Quem assistiu
ao filme “Matrix” deve lembrar de como o protagonista Neo (Keanu Reeves)
aprendia lutas marciais pelo simples download de programas em sua mente. Pois
essa realidade sci-fi está próxima, pelo menos para o bilionário tecnológico
sul-africano Elon Musk. Depois de anunciar o envio de colonos a Marte com sua
empresa SpaceX, agora através da sua nova empresa, a Neuralink, o empresário
pretende fazer um “upgrade” na mente humana: criar a interface bio-eletrônica
definitiva entre mente e a “nuvem” de inteligência artificial, criando o que
chama de “telepatia consensual”. Por que? Para Musk, as máquinas nos ameaçarão
no futuro, tornando a humanidade irrelevante. Por isso, devemos impulsionar
nossas habilidades cognitivas, nos livrando da linguagem (signos, palavras,
símbolos etc.) ao nos conectar diretamente nas “nuvens de bites”. Musk fez esse
anúncio numa live no Youtube nessa última sexta-feira em uma demonstração com três porcos. Para quê essa chicana pseudocientífica? Depois de querer privatizar
Marte, agora Musk pretende privatizar a mente e a linguagem, atraindo a atenção
de gigantes como Facebook, já interessada na Neuralink.
Três porcos estiveram na demonstração transmitida pela live no Youtube em 28/08. Um sem nada; outro que já havia tido o implante; e mais uma porca, chamada Gertrude, com o aparelho há dois meses. Enquanto ela se movia, eram transmitidos sinais de uma área do cérebro conectada ao focinho. Quando farejava algo, era possível ver uma intensa movimentação no gráfico.
"É como ter uma [pulseira inteligente] Fitbit no seu crânio, com pequeninos fios conectados ao cérebro", disse Musk. Esses fios, superfinos e flexíveis, são cobertos de eletrodos que captam a atividade cerebral. "Neurônios são como uma fiação. E você precisa de algo elétrico para resolver um problema elétrico."
Como não
poderia deixar de ser, o bilionário tecnológico Elon Musk (dono de empresas
como Tesla Motors, Solar City e SpaceX, revolucionando a tecnologia de veículos
elétricos, energia solar e construção de foguetes e prometendo enviar turistas
para Marte) apresentou na live mais um projeto com ares de epifania de
ficção científica: planos para desenvolver interface cérebro-máquina para
impulsionar a habilidade cognitiva humana.
Um plano
realizado por mais uma empresa ligada a Musk: a Neuralink, empresa de pesquisa
médica da Califórnia.
As máquinas nos ameaçam
E por que? Para
Musk, os seres humanos estão em perigo – em breve poderão ser ultrapassados
pela inteligência artificial (IA), sob o risco de se tornarem irrelevantes.
Escravizados pelas máquinas como no filme Matrix?
O appeal pelo imaginário sci-fi é recorrente em Elon Musk (em
outra oportunidade Musk já afirmara que havia grande possibilidade de vivermos
prisioneiros em uma gigantesca simulação computacional – clique aqui) – o anúncio do projeto Neuralink de criar
uma simbiose homem-máquina coincidiu com o dia do lançamento do filme Ghost in Shell (no Brasil, A Vigilante do Amanhã), baseado num mangá
e anime japonês no qual o cérebro humano se funde facilmente a computadores.
Neuralink e a Matrix: interface bio-eletrônica é libertação ou nova dominação? |
Para Musk, se
não podemos vencer as máquinas, é melhor nos unirmos a elas. Para ele “as máquinas se comunicam em um trilhão de
bits por segundo, enquanto os seres humanos se comunicam, principalmente ao digitar
em um smartphone, a imitados 10 bits por segundo. Uma interface de banda
larga do cérebro com os computadores vai ser algo que ajudará a alcançar uma
simbiose entre o ser humano e inteligência artificial, resolvendo problemas de
controle e utilização”.
Musk acredita
que há uma limitação humana de natureza linguística: "Há um monte de
conceitos em sua cabeça que então o seu cérebro precisa tentar comprimir nessa
incrível baixa taxa de dados que nós chamamos de discurso ou escrita. Se você
tem duas interfaces cerebrais, você poderia realmente realizar uma comunicação
conceitual descompactada direta com outra pessoa." – clique aqui.
Telepatia consensual
Ele chama isso de “telepatia
consensual”: uma comunicação direta entre humanos, sem a necessidade de signos
– palavras, símbolos, imagens etc. O pensamento na sua forma pura, a
informação.
Por isso, seria
urgente a mente humana evoluir para ser capaz de acessar rapidamente as
informações e bater a inteligência artificial.
O objetivo
principal da Neuralink é transformar a inteligência artificial em nuvem numa
extensão do cérebro humano, por meio de implantes de pequenos elétrodos no
cérebro que poderiam fazer o download dos nossos pensamentos. “Faremos uma
fusão mais próxima entre a inteligência biológica e a inteligência artificial.
Trata-se de impulsionar a velocidade de conexão entre o cérebro e a versão
digital de nós mesmos”, afirmou confiante para o público da World Government
Summit em Dubai.
Discurso de Musk é sempre
emergencial: a colonização de Marte através dos foguetes da sua SpaceX é uma
questão de sobrevivência diante da possibilidade da catástrofe ambiental e
guerra nuclear. E agora a Neuralink como arma de sobrevivência diante da ameaça
da Inteligência Artificial.
Muitos
qualificam o jovem empreendedor Elon Musk como alguma coisa entre a fraude e
máquina de gastar dinheiro, embolsando muitas verbas públicas enquanto faz
intrincadas manobras societárias com suas diversas empresas. Uma espécie de
Eike Batista sul-africano –
clique aqui.
Despolitização e retrocesso científico
Mas ele conhece
as tênues fronteiras entre o mundo das finanças e o midiático. Musk sabe que
seu discurso em eventos como esse em Dubai enche os olhos do público e das
grandes empresas de tecnologias de informação como Google e Facebook – esta,
aliás, já se interessou pelo projeto da Neuralink.
Em primeiro
lugar o discurso de Musk despolitiza a questão tecnológica: mas afinal, quem é
o dono do hardware que mantém essa inteligência artificial em nuvem com a qual
a mente humana fará interface? Conectar a intimidade das nossas mentes a nuvens
de bites controladas por interesses corporativos?
E segundo,
opera uma simplificação (para não dizer retrocesso científico) que vai na
contramão de todas os avanços filosóficos e científicos do século XX –
fenomenologia, linguística, sociolinguística, psicolinguística, construtivismo
e semiótica.
Claro que tudo
isso é escudado como um álibi em supostos avanços médicos no campo da
neurologia: benefícios a pacientes que tiveram lesão cerebral por causa de
tumores, derrames ou outras enfermidades. Mas, como sempre, os verdadeiros
interesses sempre estão em outra cena.
Rebaixamento do conceito de “inteligência”
Há muito tempo
as pesquisas em IA abandonaram o projeto de máquinas e computadores tentarem
emular a inteligência humana. Porque simplesmente não conseguiram digitalizar
as complexas operações linguísticas humanas baseadas em paradoxos, contradições
e oposições que linhas de programação algorítmicas não conseguem simular.
A esses tempos
devemos os mundos distópicos no cinema nos quais robôs, autômatos, replicantes
ou computadores se voltam contra seus criadores como em Geração Proteus (Demon
Seed, 1977), Blade Runner (1982) até chegar em Matrix (1999).
No século XXI a
noção de “inteligência” para a IA tornou-se mais flexível: algoritmos e
aplicativos rebaixam o conceito de inteligência para nos fazer acreditar que
aplicativos como Waze ou Google Maps são formas de inteligência reais.
Cientista
computacional Jaron lanier chama isso de “religião da auto-abdicação humana”,
na qual computadores se humanizam, enquanto os humanos se tornam “processadores
de informação”.
Fica claro no
discurso de Musk que inteligência é reduzida à velocidade de processamento de
informações, restrita pela linguagem humana (os signos). Por isso, o suposto
temor do empresário sul-africano das máquinas subjugarem a humanidade não passa
de uma paródia que esconde a verdadeira dominação – a das gigantescas empresas
de tecnologias da informação que controlariam não apenas o hardware mas o
próprio tráfego das informações nessa “telepatia consensual”.
Poderíamos até
aprender inglês ou alguma luta marcial (como Neo no filme Matrix) num simples
comando de download para o nosso cérebro. Porém, rebaixaríamos o conceito de
“inteligência” a um “download” – velocidade de processamento.
E para quê
rebaixar o conceito de inteligência à velocidade, processamento e performance?
(a) alcançar o sonho mercadológico de toda empresa de fazer o consumidor se
identificar com seu produto. Até aqui a Publicidade vem conseguido isso com
firulas de retórica e armadilhas psíquicas e subliminares. Mas Musk propõe a a
solução final: a identificação íntima através da interface bio-eletrônica.
(b) Nova e
revolucionária forma de controle e engenharia social no qual os endereços IP e
dados de conexão se convertem na própria mente do usuário.
O delírio semiótico de Elon Musk
Mas igualmente
problemática (mas politicamente reveladora) é a concepção de que a linguagem
humana é falha porque tenta comprimir a “incrível taxa de dados” do pensamento
humano, nos deixando limitados e vulneráveis às máquinas.
Para a delirante
semiótica de Musk, os signos da linguagem humana seriam como invólucros aonde
são socados e comprimidos nossos pensamentos – muita coisa acabaria ficando de
fora, tornando-nos lentos e incompletos. Ao contrário, as máquinas seriam
livres, no seu fluxo algorítmico.
Para um público leigo (ou para aqueles sedentos
por álibis para os negócios como no evento de Dubai) pode parecer um discurso
lógico, mas cientificamente non sense.
Desde a velha linguística de Ferdinand Saussure, a linguagem não é mais vista
assim como algo estático – a linguagem é dinâmica através da dialética Língua
(a estrutura)/Fala (atualizações dos significados por gírias, jargões,
idioletos, idiomas ou dialetos).
Além disso, a
visão do signo como uma caixa vazia na qual são socados significados
(“pensamentos”) é irracional – o pensamento em si já é linguagem. Em outras
palavras: o pensamento já é a própria “caixa” do signo. O signo é uma
construção coletiva simultaneamente de falas individuais e coletivas – daí a
dimensão “sócio” ou “psico” da linguística. Para não dizer, a dimensão política
da linguagem.
Essa “chicana”
pseudocientífica de Elon Musk é politicamente reveladora e, por isso,
compreende-se porque esse jovem bilionário tecnológico está em um evento com
tantos “Global Players” dos negócios internacionais – assim como Musk pretende
privatizar Marte colocando no planeta vermelho turistas e colonos a preços
módicos, ele agora também quer privatizar a mente e a linguagem.
De construção
coletiva, as “caixas” públicas dos signos seriam substituídas por “caixas”
linguísticas fornecidas pelos grandes proprietários das “nuvens de
inteligência” como Google e Facebook – repito, desde já interessada nos
projetos Neuralink.
Se a construção
da linguagem é consensual, o que Musk nos oferece agora é o álibi da “telepatia
consensual” para esconder o novo “consenso” que doravante será imposto pelas
gigantes empresas tecnológicas.
Por isso, Elon
Musk é sempre uma promessa de frissons nas plateias de grandes encontros e
jantares de negócios pelo mundo afora. O jovem empresário sul-africano
tornou-se o garoto-propaganda das políticas neoliberais que se espalham a
fórceps por todo o planeta.
Musk consegue
dourar a pílula com muita epifania de ficção científica e senso de oportunismo.
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