quinta-feira, setembro 17, 2015

Efeito colateral atinge telenovelas da TV Globo

Será que a culpa é da Internet? Ou as séries do Netflix seriam as culpadas? Será que o gênero é uma vítima do sucesso das tecnologias de convergência? São vários os diagnósticos do porquê da atual crise de audiência do principal produto da TV Globo – as telenovelas. Talvez sejam diagnósticos muito apressados por conterem o desejo político pelo fim do monopólio da Globo. Mas as pesquisas qualitativas com telespectadores feitas pela própria emissora têm uma pista: falam em “teledramaturgia pesada” e “desesperança” desde a novela “Em Família” . Em sua escalada oposicionista a Globo recruta as telenovelas como mais uma bomba semiótica, rompendo o sutil equilíbrio entre romantismo e realismo, projeção e identificação que sempre marcou o sucesso do gênero – a ficção deve agora reforçar subliminarmente o “quanto pior, melhor” do telejornalismo. A Globo estaria vivendo o efeito colateral da sua condição esquizofrênica: ser uma empresa e ao mesmo tempo um partido político.    

Mal recuperou-se da crise de audiência que obrigou a descaracterizar e encurtar às pressas a telenovela Babilônia, e o núcleo de teledramaturgia da Globo passa a viver novo sobressalto: reuniões foram convocadas às pressas para entender o problema da baixa audiência na estreia de A Regra do Jogo, nova produção do horários das 21 horas.

A Regra do Jogo teve a pior início na história das telenovelas globais (31 pontos, enquanto as antecessoras Babilônia (33), Império (32), Em Família (33), Amor à Vida (35), Salve Jorge (35), Avenida Brasil (37), Fina Estampa (41), Insensato Coração (36), Passione (37), Viver a Vida (43), Caminho das Índias (39) e A Favorita (35) se saíram melhor.


Desde o último sucesso de Avenida Brasil em 2012 (que surfou no sucesso econômico neodesenvolvimentista e ascensão da chamada “Classe C”) as audiências vêm despencando no horário nobre e mais caro da televisão brasileira.

Muitas explicações têm sido levantadas: processo de transformação das tecnologias de convergência que oferecem novas opções as telespectadores mais jovens, Internet, crise criativa na teledramaturgia ou simplesmente o início do fim do gênero telenovela – com ofertas como as series do Netflix, por exemplo, ninguém teria mais paciência de ficar meses a fio preso a uma história.

Último sucesso: "Avenida Brasil" pegou carona na ascensão da chamada "Classe C"

O que parece estar muitas vezes por trás desses diagnósticos é na verdade um anseio político de que a TV Globo esteja se aproximando do abismo depois de décadas de monopólio, de que finalmente a chamada vênus platinada esteja perdendo sua força diante das novas tecnologias ou de que um gênero televisivo que tanto serviu de agente de alienação esteja caminhando para o fim.

Para além desse desejo velado, o Cinegnose quer entrar nessa discussão é lançar uma hipótese,  já iniciada em postagem anterior: partindo da constatação que a TV Globo vem nos últimos anos assumindo o papel de partido de oposição feroz ao Governo Federal através do seu telejornalismo e, como veremos, utilizado também a teledramaturgia, poderíamos interpretar a atual crise das telenovelas globais como efeito colateral da atual cruzada política da emissora?

Teledramaturgia “pesada”


Ao recrutar seu principal produto de mais alta audiência como bomba semiótica jogada contra o Governo, a ambição política da Globo poderia começar a interferir na rotina de audiência da teledramaturgia da emissora.

Pesquisas qualitativas realizadas pela própria emissora já detectaram, como no caso de Babilônia, de que o público considerava uma “teledramaturgia pesada” com vilãs praticando maldades desde os primeiros capítulos, demonstrando “desesperança” sem um “final feliz”. No geral, desde a telenovela Império, as pesquisas vêm apontando “excessos de mau-caratismo” e “realidade”.

No caso de Babilônia, uma estratégia desesperada de recuperação foi acionada pelos autores Gilberto Braga e Ricardo Linhares para tirar o pé no “realismo”: evitou-se que uma personagem virasse prostituta (Alice, feita por Sophie Charlotte) e um galã (Carlos Alberto, personagem feito por Marcos Pasquim) se tornasse homossexual.

"Babilônia" em crise: personagem Carloa Alberto deixa de ser gay para tentar recuperar a novela

Observando a história e evolução das telenovelas globais em seu conjunto, diversos estudos clássicos sobre o gênero apontam que o segredo do sucesso da teledramaturgia global foi sempre a busca de um equilíbrio entre o romantismo e o realismo.

Ao contrário do formato melodramático latino-americano, como as produções mexicanas ou venezuelanas, as telenovelas globais encontraram uma fórmula de equilíbrio entre drama, humor e realismo naturalista - narrativas, plots e personagens menos estereotipados do que na fórmula do melodrama e até reflexões sobre temas sociais como segregação, machismo, feminismo. Além de temas da pauta do jornalismo como, por exemplo, a clonagem humana abordada pela novela O Clone (2001-2) de Glória Perez.

Politicização da teledramaturgia global


Porém, percebe-se que, desde a novela Em Família (2014), com cenas como a do estupro de uma personagem no interior de uma van no Rio de Janeiro (repercutindo a notícia da chamada “van do terror”, sobre quadrilhas que estariam sequestrando turistas na cidade - fato bombástico à vésperas da Copa do Mundo), esse equilíbrio teledramatúrgico forçando as tintas no “realismo” com os autores utilizando pautas do telejornalismo da própria emissora como ganchos para criar situações ou plots narrativos.

Portanto, a hipótese do Cinegnose para a atual crise das telenovelas globais (e principalmente no horário nobre da emissora) residente numa evidente “politização” da teledramaturgia na escalada do papel de oposição política que a Globo assumiu.

Essa politização mais explícita já havia se iniciado em minisséries como Felizes Para Sempre (o achincalhamento niilista da Política na linha do “nenhum político presta e Brasília é a cidade do pecado”) e Questão de Família (apologia da judicialização da política através de um juiz justiceiro). Com o acirramento político atual e o clima do “quanto pior melhor” que a emissora parece abraçar, agora a Globo utiliza o seu principal produto (as novelas do horário nobre) como bomba semiótica final.

"Em Família" e a cena do estupro na van: repercutindo pautas do telejornalismo

O clima de baixo astral que domina a pauta do telejornalismo atual com rostos cada vez mais patibulares de seus âncoras (a voz cada vez mais grave e os olhos apertados de Bonner; as olheiras cada vez maiores de William Waack e Sandra Annenberg; o olhar debaixo para cima com olheiras igualmente crescentes da comentarista econômica Miriam Leitão etc. – até o jovem Evaristo Costa, sempre as voltas com pautas positivas começa a ensaiar feições deprimidas) deve agora também invadir a teledramaturgia com crônicas sobre um país afundado em vilania, corrupção e imoralidade.

Numa estratégia de reforço metonímico, as telenovelas devem reforçar na ficção a desesperança e pessimismo exibido antes no Jornal Nacional. E parece que a atual crise de audiência das telenovelas é um indesejável efeito colateral para uma emissora que, no final das contas, é uma empresa como outra qualquer.

Identificação e projeção nas telenovelas


Esse desequilíbrio da teledramaturgia afeta um dos principais produtos ficcionais da indústria cultural brasileira que, para pesquisadores como o francês Dominique Waltton, foi o principal produto que ajudou a criar “o grande público” no mercado de telecomunicações brasileiro – um produto cultural único, capaz de se dirigir sucessivamente para as classes A,B,C e D e criando, bem ou mal, um laço e identidade social baseado na “ficcionalização da realidade” – leia WOLTTON, Dominique, O Elogio do Grande Público, Ática, 1996.

Uma ficcionalização tão grande que foi capaz, inclusive, de interferir na taxa de fertilidade do brasileiro como demonstrou estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que relacionou os conteúdos das telenovelas com queda da taxa de fertilidade e divórcios em regiões alcançadas pelo sinal da TV Globo – clique aqui.

 A telenovela brasileira conseguiu criar a “cross-class fantasies” (fantasias que transcendem as diferenças de classes) através de um delicado equilíbrio estético entre romantismo e realismo e psicológico entre identificação e projeção.


O romantismo tende a criar uma relação de projeção do telespectador  com a telenovela: projetar na ficção tudo aquilo que gostaria de ter, ser ou fazer, mas a realidade o impede – sonhos e fantasias projetados na ficção como uma espécie de realização à distância – filmes como A Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen renderam uma homenagem a essas antigas narrativas melodramáticas no cinema. As relações psicológicas projetivas tendem a ser encontradas quanto mais descemos nas classes sócio-econômicas.

Ao contrário, na identificação nos reconhecemos na narrativa e personagens: reconhecemos signos ou representações da nossa própria realidade. Esse realismo é mais presente quanto mais subimos no espectro sócio-econômico.

Politização desequilibra teledramaturgia


Em alguns momentos esse desequilíbrio aconteceu como no caso da novela do horário das 18h Pecado Capital (1998), remake da telenovela clássica de 1975. Pesquisas qualitativas da emissora que tentavam entender o porquê da drástica queda da audiência nas primeiras semanas de exibição localizaram o desequilíbrio nas classes sócio-econômicas mais baixas: a narrativa ainda estava muito focada na personagem Lucinha (Carolina Ferraz), moradora de subúrbio pobre no Rio de Janeiro.

Pobres não gostam de ver pobres, descobriu a pesquisa. Pobres não querem identificação, mas narrativas onde possam projetar seus sonhos. Esse diagnóstico forçou Glória Perez a acelerar a narrativa para que Lucinha se casasse logo com seu patrão, Salviano Lisboa, tornando-se rica com cenas dessa vez mais centradas na Zona Sul rica.

Olhando em perspectiva a história das telenovelas globais, o desequilíbrio em favor do realismo parece ter ocorrido pela última vez no período das eleições de 1989 com novelas como Vale Tudo (o pessimismo de um país afundado na crise ética e moral) e Que Rei Sou Eu? e O Salvador da Pátria – novelas que alimentaram o imaginário do sebastianismo por trás da figura do candidato Fernando Collor de Mello, o “caçador de marajás”, apoiado pela emissora.

Em épocas de calmaria, como nos anos 1990 onde as políticas neoliberais de privatizações eram implementadas com vento em popa, a teledramaturgia global vivia seu período de normalidade narrativa entre humor, romantismo e realismo.

Hoje, a Globo paga o preço do seu “ativismo” político. Não é à toa que Babilônia e A Regra do Jogo estejam perdendo nacos de audiência para os melodramas As Mil e Uma Noite da Band e Os Dez Mandamentos da Record: com tanto “realismo” muitos telespectadores procuram uma narrativa onde possam projetar seus sonhos.

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