Será que a culpa é da Internet? Ou as séries do Netflix seriam as
culpadas? Será que o gênero é uma vítima do sucesso das tecnologias de
convergência? São vários os diagnósticos do porquê da atual crise de audiência
do principal produto da TV Globo – as telenovelas. Talvez sejam diagnósticos
muito apressados por conterem o desejo político pelo fim do monopólio da Globo.
Mas as pesquisas qualitativas com telespectadores feitas pela própria emissora
têm uma pista: falam em “teledramaturgia pesada” e “desesperança” desde a
novela “Em Família” . Em sua escalada oposicionista a Globo recruta as
telenovelas como mais uma bomba semiótica, rompendo o sutil equilíbrio entre
romantismo e realismo, projeção e identificação que sempre marcou o sucesso do
gênero – a ficção deve agora reforçar subliminarmente o “quanto pior, melhor”
do telejornalismo. A Globo estaria vivendo o efeito colateral da sua condição
esquizofrênica: ser uma empresa e ao mesmo tempo um partido político.
Mal recuperou-se
da crise de audiência que obrigou a descaracterizar e encurtar às pressas a
telenovela Babilônia, e o núcleo de
teledramaturgia da Globo passa a viver novo sobressalto: reuniões foram
convocadas às pressas para entender o problema da baixa audiência na estreia de
A Regra do Jogo, nova produção do
horários das 21 horas.
A Regra do Jogo teve a pior início na história das
telenovelas globais (31 pontos, enquanto as antecessoras Babilônia (33), Império (32), Em Família (33), Amor à Vida (35), Salve Jorge (35), Avenida
Brasil (37), Fina Estampa (41), Insensato Coração (36), Passione (37),
Viver a Vida (43), Caminho das Índias (39) e A Favorita (35) se saíram
melhor.
Desde o último
sucesso de Avenida Brasil em 2012 (que
surfou no sucesso econômico neodesenvolvimentista e ascensão da chamada “Classe
C”) as audiências vêm despencando no horário nobre e mais caro da televisão
brasileira.
Muitas explicações têm
sido levantadas: processo de transformação das tecnologias de convergência que
oferecem novas opções as telespectadores mais jovens, Internet, crise criativa
na teledramaturgia ou simplesmente o início do fim do gênero telenovela – com
ofertas como as series do Netflix, por exemplo, ninguém teria mais paciência de
ficar meses a fio preso a uma história.
Último sucesso: "Avenida Brasil" pegou carona na ascensão da chamada "Classe C" |
O que parece estar
muitas vezes por trás desses diagnósticos é na verdade um anseio político de
que a TV Globo esteja se aproximando do abismo depois de décadas de monopólio,
de que finalmente a chamada vênus platinada esteja perdendo sua força diante
das novas tecnologias ou de que um gênero televisivo que tanto serviu de agente
de alienação esteja caminhando para o fim.
Para além desse
desejo velado, o Cinegnose quer
entrar nessa discussão é lançar uma hipótese, já iniciada em postagem anterior: partindo da constatação que a TV Globo vem nos últimos anos assumindo
o papel de partido de oposição feroz ao Governo Federal através do seu
telejornalismo e, como veremos, utilizado também a teledramaturgia, poderíamos interpretar a atual crise das
telenovelas globais como efeito colateral da atual cruzada política da
emissora?
Teledramaturgia “pesada”
Ao recrutar seu
principal produto de mais alta audiência como bomba semiótica jogada contra o
Governo, a ambição política da Globo poderia começar a interferir na rotina de
audiência da teledramaturgia da emissora.
Pesquisas
qualitativas realizadas pela própria emissora já detectaram, como no caso de Babilônia, de que o público considerava
uma “teledramaturgia pesada” com vilãs praticando maldades desde os primeiros
capítulos, demonstrando “desesperança” sem um “final feliz”. No geral, desde a
telenovela Império, as pesquisas vêm
apontando “excessos de mau-caratismo” e “realidade”.
No caso de Babilônia, uma estratégia desesperada de
recuperação foi acionada pelos autores Gilberto Braga e Ricardo Linhares para
tirar o pé no “realismo”: evitou-se que uma personagem virasse prostituta
(Alice, feita por Sophie Charlotte) e um galã (Carlos Alberto, personagem feito
por Marcos Pasquim) se tornasse homossexual.
"Babilônia" em crise: personagem Carloa Alberto deixa de ser gay para tentar recuperar a novela |
Observando a
história e evolução das telenovelas globais em seu conjunto, diversos estudos
clássicos sobre o gênero apontam que o segredo do sucesso da teledramaturgia
global foi sempre a busca de um equilíbrio entre o romantismo e o realismo.
Ao contrário do formato melodramático latino-americano, como as produções mexicanas ou
venezuelanas, as telenovelas globais encontraram uma fórmula de equilíbrio
entre drama, humor e realismo naturalista - narrativas, plots e personagens
menos estereotipados do que na fórmula do melodrama e até reflexões sobre temas
sociais como segregação, machismo, feminismo. Além de temas da pauta do
jornalismo como, por exemplo, a clonagem humana abordada pela novela O Clone (2001-2) de Glória Perez.
Politicização da teledramaturgia global
Porém, percebe-se
que, desde a novela Em Família (2014),
com cenas como a do estupro de uma personagem no interior de uma van no Rio de
Janeiro (repercutindo a notícia da chamada “van do terror”, sobre quadrilhas que
estariam sequestrando turistas na cidade - fato bombástico à vésperas da Copa do Mundo), esse equilíbrio teledramatúrgico
forçando as tintas no “realismo” com os autores utilizando pautas do
telejornalismo da própria emissora como ganchos para criar situações ou plots narrativos.
Portanto, a
hipótese do Cinegnose para a atual
crise das telenovelas globais (e principalmente no horário nobre da emissora)
residente numa evidente “politização” da teledramaturgia na escalada do papel
de oposição política que a Globo assumiu.
Essa politização
mais explícita já havia se iniciado em minisséries como Felizes Para Sempre (o achincalhamento niilista da Política na
linha do “nenhum político presta e Brasília é a cidade do pecado”) e Questão de Família (apologia da
judicialização da política através de um juiz justiceiro). Com o acirramento
político atual e o clima do “quanto pior melhor” que a emissora parece abraçar,
agora a Globo utiliza o seu principal produto (as novelas do horário nobre)
como bomba semiótica final.
"Em Família" e a cena do estupro na van: repercutindo pautas do telejornalismo |
O clima de baixo
astral que domina a pauta do telejornalismo atual com rostos cada vez mais
patibulares de seus âncoras (a voz cada vez mais grave e os olhos apertados de
Bonner; as olheiras cada vez maiores de William Waack e Sandra Annenberg; o
olhar debaixo para cima com olheiras igualmente crescentes da comentarista
econômica Miriam Leitão etc. – até o jovem Evaristo Costa, sempre as voltas com
pautas positivas começa a ensaiar feições deprimidas) deve agora também invadir
a teledramaturgia com crônicas sobre um país afundado em vilania, corrupção e imoralidade.
Numa estratégia de
reforço metonímico, as telenovelas devem reforçar na ficção a desesperança e
pessimismo exibido antes no Jornal Nacional. E parece que a atual crise de
audiência das telenovelas é um indesejável efeito colateral para uma emissora
que, no final das contas, é uma empresa como outra qualquer.
Identificação e projeção nas telenovelas
Esse desequilíbrio
da teledramaturgia afeta um dos principais produtos ficcionais da indústria
cultural brasileira que, para pesquisadores como o francês Dominique Waltton,
foi o principal produto que ajudou a criar “o grande público” no mercado de
telecomunicações brasileiro – um produto cultural único, capaz de se dirigir
sucessivamente para as classes A,B,C e D e criando, bem ou mal, um laço e identidade
social baseado na “ficcionalização da realidade” – leia WOLTTON, Dominique, O Elogio do Grande Público, Ática, 1996.
Uma
ficcionalização tão grande que foi capaz, inclusive, de interferir na taxa de
fertilidade do brasileiro como demonstrou estudo do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) que relacionou os conteúdos das telenovelas com queda da
taxa de fertilidade e divórcios em regiões alcançadas pelo sinal da TV Globo – clique aqui.
A telenovela brasileira conseguiu criar a
“cross-class fantasies” (fantasias que transcendem as diferenças de classes)
através de um delicado equilíbrio estético entre romantismo e realismo e
psicológico entre identificação e projeção.
O romantismo tende
a criar uma relação de projeção do
telespectador com a telenovela: projetar
na ficção tudo aquilo que gostaria de ter, ser ou fazer, mas a realidade o
impede – sonhos e fantasias projetados na ficção como uma espécie de realização
à distância – filmes como A Rosa Púrpura
do Cairo de Woody Allen renderam uma homenagem a essas antigas narrativas
melodramáticas no cinema. As relações psicológicas projetivas tendem a ser
encontradas quanto mais descemos nas classes sócio-econômicas.
Ao contrário, na identificação nos reconhecemos na
narrativa e personagens: reconhecemos signos ou representações da nossa própria
realidade. Esse realismo é mais presente quanto mais subimos no espectro
sócio-econômico.
Politização desequilibra teledramaturgia
Em alguns momentos
esse desequilíbrio aconteceu como no caso da novela do horário das 18h Pecado Capital (1998), remake da
telenovela clássica de 1975. Pesquisas qualitativas da emissora que tentavam
entender o porquê da drástica queda da audiência nas primeiras semanas de
exibição localizaram o desequilíbrio nas classes sócio-econômicas mais baixas:
a narrativa ainda estava muito focada na personagem Lucinha (Carolina Ferraz),
moradora de subúrbio pobre no Rio de Janeiro.
Pobres não gostam
de ver pobres, descobriu a pesquisa. Pobres não querem identificação, mas
narrativas onde possam projetar seus sonhos. Esse diagnóstico forçou Glória
Perez a acelerar a narrativa para que Lucinha se casasse logo com seu patrão,
Salviano Lisboa, tornando-se rica com cenas dessa vez mais centradas na Zona
Sul rica.
Olhando em
perspectiva a história das telenovelas globais, o desequilíbrio em favor do
realismo parece ter ocorrido pela última vez no período das eleições de 1989
com novelas como Vale Tudo (o
pessimismo de um país afundado na crise ética e moral) e Que Rei Sou Eu? e O Salvador
da Pátria – novelas que alimentaram o imaginário do sebastianismo por trás
da figura do candidato Fernando Collor de Mello, o “caçador de marajás”,
apoiado pela emissora.
Em épocas de
calmaria, como nos anos 1990 onde as políticas neoliberais de privatizações
eram implementadas com vento em popa, a teledramaturgia global vivia seu período
de normalidade narrativa entre humor, romantismo e realismo.
Hoje, a Globo paga
o preço do seu “ativismo” político. Não é à toa que Babilônia e A Regra do Jogo
estejam perdendo nacos de audiência para os melodramas As Mil e Uma Noite da Band e Os
Dez Mandamentos da Record: com tanto “realismo” muitos telespectadores
procuram uma narrativa onde possam projetar seus sonhos.
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