sexta-feira, abril 08, 2022

Série 'For All Mankind': e se os soviéticos tivessem chegado primeiro na Lua?


Ao lado da série “O Homem do Castelo Alto”, “For All Mankind” (2019- ) é uma série que se alinha ao subgênero das realidades alternativas – se a série baseada em Philip K. Dick mostrava uma realidade alternativa na qual Alemanha e Japão ganhavam a Segunda Guerra Mundial, nessa da Apple TV + acompanhamos o efeito em cascata, seja geopolítico, seja na cultura e costumes, dos soviéticos terem sido não só os primeiros a pisar na Lua, mas de também colocar a primeira mulher cosmonauta pisando o solo lunar. A questão é que, mesmo em um mundo alternativo, a série repete as mesmas mitologias do nosso mundo real: a NASA como como uma agência “científica” e astronautas como os playboys do “american dream”. 

O Módulo de Descida (LEM) da Apollo 10 estava a poucas centenas de metros para tocar o solo lunar. O comandante Ed Baldwin, ao lado do co-piloto Gordo Stevens, estava a poucos segundos da maior realização da humanidade. Tudo seria apenas um ensaio para depois, a Apollo 11, com Neil Armstrong e Buzz Aldrin, definitivamente aterrissar na Lua. O controle de voo de Houston ordena Ed para retornar ao Módulo de Serviço, em órbita.

Por alguns segundos, Ed vacila e pensa em desobedecer ao controle da Nasa em Houston. Afinal, ele estava tão perto!... Mas no final, obedece a política de cautela dos engenheiros da Nasa e arremete, retornando à órbita lunar.

Mal sabiam que todos tomaram um caminho numa bifurcação da História. Poucos dias depois, seriam os soviéticos os pioneiros a caminhar através das dunas lunares, transmitidos ao vivo pela TV em 1969 para todo o planeta. “O triunfo do modo de vida marxista-leninista”, são as palavras do primeiro cosmonauta a pisar na Lua, diante dos telespectadores americanos perplexos.

Derrotados, os americanos pousariam de qualquer maneira a Apollo 11, numa alunissagem descontrolada que quase custou a vida de Armstrong e Aldrin.

A série Apple TV +, For All Mankind (2019- ), criada por Ronald D. Moore, explora as consequências geopolítica na corrida espacial se os soviéticos tivessem sido os primeiros a fincar a bandeira no nosso satélite natural. Uma série que entra no campo da história alternativa, lembrando bastante a série O Homem do Castelo Alto (2015-19) na qual Philip K. Dick imaginava um mundo no qual Alemanha e Japão teriam sido os vencedores na Segunda Guerra Mundial.

A série descreve como uma simples decisão ao dilema de obedecer ou desobedecer ao Controle da NASA em Houston trouxe uma cascata de mudanças históricas, alterando tudo aquilo que conhecemos.

Em nossa realidade, os soviéticos nunca chegaram perto de pousar na Lua antes da Apollo 11. Neil e Buzz chegaram lá primeiro, os russos desistiram completamente da Lua e os Estados Unidos seguiram o exemplo alguns anos depois. Nesta versão, a chegada de uma “Lua Vermelha” apenas intensifica o conflito entre as duas superpotências, estendendo a corrida espacial a níveis cada vez mais perigosos para a humanidade. 



Como o engenheiro de foguetes pioneiro e oficial da NASA Werner Von Braun (Colm Feore) coloca no segundo episódio de For All Mankind: “Este não é o fim da corrida. É simplesmente a primeira fase.”

Porém, o que deveria ser a oportunidade de fazer um revisionismo crítico da história recente, For All Mankind reproduz todos os mitos da propaganda norte-americana na nossa realidade. Em outras palavras, nem mesmo em um mundo paralelo a mitologia norte-americana muda: ela é a mesma daqui, da nossa realidade.

Está lá a reconstituição idílica dos anos 1960, com os astronautas imaginados como playboys em seus carros esportivos, casa no subúrbio com esposa e filhos enquanto arranjam uma amante no trabalho – a essência do “sonho americano”. Tudo parece como a série Jeannie é um Gênio (1965-70). 




Enquanto a NASA, sob o comando do ex-engenheiro de foguetes da SS sob o regime nazista na Segunda Guerra Mundial, Werner Von Braun, é figurada como uma agência eminentemente científica (dedicada exclusivamente ao aprimoramento do conhecimento humano), sem qualquer vínculo com a militarização do espaço – afinal, a motivação geopolítica de toda a corrida espacial, que continuou com o programa “Guerra nas Estrelas” de Ronald Reagan e, mais recentemente, a “Força Espacial” criado por Donald Trump.

Aliás, na primeira temporada de For All Mankind a figura ambígua de Von Braun (um ex-nazista à serviço do “Mundo Livre” do Ocidente) é o coadjuvante mais importante ao expor não só as contradições da NASA como a do próprio desenvolvimento tecnológico, lembrando a tese principal do urbanista e pensador francês Paul Virilio: todo o desenvolvimento tecnológico provém da guerra e, por isso, carrega a essência ideológica da guerra: a velocidade e a endocolonização.

A Série

Nos primeiros minutos do primeiro episódio “Red Moon” acompanhamos as imagens de TV em preto e branco do histórico pouso na Lua em 1969. As imagens são conhecidas por todos nós, mas a sala de controle da NASA está estranhamente perplexa, uns olhando para a cara dos outros, tensos. No final da sequência de abertura, vemos no solo lunar um astronauta sair do campo da câmera para vermos a bandeira da União Soviética.




Mas essa pequena, mas significativa, mudança na história não é o foco de For All Mankind. Em vez disso, a série se concentra em um mundo onde os EUA e a URSS canalizam tudo o que têm para a corrida espacial, na esperança de se tornar o primeiro país a estabelecer uma base permanente na Lua, depois na esperança de se tornar o primeiro país a enviar pessoas viver lá mais ou menos em tempo integral, depois na esperança de se tornar o primeiro país a pisar em Marte.

O foco principal dos dois primeiros episódios, no entanto, é a frustração de Ed (Joel Kinnaman) e Gordo (Michael Dorman) por não terem tido a permissão para pousar na Apollo 10, e no impacto que a discussão pública de Ed sobre essa frustração tem em sua carreira.

Nesse mundo alternativo, o impacto da conquista soviética (e, mais tarde, o grande golpe de propaganda soviético ao colocar a primeira mulher cosmonauta na Lua) é tão poderoso que foi capaz de acabar com a Guerra no Vietnam. O presidente Nixon passa então a ficar absorvido com o projeto de militarização da NASA para a construção da primeira base lunar militar.

O que acaba encontrando resistência em Von Braun (artífice do gigantesco foguete Saturno V e Diretor da NASA): para ele, a NASA pertence à humanidade, e não às Forças Armadas ou ao Governo. Nixon e CIA são implacáveis: para desmoralizar a imagem do engenheiro junto à opinião pública, divulgam a “ficha corrida” do engenheiro alemão: sua filiação à SS e a sua responsabilidade pelos milhares de operários mortos (entre 10 e 20 mil) nas fábricas de produção dos mísseis V1 e V2 em Mittelbau-Dora, que custariam a vida de mais 10 mil em Londres e Antuérpia – o que é verdadeiro, mesmo na nossa realidade.

Nixon, mais uma vez, é o vilão: nesse mundo alternativo, ao invés de sofrer o impeachment em 1972, militariza a NASA e joga todas as fichas na corrida espacial. Consegue jogar para segundo plano o escândalo de Watergate... que será trazido à tona pelo próximo presidente, o democrata Teddy Kennedy.




Além da mitologia dos astronautas como os playboys misógenos do “american dream”, a série reforça essa falsa dicotomia entre guerra e tecnociência, entre a logística militar e o progresso científico. 

O momento delicado para For All Mankind, que entra em contradição com a mitologia que a série sustenta, é a linha de diálogo em que Von Braun tenta se justificar para a sua discípula, a controladora Margo Madison (Wrenn Schmidt), o seu vínculo passado com o nazismo: “a guerra era a única maneira para manter o sonho da conquista do espaço...”. 

Essa é a ideia central do urbanista e filósofo Pauli Virilio, desde o seu livro "Guerra e Cinema": há um paradigma, uma metafísica, uma visão de mundo intrínseca na tecnologia: o princípio da Guerra - a velocidade. Todos os avanços tecnológicos em primeiro lugar foram pensados para a logística militar – aceleração e velocidade são imperativos da logística dos campos de batalha. Para mais tarde seus subprodutos serem comercializados para o restante da sociedade.

Vídeo games (originalmente desenvolvidos para a simulação de estratégia militar) e a Internet que surgiu a partir de pesquisas militares no auge da Guerra Fria com a rede ARPANET nos anos 1960 seriam alguns exemplos. Exporiam a percepção humana à mesma experiência dos cenários de conflagração bélica, com consequências cognitivas como a “picnolepsia” – estados de afasia temporais e espaciais. E a “propaganda do progresso” esconde essas origens da evolução tecnológica, colocando tudo como se fosse o progresso das necessidades humanas.




Outro aspecto do pensamento de Virilio fica claro na série: a endocolonização – com a militarização do espaço, a motivação neocolonialista na base da conquista espacial (a colonização de planetas para a possível extração de minérios estratégicos) é substituída pela edocolonização. A estratégia que motiva a guerra fria espacial: satélites, estações orbitais e bases lunares para fins bem terrestres. 

A colonização do espaço (a viagem heróica e intrépida de um astronauta pelas imensidões do espaço real) é substituída por uma endocolonização da própria Terra por um anônimo sistema de telemetria para fins de monitoramento e controle geopolítico.

Não é por menos que quanta mais acirra a corrida espacial, maior a paranoia anti-comunista: o FBI começam a perseguir engenheiros da NASA suspeitos de serem homoafetivos, supostamente vítimas potenciais de possíveis chantagens de espiões comunistas – ecoando o cruel destino do cientista da computação Allan Turing (1912-1954), condenado e preso por “indecência” no Reino Unido. Por ser homossexual, tornou-se suspeito pela Inteligência britânica. 

Após o episódio “Nixon’s Women” (após os soviéticos colocarem a primeira mulher na Lua, Nixon, cotejando o voto feminino, ordena que a NASA treina mulheres como astronautas no programa espacial), a série cai no imaginário do filme Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo (1995), com Tom Hanks: uma sucessão de desastres espaciais e as peripécias de astronautas convertidos em caubóis do espaço e a engenhosidade dos engenheiros das NASA em inventar qualquer dispositivo salvador em questão de minutos.

Mas, pelo menos, a série For All Mankind, com um grande orçamento para entregar uma direção de arte caprichada e efeitos em CGIs, faz aquilo que o cinema americano faz de melhor: thriller de muita ação, perseguição e perigo mesclado com dramas de queda e redenção.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: For All Mankind (série) 

Criação: Ronald D. Moore, Ben Nedivi, Matt Wolpert

Roteiro: Ronald D. Moore, Matt Wolpert

Elenco:  Joel Kinnamn, Michel Dorman, Wrenn Schmidt, Krys Marshall, Shantel VanSanten

Produção: Sony Pictures Television

Distribuição: Apple TV +

Ano: 2019-

País: EUA

 

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