O mundo todo está virando um jogo. É o fenômeno da gameficação: processos seletivos de empresas, simuladores militares e de negócios, a política feita por aplicativos e até mesmo os relacionamentos por plataformas. Agora chegou a vez da luta de classes. A série sul-coreana da Netflix “Round 6” (“Squid Games”, 2021- ) acompanha produções recentes de filmes e séries de TV do Leste Asiático como “Parasite”, “Burning” e “Itaewon Class” abordando habilmente a desigualdade e a luta de classes em circunstâncias do mundo real, em vez das lentes distópicas de fantasias americanas como Jogos Vorazes e Elysium. Se ganhar dinheiro significa a luta pela sobrevivência na competição do mercado, por que então não representar a luta pelo dinheiro também como um game? Esse é o núcleo subliminar e de identificação do sucesso de “Round 6”: elevar o conceito de “game” a uma categoria universal de justiça dentro do Capitalismo.
“O Mundo Todo é um Jogo”, era a manchete de uma matéria da revista “The Economist” sobre o vertiginoso crescimento da indústria dos videogames. Aparentemente apenas uma manchete retórica, uma hipérbole para descrever o rápido crescimento econômico-financeiro do universo dos games nesse século.
Claro, os games estão somente na TV (reality shows, quiz shows etc.), nos computadores e celulares, fliperamas ou nos jogos de tabuleiro, como veículos lúdicos de entretenimento. Do lado de fora dessas mídias a realidade permanece, nos nossos trabalhos, atividades e relacionamentos. Ou não? Ou será que o jogo é para valer? O que a tecnologia do videogame pode fazer no mundo real?
Muitos pesquisadores apontam para o fenômeno de “gameficação” generalizada nas mais diversas áreas: processos seletivos corporativos (clique aqui), na política (“gamecracia” – clique aqui), como simuladores de treinamento militar (como o “America’s Army, ainda hoje jogado on line), simulação de negócios como fosse um jogo (como os desenvolvidos pelo Serious Game Institute, na Inglaterra) e até em aplicativos de relacionamentos (clique aqui).
Gameficação seria a exploração do elemento lúdico como ferramenta para as mais diversas atividades, sejam elas militares, administrativas, comerciais, relacionamentos etc. As consequências seriam o surgimento de sistemas cada vez mais perversos e autistas, cujas regras invisíveis se sobrepõem à capacitação profissional, emocional ou afetiva. Transformando-se em algo próximo a jogos de azar.
O cinema recente vem abordando esse tema da gameficação da sociedade, desde o clássico Jogos de Guerra (1983), passando pela produção espanhola El Metodo (2005, processo seletivo corporativo como game) até os jogos como elemento dominante em sociedades futuras distópicas como Jogos Vorazes (2012) ou Maze Runner(2014).
A série sul coreana Round 6 (Squid Game, 2021- ), fenômeno mundial da plataforma Netflix (primeira produção coreana a alcançar o primeiro lugar na plataforma de streaming nos EUA e número um no Reino Unido), acrescenta mais uma contribuição à ideia de que “o mundo todo é um game”.
Desde o início fica claro na série que revisitaremos o antigo tema dos ricos e poderosos explorando pobres impotentes para sua diversão sádica em jogos absolutamente cruéis que inevitavelmente levam a dilemas e becos sem saída. Porém, há algo mais além do que jogos distópicos assassinos.
Em primeiro lugar, a narrativa da série baseia-se em versões adultas de antigos jogos infantis (bolinhas de gude, cabo de guerra etc.) respingados com sangue, violência e crueldade. Só isso já dá um apelo universal à série: são regras simples e compreensíveis que apelam à memória afetiva da nossa infância. Ainda que, em se tratando da cultura sul-coreana, alguns jogos tenham versões diferentes da cultura brasileira.
Porém, há algo mais em Round 6, muito além de jogos cruéis que convidam o espectador ao prazer voyeurístico. A série captura o zeitgeist do vencedor do Oscar de 2019, Parasita, no qual a sociedade sul-coreana profundamente dividida em classes leva os protagonistas a um desfecho sangrento. Também em Round 6 o pano de fundo é a atual desigualdade de riqueza na Coréia do Sul no seu lado mais perverso: o endividamento crônico que leva à ruptura de amizades, laços familiares e conjugais.
Se em Parasita a desigualdade é apresentada através da ironia explosiva ao estilo Tarantino, em Round 6 temos a gameficação da desigualdade. Se ganhar dinheiro significa a luta pela sobrevivência na competição do mercado, por que então não representar a luta pelo dinheiro também como um game? Isso ganha a identificação imediata do espectador – o que eu faria se estivesse lá? Afinal, nossa luta diária pela sobrevivência não seria também uma espécie de jogo, pura competição?
Esse é exatamente o núcleo ideológico (ou subliminar, com queira o leitor) de Round 6: os organizadores do jogo querem que todos os competidores tenham condições de igualdade, ao contrário do mundo injusto lá fora. Aparentemente, Round 6 é mais outro libelo contra a desigualdade e os poderosos, tal como o filme Parasita.
Porém, ao “gameficar” a desigualdade, reforça o núcleo ideológico de toda democracia burguesa: supostamente o capitalismo seria o melhor sistema, desde que seja dada igualdade de condições para todos os competidores no jogo do mercado. Mas a “mão invisível” que sustenta o mercado na verdade são as regras invisíveis que transformam a competição num jogo de azar.
A Série
Dividido em nove episódios com pouco menos de uma hora, acompanhamos no primeiro episódio um viciado em jogos de azar, mas com um bom coração, Seong Gi-hun (Jung-jae Lee) e seu amigo de infância Cho Sang-woo (Hae-soo Park), um fugitivo da polícia. Dois losers endividados. Gi-hun perdeu seu casamento, voltou a morar com a mãe e ainda contrai mais dívidas com agiotas de casas de apostas.
É o candidato perfeito para uma misteriosa empresa que está recrutando competidores de um jogo que promete resolver todos os seus problemas financeiros. Tudo parece sedutor e, até certo ponto, fácil: jogos infantis disputados em playgrounds e apostar nos resultados com a chance de ganhar 45,6 milhões de won coreanos – cerca de US$ 39 milhões. Acontece que outras 450 pessoas desesperadas também foram atraídas para um jogo que, na verdade, é brutal e os perdedores condenados à morte sumária.
Round 6 se passa na Coréia do Sul atual, e os jogadores são selecionados nas margens da sociedade. E a impressão que temos é que o jogo poderia estar acontecendo em segredo em qualquer lugar do planeta.
A série acompanha produções recentes de filmes e TV do Leste Asiático como Parasite , Burning e Itaewon Class abordando habilmente a desigualdade de riqueza e a luta de classes em circunstâncias do mundo real, em vez das lentes distópicas de fantasias americanas como Jogos Vorazes e Elysium.
O diretor Dong-hyuk Hwang (My Father , The Crucible) segue essa tendência com Round 6 , sua primeira série dramática: Apesar dos elementos fantásticos, a série parece ter sido projetada para mostrar que nossa realidade atual pode ser igualmente infernal como qualquer mundo imaginado.
Cada um dos jogadores da série tem motivos para valorizar o prêmio em dinheiro potencial ao longo de suas próprias vidas. O protagonista Seong Gi-hun deve uma fortuna a agiotas e o dobro ao banco, mas quer cuidar de sua mãe idosa e de sua filha de 10 anos.
Seu amigo de infância, um banqueiro de investimentos, roubou dinheiro de seus clientes. Kang Sae-byeok (Jung Ho-yeon) é uma desertora norte-coreana que precisa de uma casa para tirar seu irmão de um orfanato.
O restante do elenco inclui mocinhos e antagonistas óbvios, mas todos eles têm histórias de fundo convincentes o suficiente para explicar por que eles se deixaram ser atraídos para o Jogo.
O jogo em si é uma visão de um pesadelo infantil, onde perder em um jogo infantil tradicional significa uma bala na cabeça ou uma morte mais horrível. Assistentes mascarados em fantasias brilhantes metralham o campo de competição e recolhem seus corpos após cada evento, colocando os eliminados, mortos e moribundos, em caixões decorados como caixas de presente. Os jogadores entram e saem dos playgrounds através de um labirinto pastel com um design explicitamente alusivo aos desenhos recursivos do artista plástico MC Escher.
A cenografia de Round 6 causa estranheza porque justapõe símbolos infantis com impactante violência gráfica. E justamente essa dissonância que torna Round 6 tão distintiva nesse universo fílmico de jogos distópicos. Os jogos tornam-se atraentes para o espectador porque ao mesmo tempo que acompanhamos a manipulação dos jogadores pelos mestres da competição, seguimos as maneiras como os competidores tentam manipular uns aos outros – principalmente, porque ninguém sabe qual será o jogo a seguir. O que dificulta as possíveis alianças ou o planejamento de estratégias.
Paralelo ao drama principal dos competidores, há uma subtrama: um investigador da polícia se infiltra entre os assistentes mascarados (cujos níveis hierárquicos são representados por figuras geométricas – círculo, triângulo e quadrado) para tentar descobrir que está conduzindo a competição – os misteriosos “VIPs”.
Os mestres do jogo notam no início que todos os jogadores entraram no jogo por sua própria vontade, literalmente oferecendo suas vidas em troca de uma chance de algo melhor. Uma vez que o jogo aumenta de nível e a vitória envolve matar conscientemente outras pessoas para obter a maior parte do pote do prêmio (pendurado no teto do dormitório para incitar a ambição de todos), a esperança de riqueza é substituída por questões de humanidade. Essas questões são profundamente íntimas, em vez de elevadas ao plano coletivo. Não há dúvidas sobre o capitalismo e o estado do mundo, apenas a questão de saber se vale a pena sobreviver vendo um amigo morrer.
Luta de classes como um game
O ponto central de Round 6 são as conexões simbólicas entre dinheiro-sobrevivência-jogo. Além dos mais ricos, as pessoas que vivem sob o capitalismo têm que planejar suas vidas com base na sua capacidade de ganhar dinheiro: como podem alavancar suas habilidades para ter um rendimento maior, quais empregos têm o melhor potencial de ganho, quanto precisam para sustentar suas vidas e as dos seus entes queridos.
Em algum momento, todos já consideraram o que estão dispostos a fazer por dinheiro, e a resposta a essa pergunta realmente depende de quão desesperados estamos. Portanto, não é impensável que alguém esteja disposto a suportar danos físicos e grandes riscos pela chance de nunca ter que se preocupar com dinheiro novamente.
Esse é o imaginário de identificação do espectador com os dramas de Round 6. Ao gameficar a luta de classes (principalmente ao representar a elite dos VIPs de forma caricata como suas máscaras de animais, pervertidos, amorais e insensíveis), o sistema capitalista é como que colocado entre parêntesis. Eles são os “maus” capitalistas.
A alegação dos mestres do jogo em dar condições de igualdade aos competidores, inexistente no mundo lá fora, soa libertária e contestadora. Até os macacões vermelhos dos assistentes mascarados, associados a e esse discurso de elogio à igualdade, faz lembrar a série A Casa de Papel (outro sucesso Netflix): um suposto libelo de crítica contundente ao capitalismo.
Round 6 sugere que estamos assistindo uma competição manipulada e corrompida – tão corrupta como os VIPs. A “mão invisível” do jogo é manipuladora e arbitrária. Mas, em algum lugar, poderia existir uma competição verdadeira, igualitária, sustentada pela verdadeira “mão invisível”, aquela do velho pensador do Liberalismo, Adam Smith.
Round 6 contém uma indução ideológica e subliminar: elevar o conceito de “game” a uma categoria universal de justiça. Todos deveriam lutar não para revolucionar o Capitalismo ou questionar um sistema que perversamente cria a desigualdade na própria competição do mercado, mas para tornar a competição do mercado tão justa e igualitária como um videogame.
Ficha Técnica |
Título: Round 6 (série) |
Diretor: Dong-hyuk Hwang |
Roteiro: Rachel Boynton |
Elenco: Jung-jae Lee, Hae-soo Park, Lee Byung-hum |
Produção: Siren Pictures |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2021 |
País: Coréia do Sul |