quarta-feira, agosto 05, 2020

Com Felipe Neto Fake News vira bomba semiótica


Combate às fake news voltou à pauta da grande mídia depois de anos de silêncio desde o hipe de 2016 e a omissão durante a campanha presidencial de 2018. Volta à pauta com um garoto propaganda: o youtuber Felipe Neto, a versão digital de Luciano Huck em seu momento mercadológico de reposicionamento de discurso, fazendo “mea culpas” e dizendo que “leu muito” e mudou de opinião. Com o influenciador digital, convidado por Rodrigo Maia para debater o tema no Congresso, a grande mídia volta a repercutir o combate às fake news como mais uma bomba semiótica: desviar o foco da atenção do respeitável público para os malvados favoritos de sempre – o “gabinete do ódio” do clã Bolsonaro e as buchas de canhão do “Brasil profundo”. Desviar do quê? Da embaraçosa questão de quem financia as caras táticas digitais e que o Projeto de Lei das Fake News faz parte de um movimento em pinça: hoje, enquadra os perfis “fascistas”. Amanhã, será a mídia alternativa de oposição. Tudo dentro da legalidade. Como sempre, “em defesa da Democracia”.

É previsível que num País cujo monopólio midiático determina os destinos políticos e a agenda pública, a cada temporada surge algum personagem campeão de audiência para arriscar a sorte no cenário político do momento.

Por exemplo, foi assim com o apresentador e dono do SBT Sílvio Santos – passou a cogitar uma vida pública quando um problema nas cordas vocais pôs em risco sua vida de apresentador. A apenas quinze dias da primeira eleição presidencial pós-ditadura militar em 1989, Sílvio Santos já estava entre os favoritos. Uma rasteira jurídica vinda do comitê da campanha de Collor o retirou do páreo com a descoberta de irregularidades no partido de Sílvio, confirmadas pelo TSE.

Entre idas e vindas, aos poucos outro apresentador, Luciano Huck, da Globo, demonstra que almeja horizontes muito além do programa Caldeirão do Huck: ou nos boatos como possível candidato à presidência, ou dando pitacos sobre política, economia e educação na grande mídia e redes sociais ou à frente do seu Instituto Criar.

O atual presidente Bolsonaro e o Governador de São Paulo, João Doria Jr, são produtos midiáticos diretos: o primeiro, praticamente um cosplay do meme “Thug Life” turbinado por programas de TV como CQC e Super Pop, além do que se tornou principal fonte de informação do brasileiro, o WhatsApp; e o segundo, banqueteiro da elite de novos ricos empresariais rentistas cuja imagem construída em programas de TV como Show Business e O Aprendiz criou o herói meritocrático e da suposta excelência empreendedora paulista.

E agora, entra em cena mais um campeão de audiência, dessa vez produto dos novos monopólios das grandes empresas de tecnologia que ameaçam o monopólio das mídias de massas: o youtuber Felipe Neto.


É o personagem midiático-político do momento, com a trajetória recente pela mídia tradicional como o Roda Viva da TV Cultura, o convite do presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, para debater como combater as fake news e, o ápice, uma entrevista especial ao vivo na GloboNews.

Felipe Neto: o “case” perfeito

Depois que o “Guerreiro de Bolsonaro” (um tal de “Cavallieri”) gritou nos alto-falantes, na frente da casa do influenciador digital, de que ele é “Pilantra e pedófilo disfarçado de apresentador de crianças” e aparecerem montagens nas redes sociais com mensagens que o acusam de “apologia à pedofilia”, Felipe Neto tornou-se o “case” perfeito para fundamentar o Projeto de Lei das Fake News – entre outras coisas, o texto estabelece o recadastramento de chips de celulares pré-pagos, a proibição de disparos em massa de mensagens e o uso de robôs não identificados para postar comentários em redes sociais. Sem que fique claro para plataformas e usuários como isso será feito. O projeto fala em “entidade de autorregulação” destes serviços...



Algo tão eficiente quanto querer parar um carro segurando o ponteiro do velocímetro – mas, sabemos, que a questão principal está em outra cena: o escopo é mapear, monitorar e censurar a mídia alternativa e, por conseguinte, inviabilizar qualquer possibilidade de discurso de oposição – voltaremos a esse ponto adiante.

Felipe Neto é mais um produto midiático, dessa vez de um novo monopólio (redes sociais se tornaram a fonte de informação mais barata para o brasileiro), que se torna pivô do cenário político.  Com mais de 35 milhões de seguidores, depois de em 2016 ter dito que “a Dilma escarrou na sociedade brasileira” (clique aqui) e engrossar a lama psíquica do Brasil Profundo que agora bate à porta da sua casa, põe em ação uma estratégia mercadológica de reposicionamento de discurso.

Fez mea  culpa admitindo que 2016 foi um “golpe político” e na GloboNews passou uma sabão na própria emissora por ter convidado o negacionista Osmar Terra para um debate. Admitamos: um reposicionamento confortável – a não ser o núcleo duro alt-right, quem consegue ser a favor de Bolsonaro? 

Esperto, Felipe Neto utiliza a velha tática do kit semiótico de manipulação: a tática do Sim!: quando o emissor elenca uma série de questões que necessariamente resultarão em resposta positiva do público, compondo slogans ou temas de fácil adesão. Quem pode ser contra a Ciência? Quem pode ser a favor do negacionismo? Quem pode ser a favor do discurso estrategicamente caótico de Bolsonaro?

É o modus operandi do youtuber como declarou em entrevista a Danilo Gentille no “The Noite” do SBT, em 2016. “Você não tem medo de que o Felipe Neto do futuro veja o que você está fazendo agora?, perguntou o apresentador. “Eu vou viver o presente... faço hoje o que eu acho certo... se eu mudar depois eu falo que eu era um babaca...”, afirmou dando de ombros.

“Carteiradas”

Em meio ao convite de Rodrigo Maia para debater no Congresso e o tema das Fake News voltarem repentina e tardiamente à pauta da grande mídia (tema mantido em silêncio durante dois anos depois do verdadeiro estrago que provocaram nas eleições presidenciais de 2018), a entrevista à GloboNews no domingo último foi uma levantada de bola para o youtuber dar a cortada na rede: um peça de propaganda para justificar o seu expertise como assessor ao maroto Projeto de Lei aprovado no Senado.

Durante a entrevista, o influenciador digital deu quatro “carteiradas” para dizer o quanto é íntimo dos bastidores digitais: “em uma reunião que tivem com executivos do Facebook e Instagram...”, repetia aqui e ali o articulado youtuber.



Porém, o mais interessante é o segredo de polichinelo que Felipe Neto revelou para as atônitas entrevistadoras – Natuza Nery era a mais aturdida ao descobrir que disparos de mensagens e robôs já estavam superados pelas ferramentas digitais mais modernas.

Na verdade, o que ele revelou foram informações que já foram didaticamente explicadas em documentários desde 2018, como o francês Driblando a Democracia: Como Trump Venceu (Unfair Game, 2018) ou mesmo o longa-metragem Brexit (2019).

O que lembra o episódio dos documentos da NSA vazados por Edward Snowden em 2013 que ganharam repentino espaço no horário nobre da Globo no JN e Fantástico: projeto Echlon, Prism, escritórios da CIA e NSA em Brasília e mecanismos algorítmicos de vigilância já eram conhecidos por qualquer pesquisador de comunicação há no mínimo 30 anos!

Mas, claro, a intenção secreta foi a de criar mais uma bomba semiótica naquele momento para acusar Dilma Rousseff de ser uma presidenta frágil e incompetente, que supostamente não se preocupava com a segurança dos e-mails presidenciais e própria segurança nacional.

E por que agora a Globo quer inflar a versão digital de Luciano Huck, Felipe Neto, em seu momento mercadológico de reposicionamento de discurso? Por que as fisionomias “baba ovo” de Natuza Nery e Cristiana Lobo na Globo News, como se estivessem praticamente diante de um cientista computacional do Vale do Silício? Claro, o viés da pauta é turbinar o Projeto de Lei 2.630/2020 das Fake News dentro do movimento tático em pinça na guerra híbrida do amplo consórcio militar-judiciário-midiático.

A grande mídia quer criar a percepção de que a promulgação do Projeto de Lei é uma “derrota do governo” por atingir em cheio o chamado “gabinete do ódio” do clã Bolsonaro.

A bomba semiótica das Fake News

A primeira pista para desmontar essa bomba semiótica é a fala do antropólogo e estudioso do Exército brasileiro e professor da UFSCar Piero Leirner numa entrevista à Revista Opera:

O discurso de saída do general Rego Barros para assumir como porta-voz da Presidência da República, em fevereiro de 2019. A frase é simplesmente inacreditável: “Coube ao Exército mergulhar de cabeça no submundo das mídias sociais – Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, portal responsivo, e-blog, etc., e se tornar o órgão público com maior influência no mundo digital no Brasil. Exigiu sangue frio e interlocução sem rosto, típica da internet […]”. Literalmente dizendo que o Exército foi para o submundo do Whatsapp. Esse negócio do “gabinete do ódio” é uma lorota. Botam o Bolsonaro e os filhos como os bois-de-piranha. Para mim ficou claríssimo que esse problema todo, que está no STF agora por conta das fake news do Whatsapp, em que o Bolsonaro aparece querendo proteger os filhos, no fundo interessa a quem? Interessa ao Exército. Porque os camufla de terem feito uma operação nessa coisa do Whatsapp. – clique aqui.



Em 2016 a Universidade de Oxford elegia a “pós-verdade” como a palavra do ano enquanto o termo “fake news” tornava-se o hype do momento pelas críticas à campanha de Donald Trump. No Brasil, diretores executivos, presidentes de associações de imprensa ou grupos empresariais participavam de Congressos e Simpósios de jornalismo. Artigos sobre o tema eram publicados não mais voltados apenas para público acadêmico, mas também para jornalistas e líderes de opinião.

Aquele ano foi também marcado pelo final de uma intensa turnê mundial de “revoluções híbridas”: “primaveras”, “levantes, “jornadas” na Jordânia, Ucrânia, Egito, Síria, Tunísia, Líbia e finalmente Brasil. O ponto em comum de todas elas: intensa exploração de notícias falsas nas mídias sociais explorando a desinformação e o ódio.

Depois de anos de fake news na guerra semiótica que resultou no impeachment, a grande mídia necessitava expiar a si própria. Mas, principalmente, derrubar a mesma ponte que poderia ser trilhada pela esquerda: a guerra semiótica.

Agências de checagem foram criadas cujo alvo evidente era a mídia alternativa e sancionar a grande mídia como a única fonte fidedigna de notícias.

Mas essas agências e a própria grande mídia se calaram quando viram que última “esperança branca” para derrotar a esquerda, Bolsonaro, estava se valendo das mesmas táticas de Trump nas redes sociais: pós-verdade e fake news. Na época, a Globo limitava-se a falar genericamente em “guerra virtual”, diante das denúncias de um “zapgate”.

Quem paga tudo isso?

Mesmo diante das ameaças e agressões nas redes sociais à jornalista Patrícia Campos da Folha pela reportagem “Empresários bancam campanha contra PT no WhatsApp” em outubro daquele ano eleitoral.

Dois anos depois, eis que o tema Fake News volta à ribalta, ressuscitado como um Projeto de Lei. Como sempre, em ano eleitoral.

Duas coisas chamam a atenção nesse hype tardio das fake news: primeiro, a suposta “derrota do governo” destacada pela grande mídia e o “gabinete do ódio” do clã Bolsonaro como “boi de piranha”, como alerta Piero Leirner. 

E segundo, uma pergunta óbvia que todo o expertise de Felipe Neto e o Projeto de Lei ignoram: qual a fonte do dinheiro que custeia múltiplas contas em redes sociais, robôs e disparos de mensagens em massa? Quem paga caminhões de som, cartazes e horas de manifestantes passando à noite diante do STF segurando tochas ou gritando com alto-falantes na porta da casa de Felipe Neto? Por que não se investiga os canais financeiros ao invés de gastar dinheiro público para o recadastramento de chips de celulares pré-pagos? 

Ao invés de puxar o fio de Ariadne (o famoso “Follow the Money”), prefere-se fazer uma massiva coleta de dados de pessoas pondo em risco a privacidade e segurança dos cidadãos. E censurar conteúdos e perfis, ao invés de ir diretamente às fontes empresariais que dão sustentação financeira e logística... ou serão fontes militares? 

Puxar esse fio poderia criar terríveis embaraços para a mídia corporativa. Então, pega-se o youtuber Felipe Neto – a sua urgência mercadológica de reposicionamento encontra o jornalismo corporativo também com a urgência de desviar o foco do público.

Espécimes do Brasil profundo como o “Guerreiro de Bolsonaro” que importunou Felipe Neto ou o “gabinete do ódio” são o álibi perfeito para desfechar o movimento em pinça na guerra híbrida: recriar um sistema de censura, diferente da época da ditadura militar porque organizado também pelo mercado de mídia e o Judiciário. Um sistema mais perigoso do que o anterior, calando a mídia alternativa justamente quando a web e tecnologias de convergência poderiam ser a contraposição ao discurso monolítico da mídia tradicional.

Hoje, o Judiciário enquadra esses malucos bucha de canhão do Brasil profundo enquanto o clã Bolsonaro é oferecido à opinião pública como o malvado favorito. Amanhã, a pinça se fechará atingindo a mídia alternativa progressista – tudo legal, constitucional, como sempre em nome da defesa da Democracia... 

 

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