Era o que faltava! Em meio a atual atmosfera politicamente pesada de
polarização e intolerância, eis que suásticas começam a se espalhar não só em
cartazes de grupelhos neofascistas, mas agora também em instituições que
deveriam trazer a esperança civilizatória em meio à barbárie: escolas públicas
e universidades. Cheios de boas intenções (conscientizar, debater e denunciar),
estudantes desfilam com suásticas e um estande de uma feira universitária
transforma-se num bizarro parque temático nazista com prisioneiros judeus com
camisas listradas com a estrela de Davi e alunas felizes e elegantes em seus
uniformes da SS e braçadeiras com a indefectível suástica, posando para selfies.
Nas suas ingenuidades semióticas, falam que as suásticas são apenas
“expositivas”, com as melhores intenções pedagógicas, como se as imagens pudessem ser neutras e apenas ilustrativas.
Sem saberem, estão manipulando cepas de ícones-índices de alto poder viral com
efeitos imprevisíveis em redes sociais e opinião pública.
Como se já não
bastasse a pesada atmosfera atual de polarização que domina a opinião pública
no País, de forma surpreendente o setor educacional (que deveria ser uma
referência civilizatória em meio à barbárie) dá também sua contribuição à
turbulência política, de forma ingênua e desajeitada.
Em um desfile
promovido pela Prefeitura da cidade de Taboão da Serra, para comemorar o Dia da
Independência, alunos representando uma escola municipal traziam nas mãos
suásticas nazistas para representar os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim. O
tema do desfile era “Olimpíadas” (alusão aos jogos olímpicos que serão
disputados no Brasil no próximo ano) e para cada escola foi sorteada uma edição
das Olimpíadas.
Em nota, a
secretaria de educação do município justificou que a suástica teve apenas um
“teor de representação de fatos históricos ocorridos na Alemanha”.
Das boas intenções ao inferno
De Taboão da Serra
para a cidade de Bauru. Pouco tempo depois das pichações racistas com desenhos
de suásticas nazistas no campus da Unesp com dizeres como “A Unesp está cheia
de macacos” e “as mulheres negras fedem”, a USC (Universidade Sagrado Coração)
promoveu a semana da Feira das Profissões 2015 onde mais uma vez suásticas
foram expostas por uma instituição de ensino.
A feira da USC chamou
a atenção ao apresentar os estudantes de História utilizando bandeiras com a
suásticas e felizes alunos trajando o uniforme da SS e outros com a vestimenta
dos prisioneiros judeus em campos de concentração, listrada e com a estrela de
Davi – o que transformou o estande do curso de História da universidade em um
mórbido parque temático nazista.
Repleto de boas
intenções, a resposta da USC à polêmica falava que o estande era “expositivo” e
que o propósito das imagens era “ensinar, conscientizar e abrir espaço para
debates” e a “importância da Democracia, da Justiça e da Igualdade”.
Na prática, o
resultado foram inacreditáveis selfies que se espalharam na redes sociais de
estudantes alegres, felizes, sorridentes, confortáveis e elegantes em seus
uniformes da SS e empunhando braçadeiras com a suástica. É inegável que houve
alguma contradição entre forma e conteúdo, intenções e resultado.
O que há em comum
nos episódios de Taboão da Serra e Bauru é uma concepção semioticamente ingênua
de que as imagens podem ser meramente ilustrativas, como se existisse um grau zero
da representação – as imagens como simples decalques da realidade.
Tabu e idolatria das imagens
Em toda História,
a imagem nunca foi neutra: ela pode fascinar e exigir ser tocada (a chamada
“imagem-índice”), pode inspirar somente prazer como na arte (“imagem-ícone”) ou
ainda produzir distanciamento e reflexão – “imagem-símbolo”.
Por isso a imagem
foi motivo de tabu e idolatria: das advertências do Velho Testamento bíblico
sobre a idolatria por imagens à utilização propagandística da Igreja Católica
com seus vitrais e afrescos com “imagens-índices” que produziam fascínio e
temor.
Os designers do
III Reich certamente compreendiam isso ao pegarem um símbolo esotérico (a
“swastika”, na Índia associado ao “auspicioso”, Buda, ou a Ganesh, divindade da
sabedoria) e converter em um ícone – com sua forma invertida, ganhou dinamismo
com a nova apresentação em sinistrogira:
como se girasse em sentido anti-horário.
Qualquer símbolo
transformado em ícone ganha força viral de disseminação. Isso porque a imagem
jamais é neutra (“ilustrativa” ou “expositiva”) – ela tem a força da intenção.
Imagem é propaganda.
Os “déficits da imagem”
Para a Semiótica, quatro “déficits” impediriam a imagem de atingir essa suposta
neutralidade ou representação objetiva da realidade:
a) A imagem ignora o enunciado negativo.
Toda imagem é afirmativa, auto-suficiente e completa. É impossível negar um
objeto por meio da apresentação da sua imagem em uma proibição, um programa ou
um projeto. Dessa maneira, como conscientizar sobre os horrores do nazismo
expondo publicamente a suástica e uniformes? Como proibir mostrando
publicamente o que é negado?
b) A imagem só pode mostrar o particular em um
contexto particular e não categorias ou tipos. Toda imagem descontextualiza
por ser auto-suficiente. Por isso, bandeiras e cartazes com suásticas e
uniformes negros da SS fora do contexto transformam-se em parques temáticos
afirmativos. Operadores linguísticos de negação ou de contextualização existem
apenas nos símbolos – no texto, na palavra etc. Porém, o símbolo é impotente
diante da força viral da imagem, principalmente exposta publicamente. O símbolo
é consumido individualmente, enquanto a imagem tem uma força coletiva.
c) A imagem ignora operadores sintáticos de
disjunção (ou... ou) e da hipótese (se... então). A imagem só procede por adição e justaposição
sobre um único plano da realidade. Toda imagem é alógica. Por isso que negar o
nazismo apresentando suas imagens propagandísticas é impossível. Isso somente é
possível no audiovisual onde as imagens são editadas e montadas em uma
narrativa lógica. Por isso soa ingênuo montar estandes ou desfilar com
cartolinas expondo suásticas.
d) A imagem ignora marcadores de tempo.
Toda imagem aspira ao eterno. Por isso ela é sempre contemporânea – o futuro ou
o passado não têm equivalente visual. A imagem sempre é presente, a não ser em
um audiovisual onde uma voz em off descreva temporalmente a imagem. Por isso, a
força propagandística das imagens: arranca-las do passado para serem expostas
no presente as ressuscita, tornam-nas atuais – sobre esses “déficits da imagem”
leia mais em DEBRAY, Regis. Vida e Morte da Imagem, Vozes, 1992.
Imagem é magia, fetichismo e vírus
Talvez todos os
tabus e proibições em relação às imagens em diversas culturas e religiões
(como, por exemplo, na lei mosaica – “Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma
imagem de qualquer coisa no céu, na terra ou nas águas debaixo da terra”, Êxodo
20:4-6) não sejam meras crendices ou superstições.
Há algo de magia e
fetichismo nas imagens que as tornam perigosamente indiciais, assim como na
idolatria o ícone se transforma no próprio corpo e sangue santificados.
Convertendo-se em imagens-índices produzem efeitos físicos e virais.
Assim como nenhuma
feira de ciências escolar colocaria alunos em um estande manipulando cepas do
vírus ebola ou da gripe espanhola, da mesma forma nenhum trabalho escolar ou
feira universitária deveria colocar estudantes manipulando imagens com alto
poder semiótico viral.
Principalmente no
momento atual onde a atmosfera é altamente condutora para a disseminação dos
efeitos dessas imagens-índices. Basta ver o exemplo de cartazes espalhados na
cidade de Niterói-RJ com ícones inspirados na Ku Kux Klan ameaçando
homossexuais, muçulmanos e comunistas e pregando a intolerância religiosa e
sexual.
Persistindo na
metáfora viral sobre o poder dessas imagens-índices, tal como no mundo das
pesquisas bio-científicas as imagens como suásticas e uniformes da SS apenas
deveriam ser manipuladas e estudadas em grupos fechados de pesquisas ou salas
de aula com a assistência de professores especialistas. Expor essas imagens
publicamente, mesmo com as melhores intenções de conscientização e denúncia,
corresponderia a mesma ingenuidade de alertar sobre os riscos de um
determinando vírus expondo publicamente cepas da doença para mostrar quão
horrível é o aspecto do mal.
E mesmo sob
ambiente controlado, ainda assim são perigosas e sujeitas a acidentes como o
relatado pelo filme A Onda (2008),
baseado em caso real ocorrido em 1967 em uma escola secundária nos EUA:
discutindo a atualidade dos regimes autoritários, um professor propõe um
exercício pedagógico de recriar um movimento político em sala de aula, baseado
em símbolos, saudações e uniformes. O movimento foge ao controle do professor,
criando uma onda de intolerância e autoritarismo na localidade.
Essa ingenuidade
semiótica demonstrada por professores e alunos tanto de uma rede municipal como
de uma Universidade comprova o atual analfabetismo visual, em grande parte
responsável pelo próprio analfabetismo político.
Seria o caso de
sugerir para a USC de Bauru uma disciplina como Semiótica da História ou um
curso de alfabetização visual tanto para
alunos como professores da rede municipal de ensino não só do Taboão.
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