Em todas as culturas, conhecer o seu duplo (o “doppelgänger”) é uma experiência terrível e talvez prenúncio da morte. Tema recorrente no cinema, a série “Counterpart: Mundo paralelo” (2017-2019) leva esse tema para outra direção: e se você descobrisse que cada um de nós possui um duplo que vai muito além de um doppelgänger? Um duplo que partilha da mesma genética, memórias e experiências. Mas que criou uma personalidade e uma linha do tempo muito diferente da sua. Qual seria o impacto nas nossas vidas e no nosso mundo ao descobrirmos o segredo da existência de um mundo duplicado (efeito de um experimento científico durante a Guerra Fria que criou acidentalmente uma Terra Paralela) no qual, por exemplo, as torres gêmeas jamais foram derrubadas em 2001 e que o cantor Prince continua lançando CDs? “Counterpart” explora as consequências existenciais e políticas em uma nova Guerra Fria envolvendo espionagem e novas formas de terrorismo, dessa vez a partir de um acidente quântico que dividiu a humanidade.
Do espelho à fotografia, a contemplação de uma réplica de si mesmo sempre foi considerada um evento misterioso, como, por exemplo, todo o misticismo que cerca os espelhos ou os primórdios da fotografia – as pessoas ficaram assustadas com a fidelidade do resultado, só se tornando popular depois que descobriram que era possível retocá-las. Ou seja, depois de que elas passaram para o campo da simulação.
Em todas as culturas, ver o próprio duplo é uma experiência terrível e às vezes até mesmo o prenúncio da própria morte – como na nossa cultura, as chamadas “experiências de quase morte” quando supostamente saímos do corpo e olhamos para nós mesmos.
O cinema vem recorrentemente abordando esse tema. Principalmente porque na condição platônica que nos encontramos na sala de exibição (a caverna platônica), isolados na escuridão, vemos projetado nosso próprio psiquismo na tela.
Desde o filme The Man Who Haunted Yorself (1970), passando por Coração Satânico (1987), Gêmeos - Mórbida Semelhança (1988), Quero Ser John Malkovich (1999), O Grande Truque (2006), Moon (2009), Cisne Negro (2010), O Homem Duplicado (Enemy, 2013), o tema do duplo foi anexado à busca da identidade onde o protagonista mergulha numa situação de esquizofrenia e caos.
Porém, a série Counterpart: Mundo Paralelo (2017-2019), criada por Justin Markz e exibida pelo canal fechado dos EUA Starz! (da distribuidora Lionsgate), leva esse tema para o campo político da espionagem e Guerra Fria. Mais além, cruza esse campo com a condição existencial humana: o que aconteceria conosco se descobríssemos que existe um outro exatamente igual a mim, que compartilhou em outro mundo as mesma experiências e memórias que as minhas, porém criou uma personalidade diferente e fez outras opções na vida?
Como poderia conduzir minha vida nesse mundo sabendo que existe um outro eu física e geneticamente idêntico a mim, mas, ao mesmo tempo, totalmente outro? Eu o invejaria ou o odiaria por ver naquele aquilo que estaria faltando em mim nesse mundo?
A curiosidade dessa série é que ela aborda outro tema recorrente nas produções dos últimos anos: uma espécie de nostalgia da Guerra Fria. Mais exatamente, sobre algum acontecimento que teria ocorrido naquelas décadas de tensão nuclear e que marcou esse mundo para sempre. Séries recentes como Strangers Things, Dark, Chernobyl remexem esse período histórico tentando localizar nele algum divisor de águas que marcou o nosso mundo para sempre.
Em Counterpart, na década de 1980, um experimento científico secreto baseado em Berlim Oriental resultou na criação acidental de uma Terra paralela, referida no programa como o “Mundo Primer”. Todos os que estavam vivos no momento do experimento têm um “outro” no mundo Prime; um duplo criado à sua imagem.
A travessia entre os dois mundos é geralmente proibida, e a ponte que os conecta, chamada “The Crossing”, é guardada por uma agência da ONU chamada Office of Interchange (OI).
As relações entre os dois mundos são tensas, em grande parte por causa de uma pandemia de gripe suína mortal que eclodiu no Mundo Prime uma década após sua criação, dizimando 7% da população, quase toda ela na Europa.
Há uma teoria da conspiração de que o governo Alpha causou deliberadamente a pandemia para destruir o mundo paralelo. Uma facção terrorista chamada “Projeto Indigo” está em busca de vingança violenta contra o mundo Alpha. Indigo tem cultivado células adormecidas de crianças no Mundo Prime, treinando-as desde o nascimento para, eventualmente, substituir - e matar - suas contrapartes do mundo Alfa. Serão inseridos no Mundo Alpha como espiões para uma operação ainda mais ambiciosa que objetiva criar caos e destruição no Mundo Alpha.
A questão central que está implícita na série (e que se manifesta em algumas linhas de diálogos ao longo dos episódios) é: por que a ONU mantém em segredo esse mundo paralelo? Se aparentemente há uma boa vontade nas diplomacias dos mundos Prime e Alpha para combater os terroristas, por que a existência das nossas contrapartes é mantida em segredo?
A resposta pode ser política, na esfera da engenharia de controle social: a descoberta de um eu totalmente outro poderia criar inquietações, desordem e indisciplina (como abordado de passagem no filme A Outra Terra – Another Earth, 2011): descobrir não só um outro eu que tomou outras decisões na vida, como também um mundo com a linha do tempo alterada.
Por exemplo, no Mundo Primer os atentados de 2001 contra os EUA jamais aconteceram, o cantor Prince ainda está vivo e lançando CDs e, aparentemente, do outro lado não há Guerra Fria – o lado Oriental parece ter ganho a disputa geopolítica.
Tais descobertas poderiam abalar a nossa crença na fatalidade da linha temporal do nosso mundo.
A Série
O grande prazer em assistir a série é apreciarmos a performance em dose dupla do ator JK Simmons (vencedor do Oscar de 2015 com Whiplash). Ele faz Howard Silk, um burocrata de carreira dócil que trabalha na OI e que visita sua esposa em coma todas as noites no hospital. Segundo a enfermeira do hospital, ele tem “olhos bondosos”.
Mas o outro Howard Silk, é um espião sarcástico e mortal. Como esses dois Howard Silks, personagens geneticamente idênticos e que partilham das mesmas memórias e experiências, possuem um temperamento diverso?
A existência de mundos paralelos, que se tornaram cada vez mais diferentes nos 30 anos desde a criação do segundo mundo, é um segredo bem guardado. Acompanhamos nos primeiros episódios a descrição de uma grande burocracia bidimensional, um tanto desajeitada, que administra o portal pelo qual podem passar entre os mundos usando vistos medidos em horas.
Existe tráfego de produtos legais e clandestinos entre os mundos: de riquezas minerais permutadas entre os governos a contrabando de cigarros, bebidas alcoólicas e... CDs do Prince – quem sabe os chamados “álbuns póstumos” de cantores já falecidos são contrabandos de obras de uma versão duplicada ainda viva em um outro mundo?
Os dois Howards fazem parte desse aparato: o dócil Howard, um embaralhador de códigos da OI nas mensagens que são transmitidas entre os dois mundos; e o macho Howard um agente secreto do Mundo Primer. Eles se encontram - uma ocorrência quase inédita - quando o espião Howard segue um terrorista da Indigo que consegue cruzar os mundos e precisa se passar pelo dócil Howard para pegá-lo.
As alusões da história à Guerra Fria e o cenário de Berlim fornecem uma estrutura apropriada para a história de mundos alternativos se desenvolvendo subitamente lado a lado. Couterpart explicitamente homenageia o clássico conto de moralidade da Guerra Fria John le Carré, O Espião que Veio do Frio, enquanto incrementa com o visual distópico orwelliano de 1984. Além d discretamente tomar emprestado a premissa da série de ficção científica da Fringe.
Simmons brinca com inflexões, ritmos, expressões, posturas e orientações para tornar seus Howards idênticos totalmente distintos e, ao mesmo tempo, dá a cada um lampejos da personalidade do outro. Em Counterpart, Simmons trabalha tão sutilmente e aparentemente sem esforço, que você sempre sabe qual Howard está assistindo.
A grande questão da série é o argumento sobre natureza versus criação, em termos geopolíticos e pessoais. Será que os dois mundos e os dois Howards, em sua separação, inevitavelmente não se tornarão nada parecidos um com o outro? Ou suas naturezas básicas serão mais fortes?
Por isso, Counterpart atualiza a mitologia do Duplo: mais do que ver a si próprio refletido como metáfora da própria morte, o mais desestabilizador seria descobrirmos que seu outro Eu criou uma personalidade e linha do tempo totalmente outra, embora seja psiquicamente idêntico a você – em termos de psicanálise, ambos partilharam da mesma matriz edipiana.
Isso colocaria em xeque a noção de predestinação, um dos pilares ideológicos e políticos do controle social em massas para a aceitação do chamado status quo. Fazemos uma autodescrição de que, somos o que somos, como um resultado aditivo de memórias, sucessos, fracassos, boas e más escolhas.
Se sou um pedófilo, é porque fui abusado pelo meu pai na infância. Se sou tímido e covarde, é porque algum trauma seminal me tornou assim. Sempre pensamos numa linha de tempo aditiva, evolutiva, seja para a nossa jornada pessoal ou coletiva – se o Muro de Berlim caiu ou aqueles aviões se chocaram nas torres gêmeas em Nova Iorque, foi devido a alguma uma fatalidade causal política e econômica, que aditivamente resultou naqueles eventos.
Mas e se descobríssemos que existe um mundo com os mesmos pressupostos que o nosso (genético, psíquico, histórico etc.) mas que foi por caminhos totalmente diferentes? Certamente a descoberta do totalmente outro colocaria em xeque a inevitabilidade das coisas que acontecem em nosso mundo.
Se fizéssemos tal descoberta certamente confirmaríamos a tese do Anti-Édipo de Gilles Delleuze e Felix Guattari: ao desejo não falta nada, porque é pura máquina desejante. Ao contrário da concepção freudiana do desejo como um desejo que busca um objeto que lhe falta, criando toda a encenação teatral edipiana como uma representação universal para a qual inexoravelmente o psiquismo individual se encaminha – leia DELLEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, O Anti-Édipo, R. de Janeiro, Editora 34, 2011.
Bem diferente disso, como máquina desejante, cria seu próprio objeto em fluxos ou devires – ele não é um signo, um significante à procura de significado ou sentido. Por isso, o assombramento do dócil Howard Silk ao ver seu duplo com uma personalidade completamente oposta a sua, apesar de ambos terem partilhado do mesmo drama edipiano familiar.
Esse deve ser o principal motivo da ONU esconder de todos o mundo contraparte do nosso: evitar que o desarranjo na vida de Howard Silk se generalize para toda a sociedade, colocando sub suspeita todas as autodescrições feitas para nós tanto pela História quanto pela Psicanálise.
Uma curiosidade: em 2019 o canal Starz! optou por cancelar a terceira temporada da série. Por que? Segundo Jeffrey Hirsch, CEO do canal, o público de Counterpart era “muito masculino” para se encaixar na nova estratégia da emissora focada no público feminino – o que ele denominou como “estratégia feminina premium”.
Ficha Técnica |
Título: Counterpart: Mundo Paralelo |
Criador: Justin Marks |
Roteiro: Justin Marks |
Elenco: JK Simmons, Olivia Williams, Harry Loyd, Nazanin Biniadi, Sara Serralocco, Ulrich Thomsen |
Produção: Gilbert Films, Anonymous Content |
Distribuição: Starz! |
Ano: 2017-19 |
País: EUA |