Se “Show de Truman” e “Matrix” foram os clássicos da era das mídias tradicionais, “Free Guy: Assumindo o Controle” (Free Guy, 2021) é o cinema gnóstico na era dos jogos de computador e dispositivos móveis. Claramente inspirado em Truman e na dupla Neo/Trinity, um anônimo personagem não jogável (NPC) de um game chamado “Free City” ganha autoconsciência e descobre a cruel artificialidade do seu mundo. Do anonimato, ganha a notoriedade no mundo dos games e tenta a quebrar por dentro os códigos de “Free City”. Além de abordar a clássica discussão filosófica entre livre arbítrio vs. necessidade (porém, dentro da cosmogonia gnóstica), passa pela cultura dos jogos. Principalmente a amoralidade dos jogadores que, através da experiência imersiva, emulam a amoralidade dos super-heróis da HQs e das franquias cinematográficas.
O gnosticismo pop teve o auge do seu período clássico com os filmes Show de Truman (1998) e Matrix(1999), fazendo pesquisadores como o filósofo alemão Boris Groys falar em “guinada metafísica de Hollywood” (clique aqui) na qual a tendência da autorreflexão estariam tomando a mídia e as novas tecnologias num sentido metafísico: a própria realidade estaria deixando de existir como tal. Ou virando uma fina interface tecnológica.
Esses dois filmes viviam ainda a época da hegemonia das mídias de massa: televisão e cinema. Truman não sabia que sua vida transcorria num gigantesco estúdio de um reality show televisivo; e Neo vivia numa realidade virtual, a Matrix, construída dentro dos princípios de verossimilhança do realismo cinematográfico – coerência, impressão de realidade etc.
O século XXI traz o crescente domínio das tecnologias de convergência, dispositivos móveis, mas, principalmente, os games de computadores, criando novas estéticas e narrativas. Desde o videogame “Second Life” (2003), mundos simulados com qualidades gráficas cada vez mais perfeitas tornaram-se ambiente de jogos e diversão. Seria como se as distopias apresentadas pelos filmes clássicos do gnosticismo pop virassem jogos e diversão.
Portanto, estava faltando os Trumans e Neos da era dos jogos de computadores. E o filme Free Guy: Assumindo o Controle (2021) é a produção que confirma a tese de Boris Groys – quando uma mídia alcança seu ponto máximo de desenvolvimento e hegemonia, ela entra em um momento de autorreflexão ou metalinguagem.
Free Guy assume os principais tropos de Matrix e Show de Truman, só que dessa vez dentro de um videogame chamado “Free City”: o protagonista prisioneiro em um universo artificial, um demiurgo que o mantém ignorante nesse constructo, e assim por diante.
Mas Free Guy não faz uma simples atualização do gnosticismo pop no universo dos jogos. O filme tematiza dois elementos que compõem esse universo: a amoralidade dos gamers e a verossimilhança ou realismo gráfico e narrativo dos jogos.
Mais especificamente, o herói de Free Guy não é o protagonista de um reality show como Truman, ou “O Escolhido” como Neo em Matrix. É um “NPC” (“No Player Character”), personagem não jogável, um mero figurante ou extra em um jogo. Aqueles anônimos que habitam as cidades virtuais e servem como alvo do sadismo dos jogadores e para morrer nos “efeitos colaterais” das perseguições, explosões e desmoronamentos de prédios.
Como seria o cotidiano de um NPC no interior do jogo, enquanto o usuário não o vê? Mas, principalmente, qual a visão de mundo e a percepção da sua realidade que um NPC possui? Ou melhor dizendo, como um NPC percebe o seu universo como “real” ou verossímil? Mesmo com um cotidiano totalmente surreal com bancos sendo diariamente assaltados, robôs gigantes cruzando as ruas e carros explodindo em perseguições alucinadas com carros pilotados por usuários do jogo sedentos por violência virtual.
Bem-vindo à “Free City”: o nome já define o conceito do jogo. Um parque temático amoral no qual jogadores acumulam pontos e bitcoins praticando sistematicamente contravenções, enquanto os moradores virtuais devem permanecer resignados em uma rotina fixa de sistematicamente morrerem e ressuscitarem para o próximo jogo. Metáfora perfeita para a condição humana gnóstica.
O Filme
Com uma narrativa que se parece bastante com a de Uma Aventura Lego (The Lego Movie, 2014), Free Guy nos apresenta o muito simpático Guy (Ryan Reynolds), um NPC (Personagem Não-Jogador) em um videogame de enorme sucesso chamado “Free City”. Ele não tem nome, é apenas “Guy”: usa a mesma roupa todos os dias, pede o mesmo café e vai trabalhar no mesmo banco, que é roubado várias vezes ao dia por jogadores reais que controlam seus avatares com skins e armas adquiridas pelos créditos e níveis alcançados. Todos os avatares usam óculos de realidade aumentada com o qual veem um painel com a missão e a contagem de pontos, créditos, medikits, hubs e outras coisas que serão familiares jogadores modernos.
Mas ele não liga. Ele é otimista e tudo parece incrível: para ele, tem a melhor vida e o melhor emprego. Afinal, ele nasceu naquele mundo e ver “super-heróis” roubando carros e destruindo inimigos, além de enormes robôs esmagando NPCs e dando tiros a esmo pelas ruas parece absolutamente verossímil e “real”.
Seu melhor amigo é Buddy (Lil Rel Howery), o segurança do banco com o qual conversa, entre um assalto e outro, o que farão no tempo livre.
Ele está prestes a conhecer a mulher dos seus sonhos, um avatar de nível Lara Croft conhecido como Molotov Girl (Jodie Comer). À medida que ele se torna mais interessado em Molotov Girl e para onde ela pode estar indo, Guy começa a quebrar os padrões da rotina de um NPC: passa a acreditar que a sua vida está destinada a algo maior. Num dos assaltos rotineiros ao banco, rouba um par de óculos de um avatar, o que lhe permite ver seu ambiente como ele realmente é - ou seja, uma violenta paisagem infernal onde as pessoas correm desenfreadamente, acumulam pontos às custas dos outros, reaparecem e repetem.
Guy alcançará senciência e autonomia, um conjunto de algoritmos que se torna Inteligência Artificial. Tentará tornar seu mundo ficcional um lugar melhor e tentará conquistar a garota, não necessariamente nessa ordem.
No outro lado, no mundo real, descobrimos que Molotov Girl é uma programadora chamada Millie, que costumava trabalhar com outro gênio da tecnologia chamado Keys (Joe Keery) no desenvolvimento de um jogo virtual verdadeiramente ambicioso, que replicaria o mundo real em vez de apenas proporcionar aos jogadores missões violentas, como costumam ser os jogos para muitos nerds trintões que ainda moram na casa dos pais.
Milly e Keys incursionam furtivamente em “Free City” tentando encontrar evidências de que o egocêntrico editor do jogo, Antwan (Taika Waititi), roubou seu código e o deformou em uma experiência insípida. É o momento em que Guy torna-se o aliado perfeito para essa busca. Assim como Trinity e Neo no filme Matrix, os dois formam uma aliança para basicamente quebrar o código de “Free City” por dentro, começando com a recusa de Guy em seguir os padrões algorítmicos. Guy escolhe apenas as missões positivas no jogo e se torna um sucesso na Internet por recusar-se a fazer as costumeiras chacinas, enquanto o mundo tenta descobrir quem pode ser esse jogador misterioso, sem perceber que ele é, na verdade, o avanço mais notável em inteligência artificial da história.
Conforme Millie e Keys descobrem a importância de Guy na história da computação, tentam salvar o seu projeto das mãos do ganancioso Antwan e reunir as provas do roubo da autoria do jogo.
Cosmogonia gnóstica e amoralidade dos jogos - alerta de Spoilers à frente
Assim como em Uma Aventura Lego, o núcleo do argumento de Free Guy é a velha discussão da Filosofia da aporia entre livre-arbítrio e necessidade, que levanta questão ontológica do “o quê é o Ser?”: um devir caótico? Um vir-a-ser com algum propósito, seja dialético ou evolutivo? Ou uma construção do livre-arbítrio do espírito?
Porém, quando a narrativa acompanha um algoritmo que ganha autoconsciência e autonomia, entramos no campo da ontologia gnóstica: necessariamente Guy terá que enfrentar uma realidade que um constructo de um demiurgo (Antwan) que o coficou com os códigos da necessidade do sistema. Contra os quais Guy se rebela.
Mesmo quando Antwan resseta o servidor para que Guy perca a memória e a senciência, a Garota Molotov (Milly/Trinity) resgatará essa luz interior esquecida através do amor. E, assim como na Cosmogonia gnóstica que declara que nós somos seres exilados num cosmos falso e decadente, também Guy tem no seu interior a luz que conecta à verdadeira versão de “Free City”, escondida pelo demiurgo no próprio jogo.
Além dessa inspiração no clássico Matrix, Show de Truman também ecoa em algumas sequências.
O primeiro momento é a percepção que Guy tem do seu mundo.
Nas sequências em que Truman está no leme do veleiro, o horizonte do mar é apresentado com uma exagerada anomalia ótica: é um horizonte muito próximo, sem curvatura, talvez o horizonte de um mundo plano. Truman não percebe essa evidente anomalia, pois, afinal, ali nasceu e cresceu, tornando tudo naturalmente como dado e evidente.
Em Free Guy essa “evidência” perceptiva de Guy é levada ao paroxismo: o fato de fazer todo dia a mesma coisa, ter um guarda-roupa com calças e camisas da mesmíssima cor e ver um mundo com inexplicáveis explosões, perseguições, mortes e assaltos a cada meia hora, não causa estranhamento. Afinal, a realidade para ele é um dado evidente em si mesmo, assim como em nossas vidas “reais”.
É somente quando coloca os óculos de realidade aumentada que vê a cruel artificialidade daquele mundo – é impossível não lembrar do mesmo papel dos óculos para o protagonista do filme Eles Vivem (They Live, 1988), de John Carpenter.
Mas é principalmente nas sequências da fuga de Guy daquele mundo através do oceano que a inspiração em Truman fica explícita: assim como no clássico, Guy é acompanhado por uma audiência mundial que está torcendo para ele nas telas de TV e de dispositivos móveis. Enquanto o demiurgo tenta destruir fisicamente os servidores de “Free City”.
Apesar do tom despretensioso (afinal, o filme apresente o que de melhor o cinema americano produz: filmes de perseguições), Free Guy é um dos melhores filmes sobre a cultura dos jogos ao focar a amoralidade dos jogadores online e que por trás daquele avatar poderoso, musculoso e armado até os dentes, está um garoto de 10 anos de idade ou alguém desempregado que vive no porão da casa dos pais.
Muitos nem querem cumprir as missões do jogo. Preferem atirar, matar ou esmagar NPCs por puro sadismo, como válvula de escape da sua impotência no mundo real.
A linha de diálogo da primeira sequência que faz a apresentação do mundo “Free City” é sintomática:
Esta é a “Free City”. Olhe para este cara, ele é um dos caras de óculos. E pessoas que usam óculos... São Heróis! Eles não estão nem aí pra nada e mandam na cidadade... Veja, esse carro nem é dele. Nem a esposa. Esses caras de óculos fazem o que quiserem. Eles têm missões, têm lindos cabelos, roupas estilosas ...E as leis não se aplicam a eles ... Para eles as leis são mais como... Recomendações.
Esse seria facilmente a descrição dos mundos dos super-heróis das HQs ou das franquias da Marvel ou DC Comics no cinema. A amoralidade dos super-heróis por estarem acima do Bem e do Mal e de qualquer controle Público do Estado (tão bem abordado pela série The Boys (2019- ) cativou tanto leitores e espectadores que, agora, os games de computadores democratizam essa amoralidade: todos podem escolher um avatar e ter uma experiência imersiva para sentir o prazer amoral dos super-heróis.
Através do sadismo alimentado pelo ressentimento originado na condição de imobilidade pessoal e social da vida dos jogadores.
Ficha Técnica |
Título: Free Guy |
Diretor: Shawn Levy |
Roteiro: Matt Lieberman, Zak Penn |
Elenco: Ryan Reynolds, Jodie Comer, Taika Waititi, Lil Rel Howery, Joe Kerry |
Produção: 20th Century Studios, 21 Laps Entertainment |
Distribuição: Walt Disney Studios Motion Pictures International |
Ano: 2021 |
País: EUA |