quinta-feira, novembro 19, 2020

Por que 'Utopia' é a série mais azarada do ano?

Criada em 2013 e transmitida pelo canal britânico Channel 4, “Utopia” era uma série inventiva e inquietante: conseguiu elevar o olhar conspiratório para a realidade a um nível crítico e de relevância cultural. Mas o seu remake da Amazon Prime Video “Utopia” (2020) não teve a mesma sorte. No contexto da atual pandemia, “Utopia” teve um destino amargo: o enredo conspiratório parece ter saído de alguma fábrica de memes negacionistas de extrema-direita e seus protagonistas um grupo de crentes QAnon. Fãs de uma HQ acreditam que nas suas páginas estão codificados pistas e símbolos que de alguma forma previram uma série de pandemias, do Ebola à SARS. E também a atual pandemia de vírus que invade a América, originada em morcegos no Peru. Um magnata da Big Pharma está por trás de uma conspiração global através de uma misteriosa vacina. E começa a perseguir e matar os fãs da HQ que descobriram a verdade... O grande azar da série “Utopia”: a propaganda da “direita-alternativa” apropriou-se do discurso conspiratório da série de 2013, conseguindo fazer ruir as noções de Crítica e Verdade.  

A crítica especializada vem apresentando a série da Amazon Prime Video Utopia (2020) como o programa mais azarado do ano. Originalmente, Utopia foi uma série britânica criada por Dennis Kelly e transmitida pelo Channel 4 até 2014.

Toda a série original girava em torno de um grupo de fãs que encontrava uma HQ não publicada (chamada “The Utopia Experiments”) sobre um cientista que faz um pacto com o diabo, abrindo um novo mundo para a humanidade. Embora fictícia, a HQ Utopia previa, de forma codificada, os maiores desastres que a humanidade experimentará nesse novo mundo envolvendo saúde global e superpopulação. Por isso, essa publicação passa a ser alvo de uma sociedade secreta com ramificações em governos e empresas.

Quando os originais não publicados da HQ são descobertos por um grupo de jovens, passa a ser perseguidos por essa sociedade chamada “The Network”.

Mas porque o remake é azarado? Quando começamos a assistir ao episódio piloto, a primeira coisa que vemos é um alerta de que “Utopia é uma obra de ficção não baseada na pandemia real ou eventos relacionados”. Para descobrirmos a incrível similaridade da série com os acontecimentos atuais: Utopia é sobre uma conspiração que se desenrola em uma pandemia viral de uma gripe fatal, originada em morcegos no Peru e que rapidamente se espalha pelos EUA – o leitor lembrará rapidamente das teorias sobre morcegos chineses da província de Wuhan, suposto epicentro da atual pandemia global do coronavírus.

O estranhamento não é tanto pela coincidência entre ficção e realidade – mais uma vez a vida imita a arte? O problema é que todo o enredo conspiratório de Utopia parece ter saído de alguma usina de fake news de extrema-direita.

Em 2013, a Utopia britânica era uma série estilosa, inquietante e cativante, que ainda abria espaço para um sem número de “easter eggs” culturais.



Porém, dentro do vernáculo de 2020, o núcleo dramático dos fãs de HQs que luta contra uma conspiratória pandemia parece mais um grupo de crentes do QAnon. A série explora ideias que há sete anos eram divertidas e instigantes.  Mas que agora, tudo soa como se os teóricos da conspiração da extrema-direita estivessem sempre certos.

Certamente ao remake não poderia prever os eventos atuais, mas as ironias em cada episódio de Utopia se acumulam a tal ponto torna-se difícil aceitar a verdade em seus próprios termos.



Utopia parece inverter totalmente a chamada “suspensão da incredulidade”, pacto firmado entre espectador e roteiro em toda obra de ficção. Ao contrário, colocada em perspectiva diante dos acontecimentos de 2020, parece tudo uma brincadeira de mau gosto.

Por isso, o azar do remake de Utopia é revelar a genialidade propagandística da chamada direita-alternativa (alt-right): se em 2013 o argumento da série era progressista e até gnóstica (através do estado alterado de consciência da paranoia romper o véu da ilusão produzida por demiurgos governamentais e corporativos), a partir de 2016 (Brexit + Trump que resultou no “case” brasileiro de Bolsonaro) o dispositivo crítico das teorias conspiratórias foi abduzido pela extrema-direita para se transformar em contrapropaganda: a partir de agora, qualquer crítica que for feita às manipulações do consórcio Deep State/corporações globais será rotulado como “agenda extremista negacionista” que atinge a Ciência, a racionalidade e a democracia.

O gênio da direita-alternativa: com o apelo das teorias da conspiração, erodir o conceito de verdade.

A Série

“Onde está Utopia?... Onde está Jessica Hyde?”. Essas são as perguntas que transpassam todos os oito episódios da série. 

No início, havia apenas “Distopia”: uma HQ hipnótica e fantasmagórica que nasceu da mente claramente perturbada de um criador misterioso. Contava a história de uma jovem heroína e seu pai cientista, mantidos em cativeiro por um coelho humanoide chamado Sr. Coelho. A garota escapou enquanto o pai foi forçado a criar horríveis agentes biológicos para seu sequestrador. 

Porém se olhar atentamente os quadrinhos, os mais obstinados (ou paranoicos) poderão encontrar pistas e símbolos que de alguma forma previram uma série de pandemias, do Ebola à SARS. Alguns fãs mais malucos criam o boato de que haveria uma continuação não publicada, “Utopia”.



Quando o manuscrito de “Utopia” é descoberto numa casa caindo aos pedaços, a comunidade de quadrinhos enlouquece. A possibilidade de adquirir essa raridade em um leilão é aberta durante uma convenção de quadrinhos em Chicago, que atrai a atenção de um grupo de fóruns online formado por cinco jovens dedicados à “Distopia : Samantha (Jessica Rothe), uma zeladora ecologicamente ativista; Ian (Dan Byrd), um funcionário de escritório nerd; Becky (Ashleigh LaThrop), uma estudante de vinte e poucos anos que flerta muito com Ian; um teórico da conspiração chamado Wilson Wilson (Desmin Borges); e Grant (Javon Walton), que tem apenas 13 anos.  Cada um deles dá uma olhada rápida neste item cobiçado.

Há uma organização secreta e poderosa deseja colocar as mãos no livro e está disposta a matar todos os que sequer puseram os olhos nele.  Porque “Utopia” abriga pistas codificadas em suas páginas que prenunciam uma pandemia verdadeiramente devastadora que ainda está para iniciar. Dois assassinos, Rod (Michael B. Woods) e Arby (Christopher Denham), são enviados por essa organização secreta. Ambos são psicóticos e têm um incrível talento para torturar. 

Nada os detêm: “Cadê “Utopia? "Onde está Jessica Hyde?", perguntam insistentemente para cada infeliz que cruze o caminho. Dê uma resposta errada e será a última coisa que dirá...

E Jessica Hyde? Esse é o nome da menina protagonista nos quadrinhos. O grupo de fãs que também procura os originais descobre que ela é real - uma lutadora feroz, igualmente fria e obstinada, interpretada por Sasha Lane que também está em busca de Utopia. O manuscrito pode conter pistas sobre onde seu pai está. Uma vez que o manuscrito cai nas mãos de um dos membros do grupo de fãs, Jessica está em seu encalço.

Dessa forma, o grupo cai na toca do coelho, para descobrir da pior forma possível como o universo ficcional de Distopia/Utopia é real.

Kevin Christie (John Cusack) é um magnata e filantropo da indústria farmacêutica: politicamente correto, do tipo que vai trabalhar de bicicleta e pergunta para a grande família constituída por filhos adotados: “O que você fez hoje para ganhar seu lugar neste mundo lotado?” Um filantropo do tipo “plante-uma-árvore-salve-o-planeta”. Mas aos poucos vamos descobrindo que ele tem uma agenda secreta envolvendo a dominação global através de uma vacina que ele busca, manipulando um bem-intencionado virologista que trabalha na sua corporação.



Será Kevin o Sr. Coelho por trás das maquinações conspiratórias da HQ “Utopia”? 

Série é uma sala de espelhos

O tom geral da série é tragicômico, mas os sorrisos que abrimos ao longo dos episódios torna-se cada vez mais amarelo até ficar amargo – o vírus é propositalmente espalhado em escolas primárias públicas americanas, manifestantes saem às ruas pedindo respostas, um magnata filantropo promete a vacina milagrosa a partir de uma corporação que abusa e escraviza crianças... há ecos aqui dos memes propagandísticos do “Pizzagate” da campanha Trump de 2016 e das alucinações conspiratórias “QAnon” atuais e do negacionismo anti-vacina de extrema-direita.

O mal-estar em assistirmos à série Utopia não é tanto pelo seu suposto “oportunismo”. Afinal, 2020 já conta com o subgênero “COVID exploitation”: filmes como Corona Zombies, A Casa da Praia ou curtas como The Ultimate Quarantine Film ou 19 Covid Lane.

Mas a série faz o espectador se imaginar dentro de uma sala de espelhos que se refletem mutuamente a tal ponto que perdemos a distinção entre o que é reflexo e o que foi refletido: na medida em que a propaganda política alt-right se apropriou da crítica instigante de narrativas como a série Utopia de 2013, foi erodido não só a noção de Verdade como a do próprio objeto da crítica – passamos a partir de agora a negar in totum qualquer crítica que se possa fazer principalmente às corporações e suas maquinações geopolíticas pela hegemonia global. 

Trump foi derrotado pelo democrata Joe Biden e nas próximas eleições que virão, as grandes estrelas internacionais da extrema-direita certamente serão derrotadas. Porém, a manipulação semiótica da alt-right foi vitoriosa: asfixiou qualquer discurso crítico à ordem global ao mimetizá-lo.

Assim como a CIA criou, nos anos 1960, a etiqueta “teorias da conspiração” para ridicularizar e inviabilizar qualquer investigação crítica que procurasse furar a narrativa midiática-governamental-corporativa.


         

Ficha Técnica 

Título: Utopia

Criador: Gillian Flynn

Roteiro: Gillian Flynn

Elenco: John Cusak, Ashleig LaThrop, Dan Byrd, Dasmin Borges, Christopher Denham, Jessica Rothe, Javon Walton

Produção: Amazon Studios, Endemol Shine North America

Distribuição:  Amazon Prime Video

Ano: 2020

País: EUA

 

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