Se Freud estiver correto de que o chiste, o humor e o riso são formas de
lidar com o mal estar, como interpretar as queixas contra o novo filme
publicitário da Bombril por causa do trocadilho sobre “divas” e “vagarosidade”
na criação da campanha”? Se toda peça audiovisual é sintoma de uma época, o que
nos dizem as garotas-propaganda Ivete Sangalo, Dani Calabresa e Monica Iozzi? A
piada sobre uma suposta “vagarosidade” masculina é mais uma tática para
combater o irônico destino do feminismo: a descoberta do “impoder” masculino. O
homem não só deixou de ser o vilão da interdição do gozo e da liberdade
feminina como também transformou-se no próprio destino das mulheres livres: ser
tão frágil e impotente como o homem sempre foi.
“Todo riso está
muito próximo do horror que o prepara”, disse uma vez o filósofo alemão Theodor
Adorno sobre as secretas conexões entre o humor e a tragédia. E se ainda vemos
o humor combinado com uma peça audiovisual de criação publicitária, então
estamos diante de um verdadeiro documento histórico sobre a sensibilidade de
uma época.
No caso da nova
propaganda da Bombril investigada pelo órgão de autorregulamentação
publicitária (o Conar), o comercial veiculado pela TV transformou-se em um
verdadeiro sintoma das relações atuais entre os gêneros feminino e masculino.
A campanha está
sendo investigada pelo Conar a partir de queixas de que o mote da criação é uma
“discriminação de gênero” e “uma ofensa à figura masculina”.
No comercial as
garotas-propaganda da marca (a cantora Ivete Sangalo, a humorista Dani
Calabresa e a apresentadora Monica Iozzi) dizem que “toda mulher é uma diva. A
gente arrasa no trabalho, faz sucesso o dia todo e ainda deixa a casa
brilhando”, afirma Ivete. Na sequência, Dani Calabresa arremata: “Toda mulher é
uma diva, e todo homem é diva-gar [devagar]”.
E para complicar,
a campanha da Bombril conseguiu ainda arrancar críticas das próprias mulheres,
classificando-a como “machista” por supostamente reforçar a imagem de que a
mulher é quem cuida da casa.
Certamente, o aforismo supracitado de Adorno
baseou-se na visão freudiana das relações entre o chiste, o humor e o riso como
formas efetivas de se lidar com o mal-estar. Se isso for verdade, poderíamos
perguntar: de qual mal estar esse trocadilho (“diva” e “diva-gar”) é sintoma?
Essa peça audiovisual é um documento histórico que expressa qual sensibilidade
da nossa época?
Em primeiro lugar,
o trocadilho é inspirado nas piadas femininas sobre uma suposta limitação
cognitiva masculina – somos incapazes de fazer mais de uma coisa ao mesmo
tempo, usamos apenas o lado direito do cérebro é funcional e, de quebra, ainda
somos acomodados e preguiçosos em uma relação etc.
O “impoder” masculino
Mas essa
“decepção” feminina em relação aos homens é um sintoma de um movimento cultural
ainda mais profundo: o paradoxal êxito dos movimentos de emancipação feminina
ao longo do século XX resultou na descoberta da fragilidade do masculino.
Não mais protestos
contra o poder do homem e o falocentrismo de uma sociedade baseada na figura
masculina poderosa, mas agora um ressentimento das mulheres contra uma espécie
de “impoder” masculino.
Se no passado o
feminismo tradicional mirava o masculino triunfante e seus ícones de poder (o
voto, a calça comprida, o cigarro, o charuto, o carro, o poder político etc.),
agora é alimentado pelo ódio e ressentimento diante da descoberta que, no
final, o homem é frágil e tão vítima quanto ela.
Se as mulheres
eram despojadas das prerrogativas e privilégios do masculino (e toda a luta
épica do feminismo foi pela reversão disso), posteriormente descobriram que
tornaram-se igualmente exploradas pelo mercado de trabalho e pelas corporações.
No final, descobriram que toda luta foi pelo “privilégio” de serem igualmente
valorizadas como alvo da exploração – como consumidoras, como eleitoras, como
mão de obra barata no mercado.
A mulher não é
mais alienada pelo homem, mas repentinamente foi despojada da figura do
masculino. De repente, o inimigo desapareceu na descoberta da sua fragilidade e
de que, assim como o homem, as mulheres fracassam na busca de transformação ou
mudança de uma sociedade.
A função simbólica do assédio
Esse ressentimento
diante da figura fracassada do masculino se exprime contraditoriamente no
fantasma do assédio sexual.
O surgimento do
fantasma do assédio e do estupro (que vira pauta midiática e campanhas de
conscientização e denúncias) assume uma função simbólica de criar uma nova
interdição sexual, uma tentativa de reerguer a figura do masculino, mesmo que
seja no campo da brutalidade, animalidade e selvageria.
Transformar
novamente o homem em um oponente forte, poderoso e ameaçador como fosse ainda
um personagem que dá as cartas do jogo, contra quem as mulheres ainda podem se
rebelar.
É claro que o
assédio sexual é muito mas do que um fantasma, mas uma realidade cotidiana e
incômoda para muitas mulheres por questões sócio-culturais ou urbanas - talvez
uma formação reativa da própria fragilidade da qual os homens se ressentem. Mas
também sabemos que quando a mídia agenda determinado tema, é porque este se
reveste de uma oportunidade ideológica para reforçar outras agendas e pautas –
como a do ressentimento feminino e da fragilidade do masculino, atual mote de
muitas táticas de propaganda como a da campanha da Bombril em questão.
O “impoder” dos pais
O mal estar do
feminismo diante da descoberta do “impoder” do masculino somente se equipara ao
ressentimento dos filhos contra os pais que não querem mais assumir o papel de
pais.
Depois das
gerações de filhos que criaram a contracultura que alimentou a rebeldia contra
a ordem parental triunfante, repentinamente descobriram-se despojadas da figura
paterna: descobriram que os pais transformaram-se em jovens adultos cuja
fragilidade é alimentada pela própria sociedade de consumo para que, dessa
maneira, convertam-se em pais frágeis que cedem à demandas por consumismo dos
filhos.
Pais jovens
adultos que aproveitam-se da emancipação dos filhos para livrarem-se do papel
parental e viver uma espécie de irresponsabilidade feliz por meio da
terceirização da responsabilidade – seja através da escola, do professor, do psicoterapeuta
ou, no final, do padrasto.
Mulheres e filhos
descobriram que o poder fálico masculino e o poder parental tinham pés de barro
– foram investidos como os verdadeiros vilões imaginários da interdição do
gozo, do prazer, da liberdade e da cidadania.
Derrubado os
portões e invadido o castelo, descobrem que o rei sempre esteve nu: era frágil,
inseguro e vítima do mesmo mal que os novos “emancipados” agora experimentarão
– a fragilidade da autoridade parental diante do poder midiático e corporativo,
assim como o fracasso masculino em corresponder as símbolos fálicos de poder
(dinheiro, sucesso etc.) que supostamente definirão o papel masculino – o
provedor, o protetor, o dominador.
O medo dos machos
O mal estar do
discurso feminista ironizado pela campanha da Bombril já começava a ser
delineado na década de 1990, como demonstra um antigo artigo de Arnaldo Jabor
(no tempo em que suas análises eram ainda relevantes) intitulado “Ninguém mais
namora as deusas mulheres”. Partindo de uma declaração da apresentadora Adriane
Galisteu (“os homens não querem namorar símbolos sexuais”) Jabor discorria
sobre o “medo dos machos” diante das mulheres midiáticas bem sucedidas, siliconadas
e anabolizadas.
Para ele, essas
mulheres prometiam um prazer impossível, um “orgasmo metafísico” de uma
sociedade de consumo narcisista para o qual os homens não estão preparados –
leia aqui.
O humor da
campanha da Bombril é não só um sintoma cultural desse mal estar do feminismo
como também surfa nele: a ironia de Sangalo, Calabresa e Iozzi à “vagarosidade”
masculina ajuda simbolicamente a tentar recriar a diferença de gênero e a
manutenção do homem como um suposto agente que ainda interdita a felicidade
feminina – a pauta midiática do assédio feminino é outra dessas estratégias.
No final, na
própria fala do filme publicitário da Bombril encontramos o resultado da
irônica conquista de décadas de feminismo: o dever da mulher ser uma “diva”, isto é, ser obrigada a
“brilhar” no trabalho, o dia todo em todos os lugares e ainda em casa.
As mulheres acabam descobrindo que, afinal, os homens eram dominados, explorados e fragilizados por um poder fálico muito maior do que o próprio homem, muito maior do que os conflitos de gênero – a mídia, a sociedade de consumo, a corporação, o mercado, mundo no qual, atônitas, as mulheres descobrem que finalmente ficaram em pé de igualdade com os homens na tragédia.
As mulheres acabam descobrindo que, afinal, os homens eram dominados, explorados e fragilizados por um poder fálico muito maior do que o próprio homem, muito maior do que os conflitos de gênero – a mídia, a sociedade de consumo, a corporação, o mercado, mundo no qual, atônitas, as mulheres descobrem que finalmente ficaram em pé de igualdade com os homens na tragédia.
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