O ano é 1986. Cidade-satélite de Ceilândia. Uma violenta repressão policial em um baile funk resulta em dois jovens negros com sérias sequelas: um, na cadeira de rodas; e o outro, andando com ajuda de uma prótese. Baseado nesse fato real, o filme “Branco Sai, Preto Fica” (2014), do documentarista Adirley Queirós, constrói uma curiosa ficção científica (gênero rarefeito no cinema brasileiro) “hipo-utópica”: o futuro não existe nem mesmo como distopia, sendo uma mera projeção hiperbólica do presente dos protagonistas – um apartheid racial e social em volta de uma Brasília sitiada. De um futuro que parece o Brasil atual, vem um “agente terceirizado do Estado brasileiro” investigar os responsáveis pela tragédia de 1986. A mistura de gêneros documentário e sci-fi é proposital: mostrar como no “País do Futuro”, passado, presente e futuro se estendem num estranho eterno presente. Sem existir o amanhã.
O gênero ficção científica (FC) no cinema brasileiro vive de aparições e reaparições, ao contrário da Europa e EUA que desde o início aproximou o gênero do Fantástico em filmes como Viagem a Lua (1902) de Georges Méliès.
É paradoxal que o Brasil, sempre considerado o “país do futuro”, não tenha uma produção sistemática no cinema, e mesmo na literatura, de um gênero cujo objeto é o próprio futuro. Muitos alegam que a própria história brasileira (refletida no futurismo arquitetônico da sua capital, Brasília) em si já seria uma FC. Por isso, a baixa percepção pública sobre ciência e tecnologia e a valorização do realismo na produção cinematográfica.
Nem mesmo com a redescoberta do gênero fora do eixo EUA-Europa, a chamada “Ficção Científica do Sul” (filmes distópicos ou hipo-utópicos de países periféricos como México, Etiópia e África do Sul – clique aqui), chamou a atenção da cinematografia brasileira.
As poucas aparições da FC no Brasil surgem mescladas com outros gêneros como terror, policial e humor como Excitação (1977), Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (1978, pastiche de Star Wars) ou o insólito Por Incrível Que Pareça (1986) – um funcionário em uma usina nuclear sofre um acidente, é decapitado e, graças à contaminação radioativa, a cabeça sobrevive fora do corpo.
Mas há uma vertente da FC no qual a tecnologia futurista é usada para revisar a história brasileira – principalmente seus traumas e suas feridas abertas que ainda assombram o presente. O Homem das Estrelas (1971 – um alienígena viaja no tempo para revisitar diversos períodos da história brasileira) ou a animação Uma História de Amor e Fúria (2013) no qual um ser imortal (um índio tupinambá) viaja pela História do País em busca de sua amada enquanto revela a luta dos povos oprimidos.
O filme Branco Sai, Preto Fica (2014) é mais um exemplo dessa abordagem brasileira da FC. Não por acaso, filme de um documentarista: Adirley Queirós. O longa parte de um fato real ocorrido em 1986 na cidade-satélite de Brasília, Ceilândia. Um baile funk é interrompido por uma violenta invasão policial, sob os gritos que dão o título ao filme: “quem é branco sai, preto fica!”. Dois negros foram vitimados pela violência dos tiros e espancamentos: o músico Marquim, que ficou preso a uma cadeira de rodas para o resto da vida; e o dançarino de um grupo funk chamado Sartana (Claudio “Shockito” Irinaeus), que caminha com auxílio de próteses depois que teve uma perna amputada depois de pisoteado pela cavalaria da Polícia Militar.
Eles interpretam a si mesmos no filme, enquanto Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), um “agente terceirizado do Estado brasileiro” vindo do futuro encarregado em investigar os responsáveis daquele trágico episódio de 1986 – para que no futuro, em 2073, o Estado faça a indenização das vítimas.
Embora o filme padeça de ritmo narrativo, costurando mal os gêneros documentário e FC, podemos considerar Branco Sai, Preto Fica uma fita experimental com argumento de alto conceito: é um filme sobre prisões - dois protagonistas, presos a próteses e ao próprio corpo; prisioneiros num apartheid social nas cidades-satélites cujo Estado Totalitário as mantém apartada do centro de Poder, Brasília; e o próprio agente do futuro prisioneiro no tempo, com idas e vindas, sempre experimentando mal-estares físicos e mentais.
E a grande sacada do filme: o alvo da vingança das vítimas é Brasília, tanto a do presente quanto a do futuro. A futurista Brasília, a promessa de um futuro que jamais se realizou – talvez daí a quase ausência de FC no cinema brasileiro.
Dessa forma, o filme de Adirley Queiroz se une ao espírito da chamada “Ficção Científica do Sul”: filmes em que o futuro não existe, nem mesmo como distopia. São “hipo-utópicos”, “hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior”, isto é, refletem mais as mazelas do presente e as projetam de forma hiperbólica em futuros distantes ou próximos. Na verdade, o futuro não existe, ele é apenas uma tela paródica ou cínica do presente.
O Filme
Branco Sai, Preto Fica inicia de forma lenta, com longos planos combinando música (funk, soul music e até tecnobrega) e cenas de silêncio, nos quais são explorados os espaços em que moram os protagonistas em Ceilândia: a casa de Marquim com elevadores e rampas adaptadas à sua condição de cadeirante, enquanto ele passa as madrugadas em um estúdio de rádio amador, improvisando rimas enquanto coloca discos de black music em sua pick-up.
Uma sombra pálida dos seus tempos de juventude que relembra (pontuada por fotos reais do que era o baile funk em 1986) enquanto escolhe os discos que vai tocar.
Paralelo, acompanhamos também o cotidiano de Sartana, colecionando próteses mecânicas em sua casa e reparando outras próteses de conhecidos no bairro em sua pequena oficina.
Há uma profunda atmosfera de melancolia habilmente criada pela montagem, fotografia, a mixagem de som e a boa maneira como são explorados dois não-atores. Suas casas são cercadas por subúrbios de Brasília que se transformam em fantasmagóricas terras de ninguém, desertas e áridas.
O presente deles está em um futuro distópico: um Estado totalitário que promove o apartheid social e racial – Brasília está isolada e só pode ser acessada mediante passaportes especiais. Há toque diários de recolher e ruas parecem estar sempre desertas.
Partindo dessas prisões externas, os próprios protagonistas vivem suas prisões pessoais e metafóricas: imobilizados em suas próteses, também estão imobilizados socialmente e espacialmente, num regime de apartheid racial.
Sem saberem, estão sendo seguidos por agente vindo do futuro chamado Dimas. Um agente que chega em uma máquina do tempo em forma de contêiner de carga. Sua missão é descobrir os responsáveis pelos eventos de 1986 para o Estado indenizar as vítimas. Mas a sua missão não está nada fácil: o vai e vem no tempo é difícil, Dimas perde dinheiro, cartão de identidade, chega aos lugares sempre tonto e desorientado. Mas também no Brasil de 2073 as coisas não vão bem: um movimento político chamado “Vanguarda Cristã” chegou ao poder e, se Dimas não se apressar em mandar as informações necessárias, não terá pagamento e talvez nem consiga retornar.
Bomba Semiótica musical – alerta de spoilers à frente
A aparente languidez melancólica de Marquim e Sartana esconde um plano mirabolante para destruir o status quo brasileiro daquele “bem-estar” policial: ajudado por Sartana, pacientemente todas as noites Marquim constrói uma poderosa antena na sua estação de rádio improvisada. Junto com o DJ Jamaika, está compilando uma série de sons dos bailes de Ceilândia: batidas, ritmos, músicas tecnobregas (como a impagável “Dança do Jumento”), funk e soul music da Motown.
O plano secreto é descarregar através da antena um “big-boom”, uma autêntica bomba semiótica com o peso de todos os sons mixados como petardos eletromagnéticos que serão disparados contra os prédios do Poder em Brasília: Congresso Nacional, palácios, prédios dos ministérios etc.
Esse será outro problema para Dimas: a destruição da capital nacional será a destruição da própria linha do tempo que o conduz de volta para o seu futuro.
O filme é um curioso exercício de cinema, com explícitas homenagens ao clássico da viagem no tempo La Jetée (1962, clique aqui) e aos novos clássicos O Exterminado do Futuro (1984) e Repo Man (1984) de Alex Cox.
Uma discreta e silenciosa construção de memórias, nas quais passado, presente e futuro se misturam numa espécie de “presente estendido” – um país cronicamente inviável em que nada muda: a repressão policial de 1986, o presente/futuro distópico de Marquim e Sartana e o Brasil de 2073 de Dimas se confundem num mesmo estado de coisas.
O país de 2073 aparentemente foi dominado por uma política de Estado teocrática e Dimas vive numa condição precarizada (a viagem no tempo é incerta e insalubre) como agente terceirizado que vive de “missões” ocasionais nas quais o pagamento é incerto.
Como uma FC hipo-utópica, é pertinente o esforço de Queiroz em combinar o documental com o ficcional – se o futuro não existe, mas é uma mera projeção da situação brasileira atual, a linguagem documental torna-se a linguagem dominante. Enquanto os “plots” da viagem no tempo ou da construção da antena como arma eletromagnética são signos sci-fi para construir um híbrido de ficção científica paradoxalmente sem futuro.
Ficha Técnica |
Título: Branco Sai, Preto Fica |
Criador: Adirley Queirós |
Roteiro: Adirley Queiroz |
Elenco: Marquim do Tropa, Dilmar Durães, Gleide Firmino, DJ Jamaika, Shockito |
Produção: Cinco da Norte |
Distribuição: Vitrine Filmes |
Ano: 2014 |
País: Brasil |