sexta-feira, setembro 11, 2015

Toda mulher é uma diva, e todo homem é "diva-gar"

Se Freud estiver correto de que o chiste, o humor e o riso são formas de lidar com o mal estar, como interpretar as queixas contra o novo filme publicitário da Bombril por causa do trocadilho sobre “divas” e “vagarosidade” na criação da campanha”? Se toda peça audiovisual é sintoma de uma época, o que nos dizem as garotas-propaganda Ivete Sangalo, Dani Calabresa e Monica Iozzi? A piada sobre uma suposta “vagarosidade” masculina é mais uma tática para combater o irônico destino do feminismo: a descoberta do “impoder” masculino. O homem não só deixou de ser o vilão da interdição do gozo e da liberdade feminina como também transformou-se no próprio destino das mulheres livres: ser tão frágil e impotente como o homem sempre foi.

“Todo riso está muito próximo do horror que o prepara”, disse uma vez o filósofo alemão Theodor Adorno sobre as secretas conexões entre o humor e a tragédia. E se ainda vemos o humor combinado com uma peça audiovisual de criação publicitária, então estamos diante de um verdadeiro documento histórico sobre a sensibilidade de uma época.

No caso da nova propaganda da Bombril investigada pelo órgão de autorregulamentação publicitária (o Conar), o comercial veiculado pela TV transformou-se em um verdadeiro sintoma das relações atuais entre os gêneros feminino e masculino.

A campanha está sendo investigada pelo Conar a partir de queixas de que o mote da criação é uma “discriminação de gênero” e “uma ofensa à figura masculina”.

No comercial as garotas-propaganda da marca (a cantora Ivete Sangalo, a humorista Dani Calabresa e a apresentadora Monica Iozzi) dizem que “toda mulher é uma diva. A gente arrasa no trabalho, faz sucesso o dia todo e ainda deixa a casa brilhando”, afirma Ivete. Na sequência, Dani Calabresa arremata: “Toda mulher é uma diva, e todo homem é diva-gar [devagar]”.

E para complicar, a campanha da Bombril conseguiu ainda arrancar críticas das próprias mulheres, classificando-a como “machista” por supostamente reforçar a imagem de que a mulher é quem cuida da casa.


 Certamente, o aforismo supracitado de Adorno baseou-se na visão freudiana das relações entre o chiste, o humor e o riso como formas efetivas de se lidar com o mal-estar. Se isso for verdade, poderíamos perguntar: de qual mal estar esse trocadilho (“diva” e “diva-gar”) é sintoma? Essa peça audiovisual é um documento histórico que expressa qual sensibilidade da nossa época?

Em primeiro lugar, o trocadilho é inspirado nas piadas femininas sobre uma suposta limitação cognitiva masculina – somos incapazes de fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo, usamos apenas o lado direito do cérebro é funcional e, de quebra, ainda somos acomodados e preguiçosos em uma relação etc.

O “impoder” masculino


Mas essa “decepção” feminina em relação aos homens é um sintoma de um movimento cultural ainda mais profundo: o paradoxal êxito dos movimentos de emancipação feminina ao longo do século XX resultou na descoberta da fragilidade do masculino.

Não mais protestos contra o poder do homem e o falocentrismo de uma sociedade baseada na figura masculina poderosa, mas agora um ressentimento das mulheres contra uma espécie de “impoder” masculino.

Se no passado o feminismo tradicional mirava o masculino triunfante e seus ícones de poder (o voto, a calça comprida, o cigarro, o charuto, o carro, o poder político etc.), agora é alimentado pelo ódio e ressentimento diante da descoberta que, no final, o homem é frágil e tão vítima quanto ela.

Se as mulheres eram despojadas das prerrogativas e privilégios do masculino (e toda a luta épica do feminismo foi pela reversão disso), posteriormente descobriram que tornaram-se igualmente exploradas pelo mercado de trabalho e pelas corporações. No final, descobriram que toda luta foi pelo “privilégio” de serem igualmente valorizadas como alvo da exploração – como consumidoras, como eleitoras, como mão de obra barata no mercado.


A mulher não é mais alienada pelo homem, mas repentinamente foi despojada da figura do masculino. De repente, o inimigo desapareceu na descoberta da sua fragilidade e de que, assim como o homem, as mulheres fracassam na busca de transformação ou mudança de uma sociedade.

A função simbólica do assédio


Esse ressentimento diante da figura fracassada do masculino se exprime contraditoriamente no fantasma do assédio sexual.

O surgimento do fantasma do assédio e do estupro (que vira pauta midiática e campanhas de conscientização e denúncias) assume uma função simbólica de criar uma nova interdição sexual, uma tentativa de reerguer a figura do masculino, mesmo que seja no campo da brutalidade, animalidade e selvageria.

Transformar novamente o homem em um oponente forte, poderoso e ameaçador como fosse ainda um personagem que dá as cartas do jogo, contra quem as mulheres ainda podem se rebelar.

É claro que o assédio sexual é muito mas do que um fantasma, mas uma realidade cotidiana e incômoda para muitas mulheres por questões sócio-culturais ou urbanas - talvez uma formação reativa da própria fragilidade da qual os homens se ressentem. Mas também sabemos que quando a mídia agenda determinado tema, é porque este se reveste de uma oportunidade ideológica para reforçar outras agendas e pautas – como a do ressentimento feminino e da fragilidade do masculino, atual mote de muitas táticas de propaganda como a da campanha da Bombril em questão.

O “impoder” dos pais


O mal estar do feminismo diante da descoberta do “impoder” do masculino somente se equipara ao ressentimento dos filhos contra os pais que não querem mais assumir o papel de pais.


Depois das gerações de filhos que criaram a contracultura que alimentou a rebeldia contra a ordem parental triunfante, repentinamente descobriram-se despojadas da figura paterna: descobriram que os pais transformaram-se em jovens adultos cuja fragilidade é alimentada pela própria sociedade de consumo para que, dessa maneira, convertam-se em pais frágeis que cedem à demandas por consumismo dos filhos.

Pais jovens adultos que aproveitam-se da emancipação dos filhos para livrarem-se do papel parental e viver uma espécie de irresponsabilidade feliz por meio da terceirização da responsabilidade – seja através da escola, do professor, do psicoterapeuta ou, no final, do padrasto.

Mulheres e filhos descobriram que o poder fálico masculino e o poder parental tinham pés de barro – foram investidos como os verdadeiros vilões imaginários da interdição do gozo, do prazer, da liberdade e da cidadania.

Derrubado os portões e invadido o castelo, descobrem que o rei sempre esteve nu: era frágil, inseguro e vítima do mesmo mal que os novos “emancipados” agora experimentarão – a fragilidade da autoridade parental diante do poder midiático e corporativo, assim como o fracasso masculino em corresponder as símbolos fálicos de poder (dinheiro, sucesso etc.) que supostamente definirão o papel masculino – o provedor, o protetor, o dominador.

O medo dos machos


O mal estar do discurso feminista ironizado pela campanha da Bombril já começava a ser delineado na década de 1990, como demonstra um antigo artigo de Arnaldo Jabor (no tempo em que suas análises eram ainda relevantes) intitulado “Ninguém mais namora as deusas mulheres”. Partindo de uma declaração da apresentadora Adriane Galisteu (“os homens não querem namorar símbolos sexuais”) Jabor discorria sobre o “medo dos machos” diante das mulheres midiáticas bem sucedidas, siliconadas e anabolizadas.


Para ele, essas mulheres prometiam um prazer impossível, um “orgasmo metafísico” de uma sociedade de consumo narcisista para o qual os homens não estão preparados – leia aqui.

O humor da campanha da Bombril é não só um sintoma cultural desse mal estar do feminismo como também surfa nele: a ironia de Sangalo, Calabresa e Iozzi à “vagarosidade” masculina ajuda simbolicamente a tentar recriar a diferença de gênero e a manutenção do homem como um suposto agente que ainda interdita a felicidade feminina – a pauta midiática do assédio feminino é outra dessas estratégias.

No final, na própria fala do filme publicitário da Bombril encontramos o resultado da irônica conquista de décadas de feminismo: o dever da mulher ser uma “diva”, isto é, ser obrigada a “brilhar” no trabalho, o dia todo em todos os lugares e ainda em casa. 

         As mulheres acabam descobrindo que, afinal, os homens eram dominados, explorados e fragilizados por um poder fálico muito maior do que o próprio homem, muito maior do que os conflitos de gênero – a mídia, a sociedade de consumo, a corporação, o mercado, mundo no qual, atônitas, as mulheres descobrem que finalmente ficaram em pé de igualdade com os homens na tragédia.

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