Para a grande mídia brasileira as eleições dos EUA são “eletrizantes”, o sistema eleitoral daquele país “complexo” e as bravatas de Trump “polêmicas”. Na sua síndrome de vira-lata tenta salvaguardar o mito da América como a maior democracia do mundo, enquanto dão às costas para um evento histórico que está sendo transmitido ao vivo: assim como foi a queda do Muro de Berlim, vemos agora a derrocada da democracia liberal, transformada em pleito plebiscitário – seja qual for o resultado, a extrema-direita “alt-right” já venceu: como é do seu “modus operandi”, tensionou os pontos fracos de um sistema eleitoral elitista criado por proprietários de terras e de escravos. Implodiu o sistema por dentro ao criar polarizações baseadas na pauta identitária e de costumes, impedindo a opinião pública criar algum consenso a partir de um debate racional. Tal como o Coringa em “The Dark Knight” de Christopher Nolan, poderíamos considerar Trump o “agente do caos” que explora as fraquezas do sistema? Assim como o Coringa que explorou os pontos fracos da moralidade de Gotham City?
No programa “Em Pauta” da GloboNews, Jorge Pontual, correspondente do canal em Nova Iorque, brincou que quando cobriu a eleição presidencial que deu a vitória de Thomas Jefferson em 1801 (beneficiado por um elitista Colégio Eleitoral) disse para ele: “isso não vai dar certo... um dia vai aparecer um político demagogo que vai estragar tudo...”.
Nessa simples brincadeira com sua idade (o veterano jornalista fez aniversário em plena crise eleitoral em um país que se autoproclama “a maior democracia do Ocidente”) revelou toda a picardia da extrema-direita: explorar as pontos fracos de qualquer sistema, seja político, social ou tecnológico – no caso, um sistema eleitoral surgido da ordem escravocrata cujo macete é desestimular a todo custo o voto popular, para a deixar as decisões a um colegiado cujas origens estavam em proprietários de escravos.
Joe Biden e os Democratas foram abduzidos pelo próprio ardil de um sistema “democrático” criado pelos chamados “Pais Fundadores da Nação”: agora, exortam as pessoas a votarem a todo custo, nem que seja pelo correio em plena pandemia – o ponto cego desse bizarro sistema eleitoral que Trump e as teorias conspiratórias da Deep Web da extrema-direita estão desconstruindo.
Seguindo o velho paradigma dos institutos de pesquisa e opinião pública (a ideia de que o sistema democrático está fundamentado na construção do consenso refletido pelos números de votos), os Democratas acreditavam numa “onda azul” que expressaria uma contundente rejeição ao populismo nacionalista extremista de Trump. Mas tudo o que acompanhamos pela marcha das notícias é a lenta agonia da democracia liberal, transformada em pleito plebiscitário – uma sociedade tão profundamente polarizada que conseguiu expor todos os pontos fracos de um sistema eleitoral indireto.
Trump e a extrema-direita sabem que o sistema eleitoral dos EUA sempre elegeu presidentes com baixo comparecimento de eleitores (o voto não é obrigatório e é propositalmente desestimulante) e, por isso mesmo, esses “fios soltos” do sistema nunca ficavam expostos à mídia. Com a estratégia de polarização transformando o debate político em pleito plebiscitário (e o apelo inédito dos democratas para que o povo vote de qualquer forma num cenário de pandemia), Trump atinge em cheio o sistema, numa tática deliberada de criar descrença e caos.
Manter as aparências
A grande mídia brasileira diligentemente tenta salvar as aparências da América como modelo de democracia para o mundo – enquanto falam que a ordem eleitoral daquele país é “complexa”, analistas se descabelam acusando como Trump “insulta a Democracia” e as “sólidas instituições” da República. Mas tudo o que Trump faz é tensionar os limites das fraquezas e contradições de qualquer sistema.
Empurrar o processo eleitoral para a judicialização (para definitivamente substituir a vontade popular pela elitista e conservadora Corte Suprema) nada mais fará do que explicitar um modelo que desde os séculos XVIII-XIX afunila o poder em proprietários de terras e escravos. É o modus operandi da extrema-direita: compreender estrategicamente todas as contradições e fraquezas de um sistema para parasitá-lo e implodi-lo.
Certamente a extrema-direita deve ter se inspirado nas linhas de diálogo de Batman: o Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan:
Monólogo do Coringa para Harvey Dent: Ninguém se apavora quando tudo corre de acordo com o plano. Mesmo que o plano seja horripilante. Se amanhã eu disser à imprensa que um arruaceiro vai levar tiro... ou um caminhão com soldados vai explodir... ninguém entra em pânico... porque tudo faz parte do plano. Mas quando eu digo que um prefeitinho qualquer vai morrer... aí todo mundo perde a cabeça. Se você introduz um pouco de anarquia... perturba a ordem vigente... tudo se torna um caos. Eu sou um agente do caos. E sabe qual a chave para o caos? … o medo.
Trump é o agente do caos? Seja qual for o resultado (que promete se arrastar no tapetão da judicialização) a democracia liberal baseada no consenso está ferida de morte pela exploração de outro ponto fraco nessa ordem: a exploração da maioria silenciosa através da polarização das questões identitárias e culturais.
A maioria silenciosa
O que é a “maioria silenciosa”? Os estudos de pesquisadores como o alemão Jürgen Habermas (“A Mudança Estrutural da Esfera Pública”) e do norte-americano Richard Sennet (“O Declínio do Homem Público”) apontam como as contradições da sociedade capitalista levaram a fragmentação e destruição do ideal da formação de uma esfera pública racional.
Em consequência, a independência da opinião pública e a legitimidade das instituições que serviram para sua formação foram desgastadas. Esfera cultural, artes, a imprensa, a indústria do entretenimento de massas e todos os processos de comercialização e racionalização têm cada vez se voltado a um cidadão concebido como consumidor individual, ao mesmo tempo em que os contextos mediadores de recepção e do discurso racional são eliminados - particularmente na era da convergência tecnológica, mediações racionais como partidos políticos, sindicatos e todas de mediações políticas ou sociais são substituídas por redes sociais, plataformas tecnológicas invisíveis e a opinião pública moldada pelos algoritmos dos dispositivos de busca e plataformas de entretenimento.
Disso tudo resulta no surgimento de uma maioria silenciosa: a maior parcela da opinião pública refratária a qualquer consenso baseado em argumentos racionais. Habermas chamou isso de “refeudalização da esfera pública”. Sennett falava em “absorção da esfera pública pela esfera privada”. Não por considerar essa maioria “ignorante”, mas por mera estratégia reativa de sobrevivência: reduzir as questões públicas às categorias do cotidiano privado: o emocional, o subjetivo, o familiar, porque a dimensão pública torna-se para maioria algo opaco, incognoscível.
Habermas e Sennett |
Por décadas os dispositivos de sondagens dos institutos de pesquisas criaram a ilusão do consenso numa esfera pública manipulada pela engenharia de relações públicas. Por exemplo, o sociólogo francês Pierre Bordieu dizia que “a opinião pública não existe” – os institutos partem do pressuposto que qualquer um sempre tenha uma opinião a dar. Confundem “opinião” com “percepção” ou “sensação”, sempre de um ponto de vista privado - "A Opinião Pública Não Existe" - clique aqui.
Na maior parte do tempo, as opiniões são compostas por um conjunto racionalizações, clichês ou frases prontas facilmente disponíveis e sempre repetidas pela estratégia de agenda setting, facilitada pelo contexto de monopólio midiático.
Ainda mais no contexto atual da pós-verdade: um grande arco que vai do menosprezo por fatos objetivos até a ignorância racional e o efeito “Dunnig-Kruger” – indivíduos acreditam saber mais do que especialistas por estarem abastecidos por clichês, sofismas e frases prontas transmitidas pela grande mídia e redes sociais.
A depreciação da política é a consequência direta desse declínio descrito por Habermas e Sennett.
O gênio da direita alternativa
Portanto, o gênio da chamada extrema-direita alternativa (alt-right) é implodir de forma oportunista esse sistema: parasitar a maioria silenciosa com uma agenda polarizada formada por uma pauta identitária, cultural e de costumes que atinge em cheio esse substrato conservador da vida cotidiana privada – mentalidades e sensibilidades que historicamente sempre foram muito mais lentas do que os acontecimentos e transformações da sociedade como um todo.
Não é à toda que movimentos de uma esquerda reativa como o #EleNão no Brasil e #BlackLivesMatter nos EUA só transformaram as discussões políticas em gigantescos plebiscitos – no caso brasileiro, turbinaram a eleição de Bolsonaro.
O populismo nacionalista de extrema-direita se alimenta dessa atmosfera de medo (ameaça ao intrínseco conservadorismo da esfera privada), polarização (irracionalidade de qualquer debate político que se transforma em Fla X Flu) e caos - ações reativas de ambas as partes que conduzem a inevitáveis judicializações: o ato final da elitização das decisões políticas.
Enquanto isso, a grande mídia faz um jogo ambíguo: alimenta a atmosfera plebiscitária dando destaque às divisões: misóginos versus feministas; contra versus pró-aborto; pró e contra a legalização da maconha; racistas versus anti-racistas e assim por diante. Onde houver manifestações de qualquer um dos lados, merecerá o enquadramento das câmeras. Se acontecer choque direto nas ruas, melhor ainda.
E do outro, acusa Trump de fabricar fake news – as grandes redes de TV nos EUA como NBC, ABS, CBS, CNN derrubaram a transmissão que faziam ao vivo do pronunciamento presidencial, pouco depois que Trump começou a afirmar que havia fraudes no pleito, sem apresentar provas.
Tentando salvar as aparências do grande mito da América (tão estimado pela síndrome de vira-lata da elite brasileira), as redes de TV daqui como a Globo, por exemplo, descrevem as eleições nos EUA como “eletrizantes”, o sistema eleitoral de lá como “complexo” e as bravatas de Trump como “polêmicas”...
Minimizam um acontecimento histórico que acompanhamos ao vivo: o desmoronamento da modelo democrático liberal e da possibilidade da construção de qualquer consenso mediado por um debate racional.
Mas o leitor poderia protestar contra esse humilde blogueiro: mas as causas identitárias (de gênero, étnicas, raciais etc.) não são legítimas e devem ocupar o espaço de debates na sociedade?
Claro que sim, desde que sejam politizadas e economicizadas, ou seja, sejam associadas à espinha dorsal da luta de classes e às grandes questões de economia política que envolvem a totalidade da sociedade. Elevar o debate a categorias racionais e universais.
Caso contrário, serão reduzidas a palavras vazias ou genéricas (tão genéricas que viram pautas de matérias televisivas) como “respeito”, “dignidade”, “tolerância” e outras dessas palavrinhas mágicas que viram estampas em silk screen de camisetas dos ativistas de classe média.