia de Susllen Tonani) e
suspender José Mayer por tempo indeterminado, a nova declaração do ator foi
ainda mais sintomática.
Mayer admitiu que “errou” e pediu desculpas às
mulheres dizendo ser “tristemente, o fruto de uma geração”. “Aprendi nos
últimos dias o que levei 60 anos sem aprender. Eu preciso e quero mudar”,
escreveu Mayer.
Respostas tautistas
Descontando o fato de que todo discurso é uma
racionalização, o fato é que na carta aberta de Mayer perpassa essa
perplexidade de alguém que parece que viveu por um bom tempo no interior de
alguma bolha do tempo. Mesmo vivendo e trabalhando no meio artístico, teatral,
cinematográfico e televisivo (por sua própria natureza, o setor da sociedade
culturalmente mais dinâmico), parece que Mayer não percebeu as rápidas mudanças
socioculturais do País e do mundo nas últimas décadas.
Ele e a própria emissora, fechada em si mesmo no
seu tautismo crônico. A própria reação da Globo foi parecida com a de José
Mayer: surpresa, teve que correr contra o tempo diante da repercussão e reações
negativas que começaram a pipocar por todo lado fora dos muros do Projac.
O assédio de Mayer à figurinista era contínuo desde
fevereiro, assim como o mal estar nos corredores do complexo de estúdios de
gravação. Como na praxe corporativa, a emissora procurou colocar panos quentes
para abafar o caso. Instaurou uma “apuração interna” para esperar o caso
morrer.
Pessoalmente desgastada e vendo seu período
contratual acabar na Globo, Susllen Tonani resolveu denunciar publicamente por
meio de carta publicada no site da Folha. A primeira manifestação da Globo foi
protocolar para episódios como esse, encerrando de forma imperial: “A Globo não
comenta assuntos internos”.
Resposta recorrente como, por exemplo, nas
suspeitas de agressão e estupro no reality Big Brother. Algumas foram
até parar na delegacia.
Obsequiosamente, a Folha tirou do ar a denuncia da
Susllen Tonani, alegando que “precisava ouvir o outro lado” – a Folha parece
ter uma aplicação bastante seletiva do seu manual geral de redação.
O que só jogou mais combustível aos boatos nas
redes sociais e no mal estar interno entre funcionários e atores – “O Zé Mayer
não se emenda”, comentou a atriz Letícia Sabatella no Twitter, sugerindo um
comportamento contumaz e notório do ator.
Ou seja, assim como José Mayer, a Globo começou a
perceber que os tempos estão mudando. Porém, o novo movimento dos executivos da
emissora foi, como não poderia deixar de ser, tautista.
Do tautismo à esquizofrenia
Sem alternativa, a cúpula teve que estimular o que
chamaram de “manifestação” (e não “protesto”) fazendo funcionárias e artistas
vestirem a camiseta com a frase “Mexeu com uma, mexeu com todas” em redes
sociais.
Em questão de horas, deixou de ser “assunto
interno” para se tornar uma “manifestação” pública incentivada pela própria
cúpula da Globo como oportunista estratégia de engenharia de opinião pública.
Fazendo o até então “blindado” José Mayer andar na prancha, jogando-o ao mar.
De tudo isso, percebe-se que nesse movimento na
corda bamba no qual a Globo tenta se equilibrar entre o seu tautismo patológico
e as rápidas mudanças que ocorrem no “deserto do real” fora dos muros do
Projac, a emissora parece se deteriorar em esquizofrenia e hipocrisia.
Os executivos da Globo se esforçam em criar uma
imagem plural de diversidade, tolerância e de suspostamente acreditarem nos
valores éticos do respeito e cidadania.
Ao mesmo tempo a emissora mantém um reality show
machista e misógino como o Big Brother (cujo o ponto alto são refregas
debaixo dos edredons e as intrigas e assédios nas festas turbinadas com
álcool); telenovelas nas quais maior ambição das personagens femininas é
encontrar um homem que as ame e as proteja; e jogos de futebol com diversos
comerciais que reduzem a mulher ao mesmo patamar dos copos cheios de cerveja.
O mais irônico de tudo isso é que a Globo até
parecia que começava a se preocupar com a “doença ocupacional” de José Mayer:
na próxima novela que atuaria em 2018 (O Sétimo Guardião de Aguinaldo
Silva), o ator viveria um papel diferente de tudo que tinha feito até antão nos
folhetins. Seria um homem que teve a vida completamente destruída pela vilã
vivida na trama por Lília Cabral...
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