Na atual crise global da pandemia COVID-19, nunca o horror cósmico do escritor de terror, fantástico e ficção-científica HP Lovecraft (1890-1937) esteve tão atual: a percepção de que estamos num universo sem deuses completamente indiferente à existência humana.
O horror biológico parece se impor diante da realidade perturbadora em estarmos à mercê de um ser parasita, um vírus hostil que pode nos colocar uns contra os outros onde o meio de sobrevivência é o isolamento e o sacrifício.
Sabemos que o cinema e o audiovisual são muito mais do que produtos de entretenimento: são sismógrafos da História, documentos simbólicos que carregam consigo ideologias, mentalidades e sensibilidades do período em que foi produzido.
E as produções cinematográficas desse ano refletem direta e indiretamente esse universo indiferente lovecraftiano que a pandemia suscita. Do subgênero direto “Covid Exploitation” como Corona Zombiesou o curta The Ultimate Quarantine Film – 10 Covid Lane até a abordagem indireta como Sea Fever, Relic e, agora, A Casa da Praia.
A Casa da praia (The Beach House, 2020) é um terror indie com evidentes ecos de “The Color Out of Space”, de HP Lovecraft e “O Nevoeiro”, de Stephen King. Na estreia do diretor Jeffrey Brown, a narrativa de “queima lenta” (slow burn) coloca dois jovens sob a ameaça misteriosa de algo cruel e violenta que aparentemente se espalha pelo ar.
O que poderia acontecer num final de semana de verão em uma casa à beira do mar diante de uma praia idílica? O que uma linda paisagem com um oceano que se perde no horizonte sob o céu azul pode ter de tão ameaçador? O problema é que essas paisagens não existem apenas para serem fotografadas para se transformarem em memórias de momentos felizes. Elas fazem parte de um universo indiferente à nossa existência, uma realidade biológica mutante e metamórfica. E seus secretos movimentos evolutivos podem nos apagar da face desse planeta.
A Casa da Praia surpreende por ser um horror sem “plot twists”, reviravoltas tão em moda em filmes e séries atuais, ou efeitos de computação gráfica. Com eficientes efeitos práticos a narrativa é até linear é previsível. Mas a sua conclusão é impactante por ser uma síntese da sensibilidade atual diante da crise pandêmica: o planeta e o próprio universo são indiferentes à nossa presença.
O Filme
Uma estudante de Biologia chamada Emily (Liana Liberato) e seu namorado da faculdade Randall (Noah Le Gros) vão passar um final de semana em uma casa à beira da praia de seu pai. Suas expectativas é a de passar dias românticos sob o sol para solucionar uma encruzilhada clássica para jovens casais que pensam coisas diferente da vida: ela pretende continuar seus estudos na pós-graduação e se tornar cientista; enquanto ele quer abandonar a faculdade e partir para coisas mais práticas.
Como poderão se manter juntos se querem trilhar caminhos tão diferentes? Passar alguns dias à sós pode ser a solução para tentarem se acertar. Acontece que o pai de Randall permitiu aos seus amigos Mitch (Jake Weber) e Jane (Maryann Nagel) usar a casa naquele final de semana.
Pegos de surpresa, Emily e Randall aceitam relutantes compartilhar a casa com o casal, geracionalmente bem diferente: Jane está com problemas de saúde e toma muitos remédios e Mitch é um professor de meia idade.
Os casais acabam se entrosando, discutindo a vida em um jantar regado a algumas garrafas de vinho. Que acabam no meio da noite. Mas Randall tem algo melhor que trouxe com ele: maconha comestível, o que torna o jantar uma diversão alucinógena.
Até aqui, o diretor tem nas mãos um material de filme de terror bem comum – a sugestão óbvia de que o casal mais velho será o vilão do filme com algum plano sinistro contra os jovens. Mas tudo é subvertido nas cenas de diversão alucinógena: as coisas parecem seguir um caminho divertido e solto.
Porém, o estranho está lá fora. Há uma névoa no ar que parece vir do mar e se movendo em direção àquela casa. A névoa tem uma particularidade: espalha partículas de luz que adere na vegetação ao redor.
O problema é que as viagens alucinógenas começam a virar bad trips, muito em virtude da substância misteriosa que o nevoeiro carrega. Algo terrível começa a acontecer, quando alguém sentencia: “Isso não é um nevoeiro!”.
A concentração da narrativa nos quatro personagens e os efeitos práticos nos indicam que estamos numa produção indie de baixo orçamento. Tudo é minimalista, porém eficiente. A sequência que envolve o pé de Emily, depois de pisar em estranhos organismos parecendo água viva trazidos pelo mar, é impactante. Ou ainda como uma simples escadaria que leva à praia (mostrada no pôster promocional do filme) pode transmitir todo o conceito de terror que é o argumento central do filme.
Nesse ponto as coisas começam a correr acelerado ladeira abaixo enquanto a névoa se torna estranhamente colorida, envolvendo tudo. Todos os canais de TV estão fora do ar, transmitindo uma mensagem de emergência padrão. Parece que o fenômeno é de natureza pandêmica, global.
E pior, respirar por muito tempo aquela névoa leva à inconsciência e terríveis e ameaçadora mutações biológicas na vítima.
Como dissemos A Casa da Praia tem uma narrativa linear, sem viradas ou surpresas, com tudo caminhando inexoravelmente para o pior. Não espere happy end, mas a quintessência do horror biológico – somos apenas um pontinho dentro na linha do tempo da evolução do planeta e do Universo. É uma forma de horror que adora brincar com esse medo universal de que o pequeno “blip” humano pode ser apagado. Simplesmente de uma forma indiferente diante de mutações metamórficas muito mais eficientes do que nós.
Esse horror lovecraftiano lida com a ideia gnóstica de que não pertencemos a esse mundo – somos exilados no interior desse universo maligno na sua indiferença.
A Casa da Praia explora essa desconfiança gnóstica de que a autodescrição que criamos para nós mesmos (estamos no topo evolutivo da cadeia alimentar graças a nossa racionalidade) é um simples autoengano: nossa dor e sofrimento não tem nenhum sentido moral, evolutivo como aprendizado ou propósito divino como castigo ou culpa.
A pandemia COVID-19 reforça essa desconfiança. E filmes como A Casa da Praia são a câmara de eco para repercutir esse nosso horror mais profundo.
Ficha Técnica |
Título: A Casa da Praia |
Diretor: Jeffrey A. Brown |
Roteiro: Jeffrey A. Brown |
Elenco: Liana Liberato, Hoah Le Gros, Jake Weber, Maryann Nagel |
Produção: Low Spark Films |
Distribuição: Uncorked Productions |
Ano: 2020 |
País: EUA |