quarta-feira, abril 20, 2022

Em 'Night's End' o sonho da Razão produz monstros


A cineasta Jenifer Reeder (considerada pelo diretor duas vezes vencedor do Oscar, Bong Joon Ho – Parasita – uma cineasta na lista dos imperdíveis) revisita o tema da casa mal-assombrada que, de tão recorrente no gênero terror, parece não restar nada mais relevante a ser dito. Porém, “Night’s End” (2022) prova o contrário ao trazer a clássica estória de fantasmas no zeitgeist da pandemia e as videochamadas e lives na Internet. Um homem recluso transforma a sua investigação sobre fantasmas em seu apartamento em lives num canal sobre fenômenos paranormais no Youtube, procurando engajamento e monetização. “Night’s End” mostra de forma criativa (superando limitações do baixo orçamento) como o pintor Goya tinha razão ao falar que “o sonho da Razão produz monstros” – o célebre pintor do romantismo espanhol antecipou a crítica que mais tarde a filosofia e a psicanálise fariam: paradoxalmente os mecanismos da Razão e das luzes da Ciência geram os monstros da irracionalidade e do obscurantismo que tanto queriam combater.  

 

Nunca uma frase conseguiu superar a própria obra de arte que nomeia como “el sueño de la razon produce monstruos”, tela de Francisco Goya de 1799. É comum ver essa frase aplicada a teses acadêmicas, debates políticos etc., transcendendo o próprio impacto visual da obra artística do romantismo espanhol. 

A palavra espanhola “sueño” pode significar tanto “sonho” como “sono”. Com essa máxima, Goya parecia antever a ambiguidade da utopia projetada pelo Iluminismo de que Razão varreria da sociedade a superstição e a religião, afastando a ignorância e trazendo a luz e o progresso da racionalidade. De certa forma Goya, na arte, antecipou a crítica à Modernidade que a filosofia (Nietzsche), a psicanálise (Freud) e a economia política (Marx) fariam logo depois: paradoxalmente a Razão geraria o seu inverso – a irracionalidade, as guerras tecnologizadas, a violência, a exploração e os novos totalitarismos centrados na engenharia social proporcionado pelas novas ferramentas tecnológicas. 

Adorno e Horkheimer viam na ascensão da indústria cultural no século XX como a síntese desse paradoxo: a própria “dialética do iluminismo” – os meios de comunicação eletrônicos, resultado máximo da racionalidade, tornando-se o canal dos novos obscurantismos cujo pico trágico foi o nazifascismo.

Talvez a explicação esteja na dualidade humana, revelada por Freud: o homem não é um ser racional, mas racionalizante, isto é, em última instância dirigido secretamente por impulsos inconscientes “racionalizados”. Como outro psicanalista, Carl Jung, alertava: “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino”.



O terror de baixo orçamento Night’s End (2022), da diretora Jenifer Reeder (considerada pelo diretor duas vezes vencedor do Oscar, Bong Joon Ho – Parasita – uma cineasta na lista dos imperdíveis), evoca essa discussão quando converge o clássico tema da casa mal assombrada com o espírito de época desses dois últimos anos: a era das videochamadas na quarentena imposta pela pandemia, o isolamento social e, principalmente, a ansiedade provocada por uma situação inusitada – ser obrigado a ficar longo tempo a sós consigo mesmo em um ambiente confinado.

Principalmente, o filme nos mostra como um dos produtos mais sofisticados da racionalidade humana (as comunicações em tempo real, a telemática e a interface com o mundo através da tela do computador) torna-se veículo para o obscurantismo místico, dessa vez agravada pela linguagem e estética dessas novas mídias de convergência: uma cultura mashup que reduz à mesma tábula rasa referências, culturas ou signos – qualidades são reduzidas a quantidades intercambiáveis, puro pastiche.

 Night’s End concentra-se em um protagonista que tenta buscar a redenção através do exercício compulsivo da racionalidade ritualizada (organização, catalogação, rotinização etc.) para “continuar progredindo”, como insiste em seu bordão – fazendo uma contagem regressiva e respirando fundo para manter o controle sempre diante de situações que sugerem a iminencia do caos.

Recluso em uma espécie de autoexílio forçado, descobre-se numa típica estória de fantasmas assombrando um apartamento antigo – um assassinato do passado assombrado por possíveis espíritos de mortos em busca de paz ou mesmo vingança.




Night’s End é a luta das armas da Razão disponíveis ao protagonista (Internet e as técnicas de autoajuda) contra a presença do Mal. Porém, como no quadro de Goya, todas as ferramentas da Razão parecem alimentar ainda mais o pesadelo.

O Filme

O filme se passa inteiramente dentro do apartamento de Ken (Geno Walker), um homem que alguns anos antes teve um problema com álcool que o levou a sofrer um colapso nervoso, custando-lhe o emprego e a família. 

Ele agora se mudou para uma cidade desconhecida para morar em um apartamento em um prédio antigo onde é o único inquilino. Ele passa os dias ligando por videochamada para sua ex-esposa, Kelsey (Kate Arrington) e o velho amigo Terry (Felonious Monk) dizendo que tudo está indo bem. Mas podemos ver claramente que não é bem assim - as janelas foram estão todas cobertas por jornais, sua dieta parece consistir inteiramente de sopa de tomate, café e o medicamento para azia chamado “Pepto Bismol” (os dois últimos que mistura todas as manhãs) e se recusa a sair de seu apartamento para procurar um emprego ou fazer qualquer outra coisa.  




Ken acredita de que os vídeos do YouTube que publica sobre uma variedade de tópicos (dicas para jardinagem, gestão, para pais separados etc.) trarão dinheiro suficiente para ele. Mas, considerando que ele não parece particularmente interessado em nenhum de seus assuntos, isso parece altamente improvável.

Acompanhamos a rotina sistemática e ascética de Ken: o ciclo de rotinas mundanas que, afinal, definiram nossas vidas em isolamento social durante os anos de pandemia. O filme repete o close quase idêntico de Ken servindo café em uma caneca de vidro, o leite escorrendo de um rosa doentio sob a sinistra luz vermelha de sua cozinha. Passa os dias fazendo o trabalho de taxidermista – empalha pequenos pássaros e os fixa em quadros nas paredes. Prefere-os empalhados, silenciosos, do que “vivos, fazendo barulho e bagunça”. Além de metodicamente regar suas plantas e limpar com um pano umedecido cada uma das folhas.

Na rotina ascética, ritualizada e metódica, Ken procura a cura para algum tipo de inquietação ou ansiedade que o corrói por dentro. Para ele, enquanto não fizer o acerto de contas interior ele não poderá sair do apartamento atrás de um novo emprego para juntar os pedaços da sua vida. Para Ken, a cura só pode acontecer numa rotina compulsivamente organizada e ritualizada.




Porém, na sua solidão, tenta sem sucesso iniciar uma carreira de youtuber. Até seu amigo Terry chamar a atenção para algo bizarro que ocorreu na sua última live: um dos pássaros empalhados moveu-se e caiu de uma prateleira ao fundo.

Esse será o início de uma história de fantasmas: a suspeita de que há espíritos naquele velho apartamento – entidades atormentadas resultantes de um crime seguido de suicídio ocorrido em 1905.

Fã de um canal do YouTube chamado “Dark Corners”, com vídeos sobre fantasmas e investigações parapsicológicas, Ken decide fazer lives das investigações particulares naquele apartamento em busca dos seus objetivos: viralização, engajamento da audiência e monetização. Mas o que encontra é o temido caos que tanto evitava: começa a ser perseguido pelas entidades espirituais a tal ponto que, a certa altura da narrativa, o plano astral parece se confundir com a própria Internet.

E as coisas só pioram quando um especialista em ocultismo e paranormal chamado Colin Albertson (Lawrence Grimm) oferece assessoria on line para Ken – ensina uma bizarra técnica para capturar espíritos através de uma “jarra espiritual”.

Ken é aquilo que no cinema chamamos de “observador não confiável”: ele sofreu no passado um colapso nervoso decorrente do alcoolismo e, isolado naquele apartamento, vive no limite entre a sanidade e o delírio. E a interface da tela do computador é o único contato com o mundo exterior.

A ironia de Night’s End é que a rede digital não só piora o pesadelo de Ken como supostamente transforma-se no canal tecnológico através do qual o Mal irá se disseminar. Se no primeiro ato do filme acompanhamos o embate entre a Razão e irracionalidade (a organização compulsiva de Ken como “cordão sanitário” para se proteger do caos), depois acompanhamos não apenas a destruição dessa barreira. Mas como a própria racionalidade (em particular, as videochamadas na Internet) passa a alimentar o caos. 

Principalmente o mashup de ocultismo, esoterismo e espiritualismo do canal “Dark Corners” – afinal, o mashup é o próprio espírito da Internet que faz engajar e monetizar conteúdos.


 

Ficha Técnica

 

Título: Night’s End

Diretor: Jennifer Reeder

Roteiro: Brett Neveu

Elenco:  Geno Walker, Kate Arrington, Michael Shannon, Felonius Munk, Lawrence Grimm

Produção: Crow Islands Films

Distribuição: Shudder

Ano: 2022

País: EUA

 

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