quinta-feira, abril 21, 2022

O Pentagrama, o Diabo e o Oculto no game eletrônico 'Pilgrims', por Claudio Siqueira


Eu já falei da Amanita Design aqui, mas falar deles nunca é demais. A equipe de jogos independentes da república tcheca ressuscitou muito bem o estilo de games adventure point-and-click, criando incríveis narrativas mudas, contando às vezes belas histórias ainda que numa atmosfera lúgubre. Neste artigo o Cinegnose vem mostrar o interessante jogo Pilgrims, cujo gameplay se dá todo na mecânica de um único puzzle de Samorost 3 – Pilgrims é um jogo sobre um humilde peregrino em sua jornada esotérica, com elementos do Oculto implícitos. Desde o Pentagrama, que abre o jogo, até o Diabo... que reclama a alma de um padre que teria pecado.

Pilgrims é um jogo pitoresco. E não poderíamos esperar algo diferente dos tchecos da Amanita Design. Mas ele é pitoresco não só por seus gráficos, sua temática e sua estética, como também por seu gameplay(a maneira como interagimos com o jogo, movendo personagens e fazendo com que ajam) seu objetivo (trazer um pássaro para que alegre o humilde peregrino) e seus conteúdos ocultos implícitos desde a tela de abertura, que representa o Pentagrama; o Tetragrammaton.


O puzzle de Samarost 3 do qual se originou Pilgrims


O jogo tem não uma, mas várias formas de se resolver o grande quebra-cabeça que é, levando o jogador a dois finais distintos. Se você não quer spoilers, recomendamos que só leia este artigo após jogá-lo, pois além de uma reportagem, este artigo é um verdadeiro walkthrough (Jargão gamer para estratégia completa nos anos 1990. Mais recentemente, ganhou a tradução livre de “detonado”). Se não se importa ou não é gamer, pode lê-lo até o final.



O jogo começa num bar ou saloon onde cinco personagens jogam cartas, provavelmente poker. O protagonista, um padre, uma senhora, um homem barrigudo e barbudo e… o diabo! Sim, e ele aparece representado como as antigas gravuras medievais do capiroto, só que com um quê de Amanita Design. O diabo ganha o jogo e reclama a alma do padre, já que este não poderia estar jogando, já que é um pecado.


O flerte do diabo com o padre, presente no jogo


O Pentagrama e o Tetragrammaton

Um olhar mais atento para a mesa de carteado nos revela a seguinte disposição: os cinco personagens estão alinhados de modo a formar um pentagrama. Cada personagem ocupa um lugar que é também uma ponta do Pentagrama. O protagonista está sentado na ponta de cima; à sua direita, na ponta superior esquerda do nosso ponto de vista, está o padre; à sua esquerda, na ponta superior direita, a mulher. Nas duas pontas inferiores estão o barrigudo (à esquerda) e o diabo (à direita).


O Pentagrama, implicitamente representado


Se olharmos para a figura do Pentagrama em diversas ordens e correntes esotéricas, temos o exemplo do Tetragrammaton. Quatro letras do alfabeto hebraico que formam um dos 72 nomes de Deus, sendo YHVH (YodVav e novamente ) o nome impronunciável de Deus, traduzido como JeováJavéIehovahIavéYahweh ou como queira Deus o tratamento. Essas quatro letras com o acréscimo do Shin formariam Yeheshua, a palavra original que deu origem ao nome Jesus

Sendo o Shin uma das três letras-mãe do alfabeto hebraico, na tradição hermética (e não judaica) ela equivaleria ao Fogo. Poderíamos dizer que o nome de Jesus equivale à fórmula do Tetragrammaton (tetra- 4; gramma- letra) entrando em combustão. Não por acaso, o acrônimo INRI, tido como “Jesus Nazareno Rei dos Judeus” quando na verdade é Igne Natura Renovatur Integra (“A natureza se renova através do fogo”). O nazareno teria morrido de uma perfuração no pulmão pela famigerada Lança do Destino. Para se apagar o Fogo Divino, deve-se cortar o Ar. Mas essa é outra história.




No Pentagrama, cada ponta está associada a um elemento, sendo a ponta de baixo, à esquerda, a Terra; a de baixo, à direita, o Fogo; a de cima, à esquerda, o Ar; a de cima, à direita, a Água. A ponta que encabeça o Pentagrama, o Espírito; o Æter (Éter, de onde deriva “etérico”); a Quintessência. Notem que cada personagem está posicionado em uma das pontas correspondentes aos elementos: O barrigudo, a Terra, pois é o que cobiça o Ouro. Não por acaso, o naipe de Ouros, no tarô representa o elemento Terra. o diabo, o Fogo, por motivos óbvios de senso comum. A mulher é a Água, por ser a única mulher na mesa. O padre, o Ar, já que representa o intelecto, além de ser o Hierofante, o comunicador (voz). o protagonista é o Æter, já que é o que guia o grupo. 

O jogo em si

O jogo começa com o protagonista, sozinho, próximo à sua barraca de camping. Aqui vai uma dica: caso você entre na barraca, encontrará uma moeda. Caso não o faça, terá que achá-la mais para frente. Agora você tem à frente quatro opções: uma clareira onde pode encontrar alguma provisão mediante uma enxada, uma fogueira, onde pode cozinhar o que encontrou com a enxada, o local onde fica o homem barrigudo e um porto, onde o barqueiro lhe dá a missão do jogo: encontrar o pássaro que ele, impaciente, espantou mas se arrependeu.




O barrigudo pede um rango enquanto gira sua pistola no dedo como faziam os antigos caubóis. Caso já tenha cozido a comida, pode entregar-lhe. Caso contrário, terá de ir à fogueira para fazê-lo. Ao entregar o rango pro esfomeado, o protagonista lhe pede sua arma, mas o barrigudo diz (através de balões ilustrados que são as falas do jogo) que só lhe entregará caso lhe dê alguma bebida. 




A partir daí o protagonista caminha em direção à próxima tela e o mapa completo se abre. O primeiro encontro, se você seguir pela ponte e caso pare nela, é com a mulher, que se revela uma mendiga. Ela pede uma moeda e, caso você já a tenha pegado em sua barraca de camping, basta dar a esmola a ela para que passe a fazer parte do grupo que intitula o jogo: os Peregrinos.




A melhor coisa a se fazer agora é rumar à clareira com a fogueira que se situa no lado superior esquerdo do mapa. Aí você encontra um cogumelo Amanita Muscaria e uma corda. O cogumelo é apenas para fins recreativos, a menos que você faça uso dele para enfrentar o inimigo final. Mas vamos nos ater ao agora.

Ao pegar a corda que está presa a uma árvore, rume para o cacto embaixo, na tela. Lá, você encontrará um comerciante aborrecido. Você pede a ele uma vara de pescar e ele só vende caso o tire do mau humor. Cada personagem tem uma sequência certa de itens para fazer isso, o que é facilmente descoberto por tentativa e erro. O importante é conseguir o objeto e, no caso da mendiga, utilize a corda e a moeda, não necessariamente nesta ordem. No final dos malabarismos, dê a ele o trocado para comprar a vara de pesca.




De posse da vara de pesca, rume para a caverna no canto superior direito do mapa ou para o castelo. Em qualquer um dos dois lugares, você encontrará uma minhoca dando sopa com a cabeça pra fora da terra. De posse da isca, vá até a lagoa para pescar. Caso você já tenha recrutado o diabo, ele é o único que não pesca, já que representa o elemento Fogo e não se dá bem com a Água. Depois, vá até uma das duas fogueiras; a da parte superior do mapa ou a primeira, na parte inferior para fritar o peixe.

De posse do peixe, vá até a casinha em frente à igreja. Trata-se de um bar. Aí está a moeda, caso você não a tenha pegado em sua barraca. Com a mendiga, você pode pedir um gole de bebida de graça, mas esse não é o objetivo, mas sim conseguir a garrafa de cana mediante a troca pelo peixe. 



De posse da bebida, vá encontrar o barrigudo. Ele pede a bebida, fica de porre e pede uma munição. Como o jogo não é violento, a munição é a avelã que está ao pé da árvore entre vocês dois. Pronto, você acaba de recrutar mais um peregrino. O próximo (e você não precisa executar nesta ordem) é o diabo, que se encontra na parte desértica do mapa.

Jogue a moeda ou a avelã no buraco e ele sairá, ralhando com você. Ele pede uma corda e basta que você dê a que pegou na clareira onde fica a fogueira e o cogumelo Amanita Muscaria. Você tem o time completo de peregrinos e agora começa a jornada para resolver a missão de cada um deles.

O caminho mais rápido, para que o jogo fique mais sucinto, é ir à igreja. Coloque primeiro o protagonista, o Espírito, parta que o padre saia. Ele não tratará bem a mendiga, não sairá para encontrar o diabo e brigará com o barrigudo. Após sair da igreja, troque pelo barrigudo, que lhe dá um soco na cara. Tonto, o padre não esboça reação e é a hora de colocar o diabo e dar-lhe a corda para que lace o padre. O barrigudo e outros usarão a corda de maneira errada. Outra forma é embriagar o padre, mas você teria que refazer todo o processo desde pescar o peixe para trocar pela bebida no bar novamente. 




Volte ao deserto e encaminhe o diabo para o buraco, para onde arrastará o padre. O passarinho aparece pela primeira vez. O protagonista tenta agarrá-lo mas não consegue. Essa primeira vez não precisa ser necessariamente agora, pois você pode resolver a missão de cada um na ordem que quiser. Vá agora à casa na parte mais baixa do mapa. Pegue a vegetação logo de cara, à sua frente e posicione a mendiga. A moradora ri da cara dela e vemos que a mendiga é, na verdade, a dona da casa, que foi roubada pela atual moradora. Você deve ter o pote que pegou na primeira clareira cheio de água, que encherá na segunda clareira, onde pega o peixe. 

Posicione agora o barrigudo. Ele tenta socar a usurpadora como fez com o padre, mas ela esquiva. Aponte a arma para ela. Coloque a munição para que ele dispare. A arma nem sequer machuca, mas faz com que ela deixe a vassoura cair no chão. Pegue a vassoura, tire o atirador e coloque a mendiga. Dê a vassoura na mão dela para que vá às forras. Pronto, você resolveu a missão da mendiga, que recuperou sua casa.




Agora volte ao lago, encha o recipiente com água, volte à clareira do cogumelo e ferva a planta que pegou na casa da ex-mendiga. Vá à caverna e o urso que mora lá vem te recepcionar. Caso você dê a sopa feita com a planta fervida, ele irá dormir. Se você lhe der a bebida que pegou no bar, ele irá dormir na sua barraca de camping. De qualquer forma, o caminho estará livre para que você possa entrar na caverna e pegar o diamante.

O diamante tem duas funções: Uma, usar de pagamento para o vendedor emburrado para comprar uma espada e dois: levar ao rei no castelo, já que a joia pertence à sua coroa. Vamos ao castelo. Para adentrá-lo, você terá que usar o barrigudo para puxar a alavanca da ponte levadiça, já que ele é o mais forte. Ao se deparar com o rei e a princesa, o monarca lhe conta que há um dragão que cobiça sua filha e ameaça o castelo, numa cena semelhante à do dragão de Samorost 3.

A imagem do diamante no vitraux do castelo dá a dica para entregar a joia ao rei que lhe recompensa com um saco de moedas. Você deve usá-las para comprar a espada, caso não o tenha feito com o diamante. Você deve comercializar com o protagonista, já que o barrigudo não é nada diplomático e acaba brigando com o comerciante. Volte ao lago para pegar água e, se você o fizer com o barrigudo, este tirará a camisa para dar um mergulho e continuará assim até o fim do jogo. Esta é uma das maneiras de se conseguir um dos muitos achievements do jogo. 




Agora você tem duas opções: a primeira, que dá a missão real do barrigudo e leva a um dos dois finais é enfrentar o dragão. Vá até ele e coloque o barrigudo. Após uma rápida briga, você deve utilizar a vara de pesca ou a vassoura para manter sua boca aberta. A partir disso, jogue a sopa feita com a planta ou o chá de cogumelos na boca do dragão (que mais parece uma galinha), que irá adormecer. Agora, dê a espada ao barrigudo, que cortará a cabeça do dragão.

Voltando ao castelo com o troféu em mãos (a cabeça do dragão galináceo), o barrigudo desposa a princesa e é coroado o rei. O passarinho aparece mais uma vez e o protagonista finalmente consegue apanhá-lo. É a hora de retornar ao “Caronte” (Na mitologia grega, Caronte era o barqueiro que levava as almas ao seu futuro lar, os reinos subterrâneos ou, numa linguagem cristã, a versão greco-romana do inferno) bonzinho e levar o passarinho a ele, como pagamento da passagem que levará o protagonista não se sabe para onde, num final que se assemelha também a um momento de Samorost 3. 




A segunda, dá uma opção paliativa: ao invés de matar o dragão e casar-se com a princesa, o barrigudo pode ameaçar o rei, mediante a espada ou sua pistola, sequestrar a princesa e entregá-la ao dragão, recebendo, como recompensa, um baú contendo o tesouro. O barrigudo não herda o trono, mas fica com uma gorda quantia e o protagonista completa a missão da mesma forma.

A explicação enfim

Como explicado no sétimo parágrafo, cada personagem ocupa um lugar no Pentagrama e corresponde a um elemento e sua respectiva missão é encontrar o elemento que o equilibra: a mulher representa a Água e seu objetivo é recuperar sua casa, sua Terra; o diabo, representa o Fogo e seu objetivo é representado desde o início, quando reclama a alma do padre, o Ar. O diabo pede a corda e a gira no alto formando uma espiral.

O padre, que representa o Ar não tem objetivo, já que não é um dos peregrinos e serve apenas como elemento equilibrador do Fogo, o diabo. O padre cai em desgraça ao jogar, já que sua cobiça por ouro o invalida como elemento Ar, já que sucumbe à Terra, que abafa/sufoca o Ar e apaga o Fogo, o que é tipificado pelo diabo levando o padre para baixo da terra.

O protagonista está sentado na ponta de cima e representa o Æter; e sua missão é tanto equilibrar os demais quanto encontrar o pássaro; aquele que detém o dom do canto e pode alegrar novamente o barqueiro, já que irá falar ao seu espírito. Mas o barrigudo, que representa, a Terra tem dois finais possíveis.

No final alternativo, o personagem se recusa a enfrentar o Dragão e prefere sequestrar a princesa e entregá-la a ele. Assim como em outros universos de fantasia medieval, o dragão é o protetor do pote ou montante de ouro. O ouro configuraria a a sexta sephirah da Cabala, Tiphareth, o chakra do plexo solar e o dragão seria a representação da kundalini desperta. Ao entregar a princesa ao dragão, o personagem estaria invalidando sua ascensão espiritual mediante a promessa de riqueza física e, sendo a representação da Terra, configura um desequilíbrio, já que adquire mais Terra (ouro).

No final principal, o barrigudo mata o dragão mediante duas armas: a sopa, que apagaria o Fogo da criatura (que não cospe fogo, diga-se) e corta sua cabeça com a espada (uma arma que representa o Ar, já que ela corta; uma representação do discernimento). Ele se casa com a princesa, adquirindo não só fortuna por se tornar o novo rei, mas equilibrando-se já que a princesa, sendo uma mulher, representa o elemento Água.

Claudio Siqueira é Bacharel em Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.


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