Estamos no universo dos bonecos daquelas
maquetes que vemos em show room de lançamentos imobiliários. Um boneco
argentino chamado Javier vem para São Paulo aproveitando o boom imobiliário no
bairro do Tatuapé. Através dele conhecemos como esses pobres trabalhadores são
explorados por agentes imobiliários e sujeitos a arbitrariedade de filhos de
clientes que tratam as maquetes como fossem brinquedos. Mas também conhecemos
os dramas existenciais da vida secreta dos bonecos de maquetes. Esse é o curta
de animação brasileiro “Edifício Tatuapé Mahal” (2014) da dupla de diretoras
Fernanda Salloum e Carolina Markowicz. Um interessante mix de humor negro com
paródia ao típico melodrama latino-americano.
O leitor certamente já deve ter visto aquelas maquetes no show
room de lançamentos imobiliários: miniaturas de projetos feitas por habilidosas
mãos de artistas auxiliado por máquinas e programas de computadores que
permitem cortar os matérias utilizados, representando em acrílico, cola e
massas plásticas o cotidiano do feliz comprador.
Nessas maquetes de prédios e condomínios, vemos sempre pequenos
bonecos que andam de bicicleta, caminham com esposa e filhos ou deitam
preguiçosamente ao lado de uma piscina. E se eles tiverem uma vida secreta?
Forem trabalhadores comuns submetidos a longas horas de trabalho? Têm vida
pessoal com casa e esposa. E ainda sujeitos aos caprichos comerciais das
construtoras ou até mesmos de filhos vândalos de compradores que roubam bonecos
das maquetes em exposição enquanto os pais negociam com os corretores.
Esse é o curioso argumento do curta Edifício Tatuapé Mahal (2014) de Fernanda Salloum e Carolina
Markowicz. Lembrando a trilogia de animação da Pixar Toy Story, só que numa versão adulta, o curta acompanha a estória
de Javier Juarez Garcia, um boneco de maquete argentino que vem trabalhar em
São Paulo, aproveitando o boom imobiliário dos bons tempos da expansão da nova
classe média C no Brasil.
O Curta
No show room do lançamento do edifício Tatuapé Mahal, no bairro
paulistano do Tatuapé, Javier trabalha
em longas jornadas de trabalho de sol a sol. Ele narra em of a sua infeliz
jornada, reclamando dos agentes imobiliários que utilizam maquetes para dar a
sensação de oásis em edifícios “de merda”. E quem sofre são os bonecos, por longas horas fazendo pose.
Como, por exemplo, o sofrimento de
um companheiro de Javier forçado a andar de bicicleta 1.800 horas numa exígua área
externa que no prédio real nem existirá.
Cansado de mais um dia de trabalho, Javier volta para sua casa em
um outro prédio de maquete em uma espécie de universo paralelo invisível aos
humanos. Lá terá um grande choque: encontrar sua esposa na cama com outro
boneco de uma maquete do empreendimento mais luxuoso que o dele com pé-direito duplo e até varanda gourmet...
Desesperado decide largar tudo e vagar pelo mundo. Para encontrar
na Polônia um mercado negro de cirurgiões especializado em transformações em bonecos de maquete, inclusive mudança de sexo.
Um mercado que envolve milhões de dólares com bonecos que buscam a troca de
personagem para variar os temas de maquetes e dobrar seus rendimentos.
Javier transforma-se em uma mulher sexy para maquetes de praias
paradisíacas. Mas ele sabe que precisa retornar a São Paulo para liquidar o
boneco que roubou sua esposa e limpar a sua honra. Afinal, como diz
emblematicamente Javier, “foi para recuperar minha hombridade que me
transformei em mulher!”.
O curta viajou por mais de 200 festivais pelo mundo, conquistando
20 prêmios. Sua produção levou 11 meses de trabalho duro de filmagem e mais
seis meses de pós-produção usando uma combinação de animação 3D e stop-motion.
A ideia para o curta surgiu em uma viagem a Londres, quando a
dupla de diretoras foi instantaneamente atraída para uma loja com uma enorme
variedade de modelos, bonecos e maquetes. Marckowicz revela: “pensamos que
seria interessante uma estória sobre um personagem em um modelo de escala que
tivesse as mesmas questões emocionais de um ser humano, mas vivendo-as em seu próprio
mundo”.
O prazer estético da maquete
Se na antiguidade as maquetes tiveram uma origem militar (egípcios
utilizavam maquetes para reconhecimento do território e vikings espiões que
produziam miniaturas dos territórios a serem invadidos), a partir do século XX
ganharam espaço como modelos de felicidade à venda em pequena escala.
Como fosse um microcosmo dos dramas existenciais humanos, o curta
tematiza o que haveria por trás desses “oásis de felicidade” – a exploração do
trabalho pelas exigências do mercado imobiliário, questões de gênero (o
protagonista que vira transexual e volta para o Brasil para defender sua
“honra”), de cor, raça e preconceito – o amante da sua ex-esposa era um boneco
“colorido”, enquanto ela era “branca”, assim como ele.
O tom da animação é um mix de humor negro com um típico melodrama
latino-americano.
Mas há também o paralelo entre o mundo real e a das maquetes e
modelos que reproduzem em escala menor o nosso mundo. O fascínio pela miniatura
que de início nos oferece o prazer estético da redução, depuração e
estilização.
Enquanto no mundo real, conhecer um objeto exige uma trabalhosa
operação por partes (o objeto resiste, exigindo a sua divisão), na redução da
escala, ao contrário, nos oferece o prazer de conhecermos o todo em um único
golpe de vista. A experiência do conjunto precede agora a das partes.
Fascínio gnóstico
Esse fascínio expressaria a própria maneira como secretamente nós
próprios avaliamos a experiência humana como prisioneiros em um mundo como
também fosse uma maquete em escala reduzida feita por um deus ou demiurgo.
Esse imaginário é elaborado desde A República de Platão: a metáfora do ser humano como um fantoche
que vive em uma caverna que confunde o jogo de sombras da parede como a própria
realidade.
O fascínio atual por modelos, réplicas, fantoches, autômatos ou
jogos de simulação de mundos reais em games de computador seria expressão dessa
suspeita gnóstica que habita em nós: e se o nosso próprio mundo for igual
àquele da maquete do Edifício Tatuapé Mahal?
Lá os bonecos estão sujeitos às arbitrariedades de agente
imobiliários e filhos de clientes que depredam e roubam bonecos das maquetes –
e o que é pior, sem saberem desfazendo famílias...
E aqui no nosso mundo real, somos sacados arbitrariamente pela
morte e explorados pelo mesmo mercado que exploram aqueles infelizes bonecos de
maquete.
Ficha Técnica |
Título: Edifício Tatuapé Mahal (curta)
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Diretor: Fernanda
Salloum e Carolina Markowicz
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Roteiro: Fernanda Salloum e Carolina Markowicz
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Elenco: Daniel Hendler (narração)
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Produção: Fulano Filmes
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Fotografia: Mario Dalola
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Montagem: Rami D’Aguiar
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Ano: 2014
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País: Brasil
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