O auge do Império Romano coincidiu com o surgimento dos textos mais
enigmáticos da humanidade, como o “Zohar” que é a própria mística da Cabala. Se
os seu conteúdo fosse revelado poderia provocar a queda do próprio Império. Mas o roubo
dos pergaminhos por um legionário romano marcará o destino da História do
Ocidente e da vida desse soldado que ficará prisioneiro em uma cilada Tempo-Espaço por sucessivas
reencarnações até os tempos atuais. Esse é o filme
“The Zohar Secret” (2015), mais uma recente produção russa onde está presente o
tema do misticismo gnóstico. Seria o misticismo russo uma forma de reação à
invasão do Marketing e da Publicidade na Rússia pós-comunismo? Uma reação
contra mais um império, assim como os textos místicos judaicos e gnósticos enfrentaram o Império Romano no passado? Filme sugerido pelo nosso
leitor Felipe Resende.
Cinco anos de
arrecadação de recursos por crowndfounding através da plataforma Kickstarter
(site de financiamento coletivo que busca apoiar projetos inovadores), envolvendo
1.300 pessoas de 54 países conseguiram levantar algo em torno de 10 milhões de
dólares entre dinheiro e equipamentos.
O resultado foi o
filme russo The Zohar Secret (2015), do
diretor Vladek Zankovsky, lançado esse ano e ainda exibido de forma restrita em
alguns festivais em Toronto, Roma, São Francisco, Roterdam, Moscou, Pequim, Tel
Aviv e Odessa.
The Zohar Secret parece ser mais um exemplo da recorrência
do cinema russo atual: o intenso misticismo, paradoxalmente após décadas do
regime comunista e ateu soviético que foi depois substituído pela invasão do
materialismo do marketing e publicidade ocidentais. Filmes como Generation P (de 2011, onde através de
viagens místicas e lisérgicas o protagonista tenta se adaptar à Rússia
pós-comunismo) e Branded (de 2012, onde o Marketing é
visto pelo ponto de vista do misticismo teosófico) seriam dois exemplos dessa
recorrência.
The Zohar Secret talvez traga uma pista do porquê dessa
recorrência: em um tom entre tragicomédia e ficção científica, o filme coloca a
Rússia no meio do choque de séculos entre dois impérios ou culturas – de um
lado a civilização ocidental contemporânea que foi o resultado do antigo
império romano; e do outro, a da tradição helenística herdeira do mundo
clássico, mística e esotérica. O choque entre o império do Ocidente e o império
do Oriente, Roma versus Constantinopla, a Igreja Católica versus Igreja
Ortodoxa.
Um antigo
manuscrito (o Zohar ou “O Livro do Esplendor” que influenciou o misticismo
judaico durante séculos) cai nas mãos de Max ( Israel Sasha Demidov) na época
do Império Romano no século II DC. Nesse manuscrito está descrito a história da
humanidade, desde o início até o final dos tempos. Tentando usar essas
informações para seu próprio proveito, Max sem querer aciona um mecanismo que
influenciará as suas sucessivas encarnações no futuro. Enquanto não corrigir o
erro (devolver o Zoahar a Jerusalém), Max pagará o preço sempre da pior maneira
possível até chegar aos tempos atuais.
O diretor Vladek
Zankovsky é ambicioso: em duas horas de duração quer colocar o mundo atual em
perspectiva como a resultante do egoísmo de um legionário romano. Se tivesse
devolvido o Zohar aos seus verdadeiros donos, o mundo seria bem diferente do
que é hoje – uma horrível e exagerada caricatura do que foi o antigo Império
Romano.
O Filme
The Zohar Secret começa mostrando que o Império Romano
alcançou seu ápice de poder no século II DC, alcançando seus domínios da Grã
Bretanha até o norte da África. Mais foi precisamente durante esse período que
surgiu o mais estranho escrito, cujos autores foram os dez maiores sábios da
época. Cada um deles estavam em diferentes níveis de compreensão da realidade.
Quando uniram seus conhecimentos, o resultado foi o Zohar.
Se esses pergaminhos fossem revelados, provocaria a queda do Império
Romano e certamente levaria o mundo a um futuro bem diferente do que
conhecemos. Então, César ordena a Décima Legião a apoderar-se desses
pergaminhos e levá-los para Roma. Mas algo dá errado no caminho de volta – Max
quer tirar proveito pessoal das informações do Zohar mas sofre um acidente,
perde a memória e é condenado a vagar nas sucessivas encarnações à procura de
si mesmo.
É seguido por uma espécie de Alter Ego ou, num sentido junguiano, a sua
própria Sombra. Tenta convencê-lo a corrigir o erro e demonstrar que tudo o que
ele vive é uma ilusão.
Em uma das melhores sequências do filme, quando quando está vivendo na
época da Revolução Comunista de 1917, Max conhece a última invenção: o
cinematógrafo. Aterrorizado ao ver o aparelho projetar imagens dele mesmo em vidas
passadas em uma tela, a Sombra tenta explicar: a verdade não está na tela, mas
na fita cujas imagens são projetadas por uma luz interior. A realidade é uma
ilusão projetada em uma tela em frente de nós. A fita são as informações em
nossa mente que, no caso de Max, projeta seu sucessivo erro a cada reencarnação
– não devolver o Zohar a Jerusalém.
Quanto mais Max repete o mesmo erro a cada encarnação (recusar-se a
entregar o manuscrito ou tentar matar a Sombra que tenta esclarecê-lo quanto a
ilusão de tudo), mais as mortes se sucedem nas formas mais violentas – na Idade
Média, Guerras Napoleônicas, um soldado inglês na África, na Revolução
Bolchevique, na I Guerra Mundial etc. Max é arrastado de uma época a outra sem
compreender o propósito de tudo, perdendo inclusive a memória da sua própria
identidade.
E assim correrá a História como o desdobramento de um engano: a
perpetuação do modelo do Império Romano através de diversos imperialismos que
apenas imitam o original do início da Era Cristã. Enquanto o Zohar não for
devolvido a Jerusalém, a História não ocorrerá tal como narrado nos manuscritos
sagrados.
Reencarnação e repetição
Em The Zohar Secret há um
evidente leit motiv gnóstico: a
ruptura com o modelo evolucionista das reencarnações como oportunidade de
aprendizado. Ao contrário, é uma prisão onde somos condenados ao sono do
esquecimento, sempre condenados a recomeçar do zero e repetindo os mesmos
erros. Max sabe disso e tenta se agarrar a alguma coisa para tentar levar uma
vida normal (casar e ter filhos) e se livrar da maldição que o persegue desde
os tempos de legionário romano.
A Sombra de Max tenta demonstrar que tudo é uma ilusão projetada da sua
luz interior, como um projetor de cinema. A única forma de Max escapar da sua
prisão é fazer o manuscrito (sua “luz interior”) retornar para casa (Jerusalém
ou, no caso do Gnosticismo, o Pleroma). Mas sempre Max opta pela ilusão,
fazendo tudo recomeçar até o filme conduzir o espectador a um final aberto.
O Zohar e a Cabala
O Zohar ou o “Livro do Esplendor” é a própria mística da Cabala,
consistindo numa série de comentários místicos sobre a Torá (os cinco livros de
Moisés com os ensinamentos passados por Deus na Revelação do Monte Sinai)
contendo os segredos da Criação e do Universo.
Foi escrito numa época bastante conturbada (séc. II DC) onde Israel
penava sobre o jugo romano e tinha que se sujeitar à proibição do estudo da
Torá. Preocupados com a perseguição e dispersão dos judeus que resultaria na
perda da tradição oral dos ensinamentos da Torá, os sábios transcreveram seu
conteúdo no Zohar de uma forma quase indecifrável impedindo que os não
iniciados pudessem ter acesso aos segredos.
O cuidado em
relação ao Zohar sempre foram impostos com o propósito de preservar não só a
obra, mas também as pessoas que ousassem estudá-la. Temia-se que seus
ensinamentos e revelações pudessem ser mal interpretados ou usados de forma
inadequada, tal como o protagonista Max no filme.
Esses temores
parecem ter se confirmado no decorrer da História: houve vários casos de
indivíduos e até mesmo de grupos que, após mergulharem nas águas do misticismo
judaico sem o preparo adequado, acabaram por se perder dando origem a falsos
messias e adeptos da ciência do ocultismo.
O Império Romano e o Ocidente
No ponto de partida da narrativa de The
Zohar Secret no século II DC (o fato de que na época do Império Romano
terem sido escritos os textos mais enigmáticos da humanidade) talvez esteja uma
hipótese do porquê do misticismo no cinema russo atual: as origens da mística
russa poderia ser encontrada no famoso Cisma poucos séculos depois, que acabou
dividindo a Igreja em Ocidental (Católica, centrada em Roma) e a Oriental - Ortodoxa, centrada em Constantinopla.
Enquanto a Igreja Católica romana baseou-se na Teologia e na fé pela
Santíssima Trindade, a Ortodoxa manteve-se fiel aos conceitos metafísicos e
místicos da filosofia de Aristóteles, Platão e do neoplatonismo dos primeiros
evangelhos cristãos – o único caminho que resta para uma aproximação de Deus
seria na visão interior, a “mística” como experiência interior que leva ao
intuitivo e supra-racional.
Com a invasão da Publicidade e do Marketing na Rússia pós-comunismo (um
novo império análogo ao romano), poderíamos ter essa insurgência do misticismo
russo, assim como à época do Império Romano surgiram os textos enigmáticos
judaicos e gnósticos como reação à dominação romana e católica.
Generation P, Branded e The
Zohar Secret são filmes russos recentes que partilham dessa mesma mística
oriental: a visão interior como única coisa que restou para a humanidade,
depois que a realidade foi dominada por sucessivos clones do antigo império
romano. Esses filmes parecem partilhar de uma mesma agenda secreta – mostrar
que a realidade é uma ilusão gerada por um projetor de cinema e provar que a
realidade não está na tela, mas na visão interior.
Ficha Técnica |
Título: The
Zohar Secret
|
Diretor: Vladek Zankovsky
|
Roteiro: Vladek Zankovsky e Israel Sasha Demidov
|
Elenco: Israel Sasha Demidov, Irina
Barinova, Henry David
|
Produção: Cinema 6K
|
Distribuição: Independente
|
Ano: 2015
|
País: Rússia
|
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