Uma verdadeira cápsula do tempo. Um daqueles filmes que mereciam ser
enterrados na época do seu lançamento para depois serem redescobertos como
verdadeiras pérolas. O filme “Blueberry” (aka "Renegade") do francês Jan Kounen (2004) foi
ridicularizado pela crítica e público para hoje ser saudado como um western
sobrenatural, um cult do xamanismo no cinema.
Blueberry não é apenas um filme sobre jornadas espirituais xamânicas de
um protagonista à beira da morte: os próprios efeitos especiais e imagens
cinéticas induzem o espectador a imergir em estados alterados de consciência. O
desejo de vingança de um protagonista transforma-se em jornada xamânica de
autoconhecimento desconstruindo as códigos do gênero faroeste – vingança,
honra, dominação e conquista.
O gênero western
já foi muitas vezes desconstruído no cinema por sátiras (Banzé no Oeste, 1974, de Mel Brooks), o exagero revivalista do
spaghetti western italiano dos anos 1960-70, a fusão do western com séries policiais urbanas nos anos 1970 (McCloud
– 1970-77) ou a paródia dos códigos e convenções dos duelos e violência nos
filmes de Tarantino.
Mas nada se equipara
ao western francês Blueberry. Baseado
no faroeste em quadrinhos francês homônimo de Jean-Michel Charlier e Jean
“Moebius” Giraud, o filme foi muito mais além da simples adaptação de um comic book: o filme transformou-se em
uma jornada espiritual após o próprio diretor do filme se encontrar com índios
xamãs que o iniciaram a rituais verdadeiros.
O filme apresenta todos os ingredientes do gênero
como o saloon, o bordel, duelos, tiroteios e perseguições envolvendo cowboys e
índios. Mas em Blueberry percebemos
que todos esses elementos clássicos do gênero são apenas um pretexto de algo
mais ambicioso: transformar o desejo de vingança e o duelo final dos
protagonistas em uma batalha mística e psicodélica que realiza-se não nesse
mundo, mas no interior da mente através de xamânicos estados alterados de
consciência.
O filme lembra muito Dead Man (1995) de Jim Jarmusch
sobre o protagonista Johnny Deep que em uma cidade perdida no velho Oeste
conhece um índio xamã que o faz iniciar uma jornada espiritual de
autoconhecimento, preparando-o para a morte e a entrada no Outro Mundo.
Mas Blueberry não se limita a
falar sobre xamanismo. A própria experiência visual e sonora dos efeitos em
computação gráfica nas sequências espirituais da narrativa induz o espectador a
uma simulação da experiência xamânica – principalmente, o duelo final dos
protagonistas no “Mundo Superior” mental é uma sucessão alucinante de imagens
cinéticas que reproduz a experiência de êxtase através da indução de drogas
xamânicas como a mescalina ou peyote.
Alejandro Jodorowski saltaria de alegria ao ver essa cena, um verdadeiro
peyote em celulóide – o que tornou Blueberry um filme cult que é a mais
próxima homenagem ao filme El Topo de
Jodorowski, com um grande orçamento que um western merece.
Mas como todo filme cult, na época do lançamento foi mal recebido pela
crítica e vaiado pelo público – as atuações, a narrativa e os efeitos
especiais, tudo ridicularizado. Blueberry é impactante e experimental. Um
daqueles filmes que são verdadeiras cápsulas do tempo que devem ser enterradas para,
mais tarde, serem redescobertos como verdadeiras pérolas.
O Filme
Mike Blueberry (Vicent Cassel) é um ajudante de xerife cansado de manter
a ordem em uma cidade chamada Palomito no oeste selvagem da década de 1870. A
cidade é habitada por um grupo heterogêneo de canalhas e personagens
caricaturais: um velho e gordo xerife que anda em cadeira de rodas (Ernst
Borgnine) empurrado pelo seu filho Billy the Idiot (John Kounen); Mariah
(Juliete Lewis) numa versão moderna de Calamity Jane; Prosis (Eddie Izzard), um
geólogo, pequeno escroque oportunista e covarde; Woodhead (Dijimon Hounsou), o
ajudante do geólogo cuja cabeça foi escalpelada pelos índios mas ainda vive; e
Blount (Michael Madsen) um assassino frio com uma história sórdida de
rivalidade no passado com Mike que procurará vingança ao revê-lo na cidade.
Mike foi educado pelos índios. Encontrado quase morto foi submetido a um
ritual xamânico de cura. Mas os xamãs fizeram muito mais: foi preparado
espiritualmente para uma futura jornada espiritual onde terá que lutar para
libertar seu espírito e o coração das suas sombras e monstros interiores.
A chegada de Blount e sua gangue em Palomito na busca de um tesouro
indígena converte a cidade em um verdadeiro inferno trazendo para Mike
recordações dolorosas do passado e o desejo de vingança.
O suposto tesouro está em uma misteriosa montanha que somente pode ser
alcançada atravessando as dunas de um deserto. Para Blount é a chave do
dinheiro e poder; para os indígenas é uma montanha mágica; e para Mike
Blueberry será o portal do duelo mais lisérgico da história do cinema – Blount
e Mike duelarão no interior das suas mentes em um ritual xamânico e sob estados
alterados de consciência.
Xamanismo e os outros mundos
Xamanismo é uma antiga prática mística utilizando estados alterados de
consciência como meio de contatar energias, deuses e espíritos desse e de
outros planos da existência. O xamã vê todos os aspectos do universo como
conectados (plantas, animais, pedras etc.), uma rede de padrões de energia,
vibrações e entidades. O papel do xamã é ser o intermediário entre os
diferentes mundos.
Tal como descreveu o pesquisador Mircea Eliade, a cosmologia xamânica é
estruturada em três mundos: os homens vivem na Terra, uma espécie zona média
entre o Mundo Subterrâneo e o Mundo Superior. Os três mundos estão unidos por
um eixo central ou espécie de túnel de comunicação simbolizado de formas distintas
nas diferentes culturas: montanha, árvore etc. – leia ELIADE, Mircea, O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase,
Martins Fontes, 1998.
Segundo diversas crenças xamânicas, existem
aberturas para viajar no mundo espiritual. Geralmente as entradas são em formas
circulares. Essas aberturas, rodas, túneis, buracos ou cavernas também existem
dentro de nós mesmos. Através de desenhos em paredes de cavernas, estátuas,
pinturas, os xamãs de diversos povos retratam o mundo espiritual dentro de nós.
O Mundo Subterrâneo é onde nos conectamos com
espíritos das plantas, animais e minerais. Mas também encontramos a nossa
sombra, a parte mais obscura do nosso ser onde estão os instintos e sentimentos
densos como a vingança e o ódio. Nesse mundo nos defrontamos com os símbolos e
arquétipos dessas sombras – no filme representado por serpentes e escorpiões.
No Mundo Intermediário viajamos para o passado e
futuro. Na sua jornada espiritual Mike volta ao passado e revive a cena
traumática que o prende ao ódio e vingança por Blount.
E o Mundo Superior é onde nos conectamos com os
mestres. Local de inspiração e onde poderemos nos conectar com nossos guias
espirituais. A Montanha Mágica é o portal para esse mundo: Blount interpreta
esse tesouro indígena ao pé da letra como ouro e riqueza; e para Mike, o
momento da gnose onde ao invés de ter de enfrentar seu oponente terá que
enfrentar os seus maiores pesadelos interiores.
Monstros interiores
Dessa maneira Blueberry
desconstrói os códigos tradicionais do gênero western: vingança, honra,
dominação e conquista. Na verdade todos esses valores são monstros interiores
que aprisionam o espírito de Mike, originando o verdadeiro duelo travado em um
plano onírico.
Durante as filmagens, parte realizadas no México,
Espanha e França, o diretor Jan Kouen ficou fascinado pelo xamanismo: depois de
uma série de viagens à amazonia peruana tomou contado com a tribo nativa dos
Chipibo Conibo, chegando a fazer um documentário sobre eles intitulado “Outros
Mundos”.
O que chama a atenção nesse western sobrenatural é como os personagens
iniciam suas jornadas espirituais: por meio da perda da consciência motivada
por tiros e violência. Assim como no filme noir
(os clássicos filmes de detetive particular nos anos 1940), Mike constantemente
perde a consciência através da violência, chegando muitas vezes à beira da
morte. Parece a forma de silenciar o corpo para que a mente possa ser liberada
para as jornadas xamânicas.
Essa conexão entre espiritualidade e violência lembra filmes como O Clube da Luta de David Fincher – a busca da iluminação espiritual
por meio do silenciamento do corpo e da mente racional, mesmo que seja através
da força da violência. No filme de Fincher temos a luta como caminho para o
protagonista descobrir a si próprio. Em Blueberry,
a debilidade do corpo e a proximidade da morte é o momento xamânico da cura
(libertar-se desse mundo) e da iluminação espiritual - conhecer e enfrentar sua
sombra.
Como afirmava-se no filme Clube da
Luta, “Isso é liberdade: quando perda as esperanças, então você está
livre”.
Ficha Técnica |
Título: Blueberry,
Desejo de Vingança (aka Renegade)
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Diretor: Jan Kounen
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Roteiro: Matthieu Le Naour, Alexandre Coquelle
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Elenco: Vincent Cassel, Michael Madsen,
Juliette Lewis, Ernst Borgnine
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Produção: AJOZ Films, Le Petit Reine
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Distribuição: Columbia TriStar Home Entertainment (DVD como “Renegade”)
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Ano: 2004
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País: França
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