sexta-feira, maio 31, 2024

Marcha para Jesus, escola cívico-militar... extrema direita faz esfera pública fascista. E a esquerda?


Da Marcha para Jesus, passando por templos religiosos dando “assistência espiritual” a PMs e chegando a sanção da lei em SP que institui escolas cívico-militares, acompanhamos a estratégia da construção de uma esfera pública fascista. Para entendermos a gravidade política disso, precisamos compreender o conceito de “esfera pública”, sempre confundida com a noção de “opinião pública”. Sobrevalorizamos o expertise digital da extrema direita nas redes sociais e Internet: o seu timing, a velocidade na produção de recortes, memes e a linguagem da lacração. O que fez os progressistas partirem para a militância digital, enquanto a esfera pública de esquerda se fregmentou em “progressismos”e as ruas foram abandonadas. Qual a importância da esfera pública na comunicação? Não importa a linguagem ou o poder midiático. A esfera pública vai além da propaganda. Sem uma esfera pública de relações face a face, nenhum conteúdo midiático é sancionado.

Marcha para Jesus em SP com presença dos bolsonaristas Tarcísio e Ricardo Nunes; governador de SP sanciona lei que institui escolas cívico-militares; templos da Igreja Universal reunindo policiais militares em cultos para dar “assistência espiritual e valorativa”; Clubes de Tiro favorecidos pela pela aprovação de projeto de decreto legislativo (PDL) na Câmera dos Deputados para flexibilizar a compra e porte de armas e munições; motociatas continuam sendo organizadas semanalmente pelo país, algumas delas com luxuosa participação de Bolsonaro at caterva; Câmara aprova projeto de clubes de tiro a menos de 1 km de escolas etc.

Poderíamos fazer uma lista imensa de exemplos recentes de como bolsonarismo e extrema direita estão metodicamente construindo sua própria esfera pública autônoma

Esse humilde blogueiro acredita que a compreensão desse conceito é fundamental não só para entender como o imaginário fascista está cada vez mais se capilarizando na sociedade brasileira, como também de que maneira Internet e redes sociais de certa forma foram usados como estratégia diversionista para a esquerda.

Para entendermos todos esses movimentos, primeiro lugar precisamos entender um conceito ainda mal compreendido: “esfera pública”.

No uso corrente, normalmente há uma confusão entre “esfera pública” e “opinião pública”. Esfera pública não é opinião pública, e muito menos “espaço público” ou mesmo “publicidade”. A esfera pública contém instituições como o poder público, a imprensa, organizações,a opinião pública e ambientes como salões, cafés,clubes, praças etc.

Porém, esfera pública ultrapassa em muito a mera propaganda, a comunicação por meios massivos e até mesmo as redes sociais e Internet – essas mídias de convergências pensadas aqui como “mídias espectrais” cujas relações humanas individualizadas são mediadas por avatares, simulações que criam simulacros de interações.



Esfera pública corresponde, por assim dizer, a uma cena social, com uma emocionalidade ou energia própria criando uma vibração em um campo, seja ele político, cultural etc.

Jurgen Habermas em seu livro “Mudança Estrutural da Esfera Pública” (1962) descreveu como a construção de uma esfera pública liberal nos séculos XVIII-XIX, decisiva para a consolidação do capitalismo através do livre trânsito de mercadorias, ideias e notícias. Foi o momento decisivo para a consolidação do livre comércio e da livre concorrência em um mercado de opiniões.

Uma cena nunca até então vivida na História: debates públicos em cafés, clubes de leitura e salões - nunca antes a Europa viveu tal período de maior liberdade para circular ideias e contato com novas concepções filosóficas, estéticas, políticas etc.

Para além da ética protestante (Weber) ou da revolução industrial e toda revolução tecnológica trazida pela eletricidade, vapor e meios de transportes, foi a construção dessa “cena” que cimentou ideologicamente todas essas revoluções que fizeram nascer uma sociedade secular,longe do clero e da monarquia.

Esfera pública proletária

Na história do capitalismo também foi decisivo a formação de uma esfera pública proletária autônoma, com suas formas particulares de manifestação e expressão pública, desde o início da Revolução Industrial. A organização sindical e seus espaços de reuniões e lazar foram decisivos para aconsciência de classe e a luta pelos direitos trabalhistas frente ao capital.

  A crescente organização de uma esfera pública proletária, principalmente na República de Weimar pré-ascensão do nazismo, foi desmantelada pelo desemprego, individualização e desespero na hiper-inflação alemã pós I Guerra Mundial. Uma sociedade desarmada e politicamente esvaziada.



Foi quando consolidou-se a esfera pública fascista, com suas festas, comícios – e as milícias privadas, os “Stosstruppen”, para destruir o pouco que restou da cena proletária e aterrorizar os mais resistentes. Cafés, choperias, clubes etc. foram ocupados por comícios e debates de uma falsa ressignificação do proletariado através do nacionalismo e do retorno nostálgico aos valores da família, terra e sangue.

Como descobriu Paul Lazarsfeld em seus estudos em sociologia da comunicação do Bureau of Applied Social Research da Universidade de Columbia nos anos 1950, são as relações pessoais que sancionamos conteúdos dos meios de comunicação. Por mais poderosos financeiramente e tecnologicamente que sejam, seus conteúdos apenas ganham sentido e repercussão se for precedida de uma cena que vibre na esfera pública.

Hardware e Software

Colocando em termos atuais, poderíamos dizer que a esfera pública é o hardware e a opinião pública (moldada pela engenharia midiática) o software. Sem essa cena, sem essa esfera pública autônoma o software não roda, isto é, não repercute, não capilariza na sociedade.

Voltando para aquela pequena lista acima, no primeiro parágrafo, fica claro como bolsonarismo e extrema direita (ou a alt-right internacional) estão focados na construção dessa esfera pública própria, fascista, em muitos aspectos semelhante à construção da esfera pública fascista na Alemanha pré ascensão de Hitler ao poder.

Por mais que se cante loas sobre de expertise superlativo da comunicação alt-right nas redes sociais, sua incrível velocidade e oportunismo em criar recortes, memes, fake news; por mais que se fale do apoio dos algoritmos das big techs de Zuckerberg e Musk, tudo isso encontraria o vazio de repercussão sem o “hardware” de uma esfera pública fascista altamente politizada. 

De nada adiantariam os algoritmos e as estratégias digitais de microtargeting para furar as bolhas digitais (como nos casos do Brexit em 2015 e a vitória eleitoral de Trump em 2016) sem a sanção dos conteúdos através das redes interpessoais reais, cara a cara, em templos, festas, comícios etc. 



“Onguização” e diversionismo

Assim como a hiper-inflação, a crise econômica e o desemprego ajudaram a destruir a esfera pública proletária na República de Weimar antes do Terceiro Reich, aqui no Brasil a desindustrialização, commoditização da economia e a precarização do trabalho (acelerado pela flexibilização das leis trabalhistas pós-golpe de 2016) foram progressivamente minando a esfera pública proletária.

Com dois tiros certeiros que criaram a vulnerabilidade através da qual a esfera pública fascista pode se consolidar:

(a) “Onguização” dos movimentos sociais – ONGs se tornaram as correias de transmissão da ideologia do neoliberalismo progressista e da ideologia dos chamados “novos democratas” dos EUA: o identitarismo, na qual todas as históricas discussões de raça e gênero se descolam da esfera pública proletária (sindicatos, partidos e movimentos sociais de orientação materialista histórica) para serem hackeados pela discussão dos valores,meritocracia e ascensão social dentro da competição de mercado.

(b) A supervalorização do expertise digital na Internet e redes sociais da comunicação alt-right.  Criou-se um pânico digital nas esquerdas de que o decisivo nos resultados eleitorais supostamente foi o domínio dalinguagem de lacração nas redes sociais e o hackeamento de big data para furar as bolhas digitais. 

Isso é apenas uma parte da verdade. Sem uma esfera pública fascista capilarizada na sociedade, no mundo analógico e real das relações face a face, nenhuma estratégia digital daria certo.

Certamente, o pânico digital fez parte da estratégia diversionista alt-right: por exemplo, vender a ideia de que entramos em uma nova era chamad de “gameficação da política” e dos poderes sobrenaturais da Deep Web. Diante desse pânico, a esquerda migra para a militância digital, deixando, na mais otimista hipótese, em “segundo plano” a necessidade de formação de uma esfera pública de esquerda. 

Enquanto isso, para o bolsonarismo tornou-se prioridade estratégica, como pode-se perceber nas interconexões entre CACs, templos religiosos, crime organizado e festas como a Marcha para Jesus. 



É o caso exemplar nesse feriadão de Corpus Christi: Marcha para Jesus versus Parada LGBT 2024 em São Paulo.

Enquanto o evento religioso foi altamente politizado (as indefectíveis camisetas amarelas da CBF com a bandeira nacional como manto na massa de crentes, além dos discursos de Tarcísio de Freitas e Ricado Nunes diante de um telão no qual era projetada imagem da bandeira nacional tremulante), o evento LGBT é despolitizado e desconectado de movimentos políticos e sociais. Para começar na própria designação da natureza dos eventos: o caráter assertivo e militar como “Marcha” para o evento religioso; e de entretenimento como “Parada” para o evento de afirmação identitária e de gênero.   

A esfera pública de esquerda acabou sendo pulverizada em “progressismos”: sindicatos, movimentos sociais, identitários etc., cada qual construindo suas própria redes de relações interpessoais, sem conseguirem criar uma cena mais ampla, uma autêntica esfera pública de esquerda que repercuta no mundo real os conteúdos criados pela militância digital.

O filósofo Vladimir Saffatle falou marqueteiramente em uma entrevista que “a esquerda morreu” – afirmação que soou como música aos ouvidos da grande mídia bateu o bumbo para o lançamento do livro do filósofo, “Alfabeto das Colisões”.

Porém, numa coisa Saffatle tem razão: a esquerda virou uma constelação de progressismos.

Abandonou as ruas, substituiu a construção de um esfera pública de esquerda pela militância digital e as relações através de mídias espectrais. 

A política tem horror ao vácuo. Que nesse momento está sendo ocupado por uma esfera pública fascista em crescimento.  


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