sábado, agosto 01, 2020

Série "Dark" Temporada 3: uma luz gnóstica no fim da caverna


A terceira e última temporada da série “Dark” (2017-2020) confirma aquilo que todos suspeitavam: toda a complexidade da narrativa está repleta de “paradoxos de inicialização” ou aquilo que em Física chama-se CTC – Closed Timelike Curve – linha de tempo fechada, inspirada em clássicos como “Em Algum Lugar do Passado” (1980). Como, então, os criadores da série poderiam dar uma solução aos ciclos aparentemente infinitos sem criar um final aberto e com muitas pontas soltas? Assim como nos acostumamos a ver em muitas séries do gênero, desde “Lost”. A luz no final do túnel (ou da caverna, no caso) foi a mitologia gnóstica: uma releitura de Adão e Eva do Paraíso bíblico e a Criação como um acidente. E o estranho mundo da mecânica quântica como a confirmação da secreta suspeita dos gnósticos: o Universo é imperfeito por ter sido obra de um acidente cosmológico.

Após assistirmos às duas temporadas de Dark com ralações temporais tão intrincadas (loops, paradoxos, sobreposições, realidades espelhadas etc.) com um ciclo de tempo aparentemente infinito, ficamos pensando: como os criadores da série Jantje Friese e Baran Bo Odar poderiam acabar com isso? Com tantas versões de um mesmo personagem transitando por épocas diferente nas quais presente, passado e futuro se influenciam reciprocamente, como é possível amarrar tantas pontas narrativas soltas?

Das duas, uma: ou teríamos na temporada final uma conclusão em aberto ao estilo da série Lost – os criadores encontrariam um lugar apropriado em que todas as pessoas ficariam presas para sempre; ou então os criadores inventariam algum “deus ex-machina”, alguma causalidade externa desse ciclo infinito para dar um ponto final. E deixar deliberadamente, como sempre em séries nesse estilo, muitas pontas soltas.

Mas Dark surpreendeu. Encontrou uma terceira via (como veremos, o tema da “terceira via” é recorrente nessa temporada final): para resolver os diversos loops independente ou “loops de inicialização”, os criadores tiveram que encontrar a solução fora das duas versões de Windem. Os paradoxos propostos pela série tornaram incapaz qualquer solução interna. Por isso, a terceira temporada criar a mitologia de um “Paraíso”, da “Origem”, de algum tipo de “lócus” anterior ao início dos tempos.

Dessa maneira, a temporada final de Dark praticamente torna-se idêntica à mitologia gnóstica: a Criação foi uma gigantesca catástrofe cósmica que criou a curvatura tempo-espaço que nos mantém prisioneiros em um loop interminável, em uma sucessão de mundos alternativos – para ser mais exato, o filósofo gnóstico Basilides de Alexandria (entre 117 e 138 DC) falava em 365 mundos.


O que tornou Dark tão hermético é que a série dominada pelos chamados “paradoxos de inicialização”.

O Paradoxo do Relógio

Por exemplo: como Charlotte poderia ser sua própria avó? Charlotte teve uma filha chamada Charlotte, e o bebê Charlotte foi para o passado para tornar-se a Charlotte original. Não há começo nem fim nessa sequência. Dark está repleta desses tipos de loops.

A inspiração está no “paradoxo do relógio” do clássico Em Algum Lugar do Passado (1980), a questão que assombra os fãs daquele filme: Todas as informações que o protagonista Richard descobriu em 1972 sobre o passado, cumpre em 1912: hospeda-se no mesmo número de quarto, a mesma assinatura no livro de hóspedes do hotel e... devolve o relógio para Elise que voltará a entregar a Richard 70 anos depois.



Se considerar a linha do tempo do relógio, irá formar um circuito fechado muito parecido com um bambolê – Elise teria o “primeiro” relógio em 1912, e em seguida entregaria para Richard em 1972, de modo que poderia dar-lhe de volta em 1912. O relógio existiria sem nunca ter sido criado. Estaríamos diante daquilo que em Física chama-se CTC – Closed Timelike Curve – linha de tempo fechada.

Esse é o paradoxo central de Dark: como Winden foi criada (e o universo no qual existe) se todos os seus habitantes e acontecimentos têm uma relação de causalidade com o futuro?

Para complicar, a terceira temporada apresenta uma Winden alternativa, de uma tal maneira intrincada que os loops acabam criando um elo recursivo entre os dois mundos. Cuja topologia vai fazer alusão ao símbolo do infinito:


Ou seja, para os grupos oponentes que se debatem pelo controle do Tempo (Adam/Jonas versus Martha em suas versões idosas), a solução de toda aquela progressão exponencial de loucura (“efeito borboleta”) não está no Tempo, mas no Espaço: encontrar na topografia do símbolo do infinito, o ponto de encontro dos dois laços, representado as duas versões de Winden – a questão não é quando, mas onde tudo começou.



A releitura gnóstica do Paraíso

Nesse ponto a simbologia de Dark entra do campo de teologia cristã: a mitologia de Adão e Eva e o Paraíso que perpassa toda a terceira temporada. Adam e Martha são representados como Adão e Eva, o pecado original que fez toda a loucura começar. Cada um do seu lado tenta convencer o outro como consertar tudo, sempre voltando ao passado em busca do “pecado original”, o grau zero que iniciou o loop.

Mas lembre-se: estamos em um paradoxo de inicialização. Não só é impossível, como um falso problema.

Dark, portanto, aproxima-se da releitura herética que o Gnosticismo vai da mitologia do Paraíso bíblico – para os gnósticos, o Paraíso é um aparente jardim cheio de delícias. Adão foi enganado pelos Arcontes (os asseclas do Demiurgo), seduzido pelos aparentes prazeres terrestres, e transformou-se num prisioneiro. Nessa releitura, a “serpente” nada mais é do que o conhecimento, o fruto proibido, que revela a condição prisioneira de Adão.

Desde então, a humanidade estaria penitenciando-se pelo pecado original de ter consumido o fruto proibido e destruído o Paraíso terrestre – em síntese, sofre pelo pecado.

Assim como os gnósticos, Adam/jonas e Martha descobrem que o “pecado” não está neles, mas na própria Criação – o evento cataclísmico que criou aquelas duas versões alternativas de Winden. Eles são prisioneiros de um Criador.

Essa é a essência da resolução final de Dark: todas as histórias que vimos ocorreram em uma série de universos dissidentes que foram acidentalmente criados por HG Tannhaus (Christian Steyer e Arnd Klawitter). No mundo real e original, Tannhaus tentou inventar algum tipo de máquina do tempo que lhe permitisse salvar seu filho, nora e neta - todos mortos em um acidente de carro.

Então Jonas (Louis Hoffman) e Martha (Lisa Vicari) vão ao local da fratura original - nos túneis sob o bunker de Helge. Isso os transporta para o universo original e permite que eles impeçam essas mortes e, dessa forma, eminar seus próprios mundos da existência.

Ou seja, destruir a própria Criação. Aproximando-se da ideia gnóstica que toda a Criação foi um acidente, uma abominação cósmica na qual estamos prisioneiros em loops reencarnatórios de dor e sofrimento – a “Roda do Samsara” do Livro dos Mortos do Budismo tibetano.



Gnosticismo e Física Quântica

É aqui que Gnosticismo e Física quântica se encontram na temporada final. A chave para compreender tudo está no monólogo de Tannhaus que abre o episódio 7:

O que é realidade? E existe apenas uma? Ou várias realidades coexistem? Para ajudar a explicar, Erwin Schroedinger desenvolveu um experimento mental extremamente interessante. O gato de Schroedinger. Um gato é trancado em uma câmara de aço com uma pequena quantidade de substância radioativa, um contador Geiger, um frasco de veneno e um martelo. Assim que um átomo radioativo se decompõe dentro da câmara de aço, o contador Geiger libera o martelo, que esmaga o frasco de veneno. O gato está morto.

No entanto, devido às características das ondas no mundo quântico, o átomo se deteriorou e não se deteriorou, até que nossa própria observação o force a um estado definitivo. Até o instante em que olhamos e vemos, não sabemos se o gato está vivo ou morto. Existe em dois estados sobrepostos. As propriedades "morto" e "vivo" existem, portanto, simultaneamente no microcosmo.

Mas e se a existência simultânea de vida e morte também se aplicasse ao mundo macrocósmico? Poderiam existir duas realidades diferentes lado a lado? Poderíamos conseguir dividir o tempo e permitir que ele funcionasse em duas direções opostas? E, ao fazer isso, permitir que o gato exista simultaneamente nos dois estados, morto e vivo? E se sim, quantas realidades diferentes poderiam existir lado a lado?

Para os gnósticos a realidade é imperfeita porque a sua Criação foi fruto de um cataclisma. Por exemplo, o poeta William Blake falava que a “Natureza é uma obra do Demônio”.



Gnósticos como Stephan A. Holler veem no Princípio da Incerteza de Heisenberg a confirmação da secreta suspeita de que o Universo é imperfeito por ser uma criação do Demiurgo – leia HOELLER, Stephan A., Gnosticismo: tradição oculta. Rio de Janeiro: Nova Era, 2005.

Ou de que todo o estranho comportamento da microfísica quântica seria decorrente da colisão entre os mundos paralelos ou realidades alternativas sobrepostas, como sugerida pela hipótese do gato de Schroedinger.

Quais seria então as consequências desses comportamentos bizarros do mundo microfísico no macrofísico? A série Dark é uma especulação sobre isso, um drama sobre a existência de um Campo Unificado onde o mundo das partículas tem consequências cósmicas.

Em Dark o Demiurgo criado é Tannhaus. No mínimo, o Gnosticismo surgiu para os criadores da série como uma boa solução de roteiro para escapar do paradoxo da inicialização: o “tertium quid”, a terceira via: nem uma versão de Winden nem a outra, nem o Bem e nem o Mal.

Para os gnósticos, a Criação foi cindida entre as dualidades inconciliáveis, opostas. Assim foi estruturado todo o pensamento e a linguagem. Fora da dualidade está o “tertium quid”, expressão usada pela Alquimia como “o elemento indeterminado” entre duas outras coisas.

Esse “tertium quid” é o caminho da Teurgia – refazer o caminho da Criação para retornar a “Deus”: o Pleroma, “a Luz que existe acima do nosso mundo”, o nosso mundo original do qual todos decaímos.

Em Dark, é a Winden original, antes de todo o paradoxo da inicialização ter sido criado.


  

 

Ficha Técnica 

Título: Dark (série – terceira temporada)

Diretor: Baran Bo Odar

Roteiro: Baran Bo Odar, Jantje Friese

Elenco: Louis Hoffman, Lisa Vicari, Daan Lennard Liebrenz, Paul Lux

Produção: W&B Television

Distribuição:  Netflix

Ano: 2020

País: Alemanha

 

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