domingo, novembro 01, 2020

Outra semana de guerra híbrida: fechamento da pauta midiática e do universo de locução

Depois do dinheiro na cueca, traficante do PCC sendo libertado pelo STF e jogador condenado por estupro contratado no futebol, o show não pode parar: mais uma semana de “crises” com o “Caso Nhonho”, o “Boi Bombeiro” ganhando status de “tese” nos telejornais e Bolsonaro fazendo piada homofóbica com o Guaraná Jesus no Maranhão. Cenas de uma recorrente guerra semiótica criptografada, que se intensifica na proximidade das eleições e aprofundamento da recessão econômica. Os chamados “fatos diversos” (outrora confinados nas colunas de “drops da política”) agora trancam a pauta como fossem temas relevantes para a opinião pública. Mas a eficácia desse fechamento noticioso não vem do nada: foram necessários anos de bombas semióticas para criar o “fechamento do universo da locução”, uma nova espécie de “novilíngua”. Afinal, é por meio das palavras que uma sociedade aceita ou rejeita os “novos normais”.

Nas semanas anteriores a pauta da grande mídia (que inacreditavelmente também agenda chamada mídia progressista) foi dominada pela soltura de André do Rap, o dinheiro na cueca do senador Chico Rodrigues e o caso do jogador Robinho, contratado pelo Santos mesmo com a condenação por estupro na justiça italiana. E que ainda foi esticada com a cobertura da épica busca do líder do PCC pela polícia de São Paulo, com as fotos de uma mão nos fundilhos do respeitável senador retirando o chumaço de grana e as bravatas bolsonárias de Robinho contra a Globo.

O fato do André do Rap ter fugido para o Paraguai só alimentou o imaginário da suposta célula terrorista na tríplice fronteira (obsessão geopolítica dos EUA desde os atentados de 2001) e os ataques de Robinho à Globo replica a também épica luta da grande mídia pela defesa da suposta “liberdade de imprensa”. 

Como o show nunca pode parar, nessa última semana novos acontecimentos ocuparam a pauta: na noite de quarta-feira uma postagem no Twitter do perfil do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, chamava de “Nhonho” o presidente da Câmara Rodrigo Maia (uma injustiça com o personagem de Édgar Vivar da série mexicana “Chaves”). Em revide, Maia postou que “não satisfeito em destruir o meio ambiente, agora resolveu destruir o próprio Governo”. 

Pânico entre os analistas políticos! Mal-estar entre os poderes da República! Crise! Enquanto Salles ensaia a desculpa de que “alguém” usou indevidamente sua conta... e já encontra um culpado: um ex-funcionário que trabalhou com ele. Enquanto o “passador de pano” titular da GloboNews, Valdo Cruz, testa hipóteses: quarta à noite na mesa de um restaurante... muitas pessoas na mesa... entre um cálice de vinho e outro, alguém pegou o celular do ministro e postou...

Grande mídia cria a retranca “Caso Nhoho” para o affair Salles-Maia.

Mas a imaginação jornalística criou a mais nova retranca: a “Tese do Boi Bombeiro”. A bravata do ministro (a ideia bizarra que os bois previnem incêndios porque comem o material orgânico inflamável) foi elevada ao status de “tese” pelos redatores que preparam os teleprompters para os apresentadores. Mais uma vez a pauta é ocupada com outra “polêmica”: ambientalistas e cientistas versus Governo.



Ao forçarem ambientalistas a “debaterem” mais essa bomba semiótica ao vivo na CNN e Globo News, apenas dão pertinência (ou verossimilhança) à “tese” tão bizarra quanto tautológica: é claro que se a floresta se transformar em pasto, não vai ter mais o que queimar...

E a semana fecha com Bolsonaro mais uma vez assumindo o personagem do “tiozão do churrasco”. Em sua campanha à reeleição (como Trump, desde o primeiro dia de governo), no Maranhão, Bolsonaro fez piada após beber um copo de Guaraná Jesus, bebida típica do estado. Ironizou a cor rosa da bebida logo depois de tomar os primeiros goles, fazendo piadas com as pessoas próximas enquanto sua equipe fazia uma transmissão ao vivo nas suas redes sociais: “Agora virei boiola, igual maranhense. Guaraná cor-de-rosa do Maranhão aí. Quem toma esse guaraná aqui vira maranhense”.



O governador Flávio Dino mordeu a isca jogada pelo capitão da reserva e fuzilou no Twitter: “Fez piada sem graça com nossa tradicional marca empresarial, o guaraná Jesus. E o mais grave: usou dinheiro público para propaganda política. Vai ser processado!”.

Fórmula cínica da ideologia

É claro que a mídia corporativa tratou tudo apenas como “piada homofóbica”, deixando para segundo plano a denúncia de uso de dinheiro público na campanha pela reeleição.

Mais tarde, na sua tradicional ferramenta de propaganda (ao lado do “cercadinho” do Palácio da Alvorada”) da live na Internet, apareceu vestido com a camisa do time de futebol maranhense Sampaio Correia, tomando largos goles de guaraná Jesus ladeado pela ministra Tereza Cristina, outro entusiasta da “tese” do boi bombeiro. 

Na sua live, o personagem do tiozão do churrasco viveu sua apoteose, feliz em ver um governador de esquerda mordendo a isca e a grande mídia pautando sua “piada homofóbica” – que em última instância só beneficia a estratégia de polarização da extrema-direita, centrada na agenda da “guerra cultural”, cujo alvo é a chamada “maioria silenciosa” – sobre esse conceito e seu benefício estratégico clique aqui.

O filósofo Slavoj Zizek criou a fórmula cínica da ideologia dos tempos atuais: “Eu sei muito bem o que estou fazendo, mas mesmo assim faço”, distinguindo-se de Karl Marx em O Capital: “Eles não sabem o que fazem, mas mesmo assim o fazem”.

Certamente Zizek soltaria gargalhadas ao ver os constrangidos comentaristas políticos de canais como Globo News ao serem obrigados a “analisar” esses eventos “relevantes” do cenário brasileiro. Fernando Gabeira era o que tentava demonstrar mais espécie: “até parece que algo mais grave não esteja ocorrendo no País... mas vamos lá...”, introduzia em seu comentário sobre a “piada homofóbica” do presidente no Maranhão.

Cinicamente continuam funcionando no automático, simulando alguma profundidade hermenêutica ou tentando encontrar seriedade e relevância em "caneladas", "balões de ensaio", dissonâncias, declarações e posteriores recuos ou desmentidos. Quem sabe, tentando dar alguma profundidade ou sofisticação como se as notícias viessem de algum gabinete de Estado britânico ou do parlamento suíço... 

É recorrente que a cada semana o Governo consiga fechar a pauta midiática a seu favor, seja com “caneladas” (General Pazuello tomando pito do presidente por dizer que o Ministério da Saúde vai comprar a “vachina” – voltaremos a essa expressão adiante), bravatas das over acts canastronas do tiozão do churrasco e as “crises” entre os poderes da Repúblicas fabricadas em redes sociais – o “Caso Nhonho” (é impressionante como o jornalismo corporativo atribui status de “caso”, “tese” ou “teoria” para qualquer linha de diálogo, ilação ou bravata na usina semanal de balões de ensaio em que se constitui Governo, ministérios e Legislativo) é o enésimo caso, desde os “casos” estimulados nos primeiros dias de governo em 2019 como o “Caso Golden Shower” no Carnaval e as críticas de Rodrigo Maia via redes sociais (sempre elas...) contra o presidente, disparando “o presidente precisa começar a governar”.


Eles comentam no modo automático


Fatos diversos na guerra criptografada

Esse é o modus operandi da chamada guerra semiótica criptografada: estratégia de controle das variáveis de um cenário por meio de um conjunto de informações dissonantes. Esse governo sabe que o seu calcanhar de Aquiles é a Economia (o seu compromisso firmado com a Banca em implementar as reformas neoliberais) cujos efeitos estruturais começam a despontar: disparo do dólar, recorde de desempregados, a volta do fantasma inflacionário, a fuga de investimentos externos no País etc.

Num passado recente, notícias como essas criadas pela estratégia de guerra semiótica criptografada iriam para os chamados “fait divers” (fatos diversos, rubrica sob a qual eram publicados fatos pitorescos, pequenos escândalos, que geralmente apareciam nas colunas de “drops de política”) que formavam apenas um pano de fundo para questões mais importantes.

Hoje, a guerra semiótica criptografada coloca os fatos diversos à frente enquanto a grande mídia fecha a pauta neles, invertendo causa e efeito para deixar a conjuntura de economia política como pano de fundo.

Quando se vê obrigada a noticiar esse pano de fundo, tergiversa: inflação? Fenômeno pontual da lei de oferta e procura... Desemprego? Ainda um efeito de causas antigas num cenário de retomada econômica... PIB em queda? Culpa da pandemia... e assim por diante.

A imposição dessa pauta criptografada é tão brutal que até repórteres são assombrados por atos falhos. Aqui e ali é possível flagrar repórteres que, quando tentam falar “vacina”, acabam escorregando na expressão “vachina”, contração reflexo da imposição do termo “vacina chinesa” pelas hostes bolsomínias e trumpistas – enquanto as outras vacinas recebem o nome formal (Oxford-AstraZeneca, p. ex.) a Sinovac-Butantã ganha a xenófoba designação “vacina chinesa”.


Bolsomínios nas redes preocupados com nossas imunidades ideológicas...

Fechamento da locução e “novilíngua”

Porém, esse fechamento da pauta não aparece ex nihilo, ou seja, do nada, mas devido a uma necessária condição pré-existente que organize e ordene esse processo: o fechamento do universo de locução – operacionalização dos mecanismos linguísticos que interfere na identificação entre razão e fato, verdade e verdade estabelecida. Um mecanismo que interfere nas próprias palavras, porque é por meio delas que somos induzidos a comparar ou aceitar algo.

Fechamento do universo de locução é um conceito do filósofo Herbert Marcuse, originalmente discutido no livro “Ideologia da Sociedade Industrial”, de 1964, no qual descreve a operação linguística no qual o conceito passa a ser confundido com sua própria função, criando situações ironicamente “surreais” onde significados opostos são condensados numa expressão. Lembrando em muitos aspectos a “novilíngua” do livro “1984” de George Orwell.

Por exemplo, conceitos abstratos ou universais (a priori, num sentido kantiano) como “Coragem”, “Respeito”, “Dignidade” e “Liberdade” são operacionalizados no interior da pauta fechada da grande mídia da apologia ao chamado “empreendedorismo” (noção elástica que vai do cara que trabalha por conta própria vendendo coxinha no ponto de ônibus a uma start up tecnológica) ou à guerra cultural dos movimentos identitários seja de raça ou gênero.

Coragem e respeito para enfrentar “preconceitos” e dignidade para ser respeitado por todos. A tensão dialética desses a priori numa sociedade de classes é diluída: como coragem, respeito etc. podem se concretizar numa conjuntura geral de medo e incerteza diante da perda das garantias sociais e trabalhistas que transcendem identidades, gêneros e raças?

Um exemplo concreto desse mecanismo de condensação é o cínico slogan "Viver é uma Entrega” de uma plataforma de entregas por aplicativo. O conceito de “entrega” (que envolve compaixão, empatia etc.) é operacionalizado à entrega de produtos por aplicativo. A tensão dialética entre um a priori e uma operação comercial que envolve justamente a ausência de empatia num capitalismo de plataforma que dá invisibilidade aos exploradores é eliminada através de uma paranomásia – emprego de palavras semelhantes na forma e no som.


Da mesma maneira “Liberdade” é operacionalizado à suposta liberdade do entregador aceitar ou não a solicitação no aplicativo (como se o pobre “empreendedor” tivesse outra alternativa). Operacionalização na qual “Liberdade” deixa de ser um a priori para virar um conceito formalizado.

Assim como “Democracia” é operacionalizado à função de votar e problemas decorrentes da crise econômica viram “desafios”.

Paranomásias começam a aparecer por todos os lados, como mecanismo de condensação para dar o efeito novilígua. Como o exemplo do Projeto VAE da Globo. “VAE”, acrônimo de Vamos Ativar o Empreendedorismo. O acrônimo é operacionalizado na exortação “VAI!!!” – “vai empreender!”... “Ativa!”... “Dá um boost!”, como também exorta um comercial de uma dessas corretoras de investimentos que pipocam na atual crise.  Conceitos operacionais como ativar, boost, reiniciar etc., viram a priori existenciais como condição para enfrentar “desafios”.

Entramos numa operação linguística inversa na qual os fatos diversos da pauta da guerra criptografada são elevados a conceitos a priorísticos. “Boi Bombeiro” (em si, uma condensação ao estilo novilíngua) vira uma “tese” ou “teoria” – ganha surreal status de hipótese hermenêutica... 

Ou a “canelada” da guerra das vacinas (será obrigatória ou não?) vira um “debate” para a grande mídia – “debate”, instrumento hermenêutico que envolve argumentações e contra-argumentações. Dessa forma, a banalidade cotidiana da guerra criptografada ganha ares de debate entre “teses” científicas na mesma linha de um debate hermenêutico-filosófico entre Gadamer e Habermas...

Quando a chamada mídia progressista replica a pauta orientada pela estratégia de guerra semiótica criptografada (do consórcio político-judicial-midiático) completa esse fechamento. Quanto ao fechamento do universo de locução, foi o resultado da guerra híbrida dos últimos dez anos. Um projeto que agora se realiza: é através das palavras que uma sociedade aceita ou rejeita qualquer coisa. Aceita ou rejeita os “novos normais”. 

 

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