quarta-feira, setembro 29, 2021

Muito além de um jogo de luta: as influências ocultas de 'Mortal Kombat', por Claudio Siqueira


O novo filme Mortal Kombat estreou no dia 13 de maio e chegou às plataformas digitais no dia 24 de junho causando decepção para muitos fãs que esperavam um filme “fiel” ao jogo, como o foi o de 1995. Opiniões à parte, o Cinegnose vem dissecar o jogo Mortal Kombat, alguns de seus personagens e cenários e mostrar que não se trata apenas de um jogo de luta, já que suas influências ocultas saltam aos olhos. Cinegnósticos, com vocês: Mortal Kombat! 

Em 1992, as desenvolvedoras de games Midway e Acclaim despontavam com o clássico Mortal Kombat, que, na época, foi o único capaz de rivalizar com o game Street Fighter II: The World Warrior. Ambos os games pertencem à categoria kick and punch, onde os jogadores encarnam personagens lutadores, um de cada lado do ringue (ou tela) para se enfrentarem com socos, chutes, quedas e superpoderes.

Antes de Street Fighter II, os jogos de luta (como eram chamados os kick and punch) que faziam a cabeça da molecada nos fliperamas eram Violence Fight (1987) e Pit-Fighter (1990). Ambos sem a presença de superpoderes e apenas o segundo com gráficos digitalizados, ou seja, atores de verdade filmados e com movimentos digitalizados em stop motion.

Após o sucesso estrondoso de Street Fighter II e sua versão arcade (fliperama), Street Fighter II: Champion Edition (1992), muitos jogos tentavam bater de frente com o ícone dos kick and punch, principalmente os da concorrente SNK, mas sempre como pálidas imitações do clássico. A própria Capcom emplacou uma série de games de luta tendo como personagens monstros dos filmes de terror, Darkstalkers: The Night Warriors (1994) e seus sucessores, o que rendeu até um anime e pelo menos 3 HQs. 

Seja como for, o programador Ed Boom e o desenhista John Tobias (um dos desenhistas de Os Caça-Fantasmas) não imaginavam a proporção que sua criação iria tomar. Não vamos nos ater aqui a qualquer um dos filmes, desenhos animados ou jogos, mas a alguns personagens e suas respectivas eminências pardas gnósticas, exotéricas, em suma, relacionadas ao ocultismo. Cinegnósticos, com vocês: Mortal Kombat! 

Jogo do Van Damme

A ideia inicial dos criadores era fazer o jogo oficial de Jean-Claude Van Damme e o astro chegou a ser contatado. Não sei se ele não aceitou, mas os criadores chegaram a colocar uma imagem dele do filme O Grande Dragão Branco (Bloodsport), de 1988, com o fundo “mortalkombático”. O próprio game Pit Fighter tinha o personagem Kato, que lembrava Van Damme. 

O primeiro game consistia em apenas 7 personagens jogáveis que se enfrentavam em um combate mortal para salvar o planeta Terra (Earthrealm) de uma invasão de outra dimensão (Outworld): Liu Kang, um monge lutador treinado para tal fim; Raiden, o Deus do Trovão, responsável pelo monastério de Liu Kang; Kano, um mercenário da organização Black Dragon, foragido; Sonya Blade, das forças especiais dos EUA, que vai à Ilha atrás de Kano; Johnny Cage, ator de filmes de artes marciais que entra de gaiato no torneio pensando tratar-se de mais uma filmagem; Sub-Zero, um ninja do fictício clã Lin Kuei com poderes sobre o gelo e Scorpion, um ninja do clã Shirai Ryu. Morto por Sub-Zero, tornara-se um espectro, um fantasma em busca de vingança. Seu nome deriva da arma que usa, uma kunai.



Todo o primeiro game lembrava o clássico de Bruce Lee de 1973, Operação Dragão (Enter the Dragon), com pitadas de Os Aventureiros do Bairro Proibido (Big Trouble in Little China), de 1986, de John Carpenter. Liu Kang, era nitidamente inspirado em Bruce Lee. Shang Tsung, o vilão principal e último chefe, inspirado tanto em Han, vilão de Operação Dragão quanto em Lo Pan, de Aventureiros (...). Goro, o monstro de 4 braços, era uma infame versão dos deuses indianos, mas sua figura como personagem era inspirada em Bolo Yeung. Rayden era inspirado em um trio do filme Os Aventureiros do Bairro Proibido, tanto pelo chapéu típico quanto – principalmente – pelos raios que soltava pelas mãos, seu principal poder e Johnny Cage estava lá pra saciar a vontade dos criadores de colocar Van Damme no game; haja vista seu golpe: Johnny fazia um espacato para socar os testículos do oponente. 

A grande sacada do game era que havia sangue, além dos golpes fatais, os famigerados Fatalities, relativamente difíceis de serem aplicados, não só pelos comandos, mas pelo curtíssimo espaço de tempo para se digitá-los ao fim do último round, quando uma voz cavernosa exclamava: Finish him! (ou her, quando se tratava de Sonya Blade, a única mulher no jogo em sua primeira versão). Mais tarde veio a se descobrir que a voz era a do déspota Shao Khan

A ideia de se ter golpes realmente fatais deu o que falar entre pais e educadores em geral, mas era o que fazia a molecada babar como cachorro vendo a carne girar. A versão para o console Super Nintendo deixou a desejar já que não possuía sangue, coisa que não aconteceu para versão de Mega Drive, que, embora fosse ligeiramente inferior no quesito gráficos e sons, possuía a sanguinolência comum ao jogo. Fala sério! De que adianta golpes fatais se não há sangue? E de que adianta tirar o sangue se as mortes continuam ocorrendo?

Mortal Kombat 2: A continuação da história

Segundo o cânone da história, Liu Kang teria vencido o primeiro torneio, obrigando Shang Tsung a se retirar com o rabo entre as pernas com seu séquito para o Outworld. Embora humano e nativo da terra, Shang Tsung se entregou ao lado obscuro, o que lhe conferiu poderes. Ele podia se transformar em qualquer personagem do game, o que obrigava a nós jogadores a saber lidar com todos os demais personagens, já que poderíamos enfrentar qualquer um ao enfrentarmos o velhinho. Mas isso não chegava a ser difícil já que, para se chegar ao derradeiro mestre, já havíamos passado por todos os outros.

Derrotado e humilhado, Shang Tsung implorou ao seu mestre Shao Khan que lhe poupasse e este o concedeu não só a chance de participar de um novo torneio quanto a oportunidade de rejuvenescer. Não fica muito claro se Shang Tsung rejuvenesceu por seus próprios poderes ou por uma ajudinha de algum feiticeiro do Outworld. Se alguém souber o cânone da história, por favor poste nos comentários.

Não apenas Shang Tsung reapareceu mais jovem e como personagem jogável, mas também Reptile, o personagem secreto do primeiro jogo. Novos personagens surgiram nesta nova versão, como é de praxe em continuações de games. Kung Lao, um outro monge, que herdara não só o nome como o título do lendário Grande Kung Lao, da mitologia do game. Além de um ligeiro teleporte, seu poder consistia em arremessar seu chapéu chinês. 

Bruce Lee abriu espaço para o protagonismo de atores orientais, ainda que estereotipados nas “funções” que lhe cabem: a de lutadores. Ao menos, não eram mais apenas vilões, mas protagonistas. Não é de se esperar que os norte-americanos tenham grande conhecimento da cultura oriental e nem era esse o propósito da série, mas algumas coisas são por demais caricatas. O nome de Kung Lao é a junção de Kung, de Kung Fu, com Lao, de Lao-Tsé.

Sonya Blade e Kano haviam sido feitos prisioneiros e em um dos cenários do game apareciam acorrentados ao fundo, um de cada lado do imperador Shao Khan, sentado em seu trono. Jax, um um oficial das Forças Especiais dos EUA, assim como Sonya, entra no game e sua história consiste no fato de que entra no torneio para resgatar a moça e capturar Kano.

Itto Ogami e seu filho (à esquerda) e Baraka e a menina
que jurou cuidar, Nania


Além de Jax e Kung Lao, três novos personagens jogáveis surgem: Kitana, uma humana adotada pelo imperador Shao Khan que utilizava como arma dois leques cortantes, chamados tiě shān (leque de aço) em chinês, tessen, em japonês e buchae em coreano. Mileena, um clone de Kitana, que utiliava como arma um par de adagas sai e possuía uma bocarra inumana com todos os dentes afiados e em forma de agulhas e Baraka, um ser do outworld com uma boca semelhante a de Mileena e lâminas retráteis que saíam do antebraço a la Wolverine. Em uma das HQs, um spin off de Baraka mostrava o personagem vagando pelo Outworld com um bebê a tiracolo; uma alusão à HQ Lobo Solitário (Kozure Ōkami). Como Shang Tsung aparece como personagem jogável, o último chefe é o imperador Shao Khan e o subchefe, Kintaro, outro ser da raça Shokan, a mesma de Goro, embora este possua a pele “tigrada”. 

Quem matou Scorpion?

O terceiro jogo da série mostra que o temido apocalipse realmente ocorreu. Novamente derrotado, Shang Tsung precisa persuadir Shao Khan a não matá-lo e para isso convence o imperador de que, para abrir o derradeiro portal interdimensional para a Terra, independentemente do torneio, ele precisaria de sua ex-esposa viva. Com isso, Shang Tsung ressuscita Sindel, e juntos abrem o portal para a Terra. Kano e Sonya retornam como personagens jogáveis, sendo que Kano virou a casaca e se uniu a Shao Khan e às forças do Outworld. Se bem que Kano sempre foi um vilão, então a expressão “virar a casaca” nem se aplica a ele. 

Na versão de 2011 (que conta o que aconteceu entre Mortal Kombat 1 e 2 e entre Mortal Kombat 2 e o 3, com pitadas do 4º game), o momento da invasão mostra os personagens Stryker e Kabal. O primeiro, um policial que se mostra atônito ao ver a abertura do portal e as criaturas que dele emergem; o segundo, um ex-membro do Black Dragon (a máfia da qual Kano faz parte) que se tornou policial. O game de 2011 mostra o porquê de Kabal usar a máscara: suas queimaduras de 3º grau se deram por conta da baforada de fogo desferida por Kintaro, ao chegar ao nosso mundo assim que sai do portal. Kano faz questão de soldar a máscara que ficará para sempre em seu rosto, não só por vingança por ter se tornado polícia, mas para chantageá-lo para ingressar nas forças do Outworld.

Após as duas derrotas prévias, Shao Khan não mais se alia à raça Shokan e o novo subchefe é um centauro; ao menos a versão do game, que em sua mitologia diz que a raça dos centauros é inimiga da raça Shokan (meio-dragões, com forma humanoide e quatro braços com três dedos em cada mão). Por esse motivo, Sheeva, uma mulher da raça Shokan aparece como personagem jogável, já que se alia aos humanos contra Shao Khan e seus exércitos. 

A picuinha entre Sub-Zero e Scorpion é explicada em Mortal Kombat 4. Afinal, quem matou Scorpion? Não, não foi Sub-Zero ou alguém do clã Lin Kuiei, mas o feiticeiro Quan Chi. Adepto do deus Shinnok, o deus louco, ele matara Scorpion e sua família por propósitos pessoais mesquinhos. Mas não vou mais me alongar acerca dos enredos. Vamos aos fundamentos ocultos dos personagens.

Liu Kang- A partir do segundo game, um de seus fatalities consiste em se tornar o dragão presente na capa e na logo como silhueta e devorar metade do adversário. Como relatei aqui, o dragão tem outra conotação nas culturas orientais e a partir do 3º game todos os personagens jogáveis possuem um movimento final chamado Animality. Cada um deles se torna um animal para matar o adversário. O animal correspondente seria o animal totêmico de cada personagem.

Mileena- Em Mortal Kombat (2011), uma das skins (roupas ou mesmo formas diferentes para cada personagem, no jargão gamer) deve ter sido considerada pornográfica demais e não foi repetida nos outros games. Seja como for, ela se assemelha muito à figura da deusa grega Afrodite no Tarô Mitológico.


Mileena em uma das suas skins e a carta Os Namorados, do Tarô Mitológico


Baraka- Assim como os indianos possuem a teoria dos Sete Corpos Sutis, os egípcios também possuem alguns aspectos da alma, sendo o Ba, o mais próximo do que conhecemos como alma ou talvez, personalidade. Era representado peor um pássaro com cabeça humana que vinha visitar o corpo do falecido após a sua mumificação. 

Ka seria a essência anímica, a energia vital, representado por um hieróglifo com dois braços com os cotovelos dobrados tendo as mãos e os antebraços voltados para cima, como no ditado “bota as mãos pra cima”. Ao morrer, a perfeita homeostase entre o Ba e o Ka resultavam no Akh, e daí a importância de se colocar comida e pertences do falecido próximo ao corpo, no caso, a múmia. Ao fim de uma luta, se vencesse, Baraka cruzava os braços sobre o peito na posição de uma múmia. 

Shao Kan- Na Medicina Tradicional Chinesa, que tem como base o Taoísmo, temos o sistema Zang Fu (ou Zhang Fu), onde órgãos, vísceras, fluidos corporais, emoções, sabores, temperaturas, estações do ano e fases da vida são correlacionados aos 5 elementos chineses. Também os dois meridianos presentes no corpo humano se dividem em 6 planos energéticos: Tai Yang e Tai YinYang Ming e Jue Yin e Shao Yang e Shao Yin, sendo Yang, a polaridade ativa, masculina e positiva e Yin a passiva, feminina e negativa e Tai, “grande”, Ming e Jue o mediano e Shao, “pequeno”.  

No I-Ching, o Livro das Transmutações, temos 8 Trigramas Fundamentais, sendo K’an, a Água e 64 Hexagramas, o produto de 8x8. No Feng Shui, a Água corresponde à direção Norte e à cor preta e em uma nota de rodapé do livro Dogma e Ritual da Alta Magia, de Eliphas Levi (Capítulo IV da Parte I, Dogma) uma máxima em latim diz que “Todos os males provêm do Norte” (Septentrine pandetur omne malum), já que observando as constelações do Norte é que se pode orientar para os maus presságios vindouros. O Hexagrama K’an, sendo o trigrama da Água duplo, significa O Abismo; a ideia da tribulação como força motriz da perseverança. Não por acaso, Shao Kan constitui o desafio final. Portanto, Shao Kan poderia muito bem significar “O Pequeno Abismo”.

Na Cabala, a Árvore da VidaDa’ath, a Sephira Invisível não é necessariamente uma sephira, mas um abismo; o que separa o Mundo da Criação (Briah) do Mundo Arquetípico (Atziluth). Ela é o portal para a Árvore da Morte, o mundo das Qliphoth e lar do demônio Choronzon que representa a dispersão (no sentido de dissipação, desintegração ou mesmo distração mental, já que os pensamentos não estariam ordenados e orientados).   

O Portal (The Portal)- A ilha onde se passam os dois primeiros games é uma intersecção entre nosso mundo (Earthrealm) e a Exoterra (Outworld). Enquanto dura o torneio, a película que separa o s dois mundos e talvez até os outros três se torna diáfana, permitindo a passagem dos outros seres para o nosso mundo e vice-versa. Algo como o Samhain celta. No segundo game, um dos cenários se chama The Portal. Ele reaparece como The Hidden Portal em Mortal Kombat 3, em uma versão azul, mais “da’ática”, em Ultimate Mortal Kombat 3 e como The Lost Bridge em Mortal Kombat Trilogy, do Nintendo 64. O Portal é uma representação de Da’ath e a letra hebraica, Daleth.

Sindel- a esposa de Shao Khan foi revivida com a ajuda de Quan Chi. seu nome significa “Aquela que canta” e também “Cinza”. Sindel tem o cabelo grisalho (cinza) com o qual agarra e derruba os adversários e um de seus golpes constitui um grito e tanto o cabelo quanto o grito fazem jus ao seu nome.   

Quan Chi- um poderoso feiticeiro obscuro, Quan Chi podia viajar entre os Cinco Reinos sem a intromissão dos Deuses Ancestrais e acabou por encontrar o Deus Ancestral caído Shinnok, o Deus Louco. Seu aspecto lembra muito o de um Shinigami, principalmente a versão do anime Death Note. Quan Chi busca um kamidogu, um dos seis artefatos que representam cada um dos deuses ancestrais. Sendo kami algo como “deus” ou “espírito” e dugu, “boneco”; “estatueta de barro”.  

Sheeva- mais uma analogia caricata da série de games. Sheeva é uma mulher da raça Shokan (meio-dragão), que possui quatro braços com três dedos em cada mão além de pequeninos chifres dispostos em alguns pares, como uma crista de dragão. Seu nome é a forma fonética em inglês para Shiva. Embora o deus indiano (e o termo “deus” nem seja o apropriado, mas sim deva) seja o deus da destruição ou o Destruidor de Mundos, Shiva é um homem. A única atribuição que faz jus à personagem é a destruição.

Claudio Siqueira é Bracharel em Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.

 

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