sábado, novembro 07, 2015

A psicanálise de um fantasma no filme "I Am a Ghost"


Talvez o mais difícil não seja morrer, mas despertar do outro lado e ter de se dar conta de que já está morto. Ultrapassar a fronteira entre a vida e a morte pode ser algo tão imperceptível que continuamos do lado de lá a conviver com os antigos traumas e fantasmas que nos atormentaram quando quando éramos vivos. O horror independente “I Am a Ghost (2012)” mostra alguém que ainda não se deu conta de que está preso em algum lugar entre a vida e a morte, e continua repetindo seus antigos hábitos como nada tivesse acontecido. Uma voz tenta despertá-la, fazendo do filme um surpreendente encontro entre Espiritismo e Psicanálise.

“Ninguém precisa de um quarto para ser assombrado. Não precisa ser uma casa. O cérebro tem corredores suficientes que ultrapassam a matéria”. Essa epígrafe de um poema de Emily Dickinson abre I Am a Ghost e dá o tom de um filme que pode ser inicialmente descrito como o cruzamento entre o argumento de Os Outros com Nicole Kidman com o tema e a atmosfera visual de O Iluminado de Kubrick.

          Com um baixíssimo orçamento de 10 mil dólares, esse filme independente de H.P. Mendoza segue a tradição de filmes como A Passagem (Stay, 2005) e O Terceiro Olho (The Eye Inside, 2004) onde põe em questão aquela expressão que dizemos quando recebemos a notícia da morte de alguém: “partiu dessa para a melhor!”.


Enquanto em Os Outros, A Passagem e O Terceiro Olho mostram a experiência pós-morte com uma fotografia estilizada com caprichados planos de câmera, I Am a Ghost é duro e cru como um soco no estômago: talvez a morte não seja uma libertação, mas a continuação de todas as mazelas que experimentamos em vida.


A morte não é apenas uma fenômeno físico, morreu e acabou. Você está livre! I Am a Ghost nos lembra que o morrer pode ser muito mais complicado: a dor e os fantasmas interiores podem continuar nos perseguindo, criando uma sobrevida tão prisioneira quanto a nossa, a dos vivos.

O horror “slow burn”


I Am a Ghost é a melhor definição do atual subgênero de horror “slow burn”: numa casa estilo vitoriano acompanhamos as tarefas tediosas diárias de Emily. Nos primeiros quinze minutos acompanhamos rituais diários que vão se acumulando, repetindo-se e se interpenetrando em cenas aleatórias e sutis. Tudo parece normal, mas percebemos que há algo errado e que algo assustador poderá irromper a qualquer momento – a atmosfera gótica de corredores estilo kubrickiano de O Iluminado reforçam ainda mais essa sensação.

Essa lenta construção compensa quando vemos repentinamente o filme transformar-se em horror inquietante e caótico: “Estou morta!... agora, repita comigo: Eu sou um fantasma! Eu sou um fantasma!”, ouve-se uma voz de procedência misteriosa. Acredite, leitor: isso não é um spoiler, é o início do argumento que atualiza a tradição dos filmes acima citados – dessa vez o protagonista que descobre-se morto terá que enfrentar suas memórias, fantasmas e monstros interiores.

O problema é que nos mundos etéreos como aqueles nos quais entraremos após a morte, essas forças psíquicas ganham força e materializam-se dentro de um ambiente sutil e plástico. Viram entidades que nos perseguem e criam ilusões que nos aprisionam, impedindo que, de fato, morramos.

Dessa maneira H.P. Mendoza faz um surpreendente cruzamento entre Espiritismo e Psicanálise da maneira mais assustadora possível. Em outras palavras, I Am a Ghost pode ser descrito como uma sessão mediúnica e psicanalítica com um fantasma prisioneiro de si mesmo em um plano etéreo contiguo a esse mundo.

O Filme


I Am a Ghost é um filme inteiro a partir da perspectiva de um fantasma. A incômoda calma da rotina diária dos quinze minutos iniciais é quebrada quando Emily entra no quarto de sua mãe e ouve a voz desencarnada de uma mulher chamada Sylvia – uma clarividente contratada pela família dos moradores que vivem atualmente naquela casa. Nunca vemos esses personagens, já que o ponto de vista da narrativa é o do mundo etérico. Mas sabemos que a rotina de Emily no outro mundo resulta em involuntários reflexos no mundo dos vivos como portas batendo, sons de passos e coisas caindo.

Percebemos que Emily vive numa espécie de purgatório pós-morte: uma eterna repetição dos afazeres domésticos e o tabu de não pisar no tapete do quarto de sua mãe sobre o qual supostamente teria se matado. Esse eterno loop só é quebrado quando Emily entra no quarto da sua mãe e ouve a voz da clarividente – Emily volta a si como se despertasse de um sonho, reconhece ser um fantasma e procura atender as instruções da médium que pretende guia-la “para a luz”.

Mas algo está dando errado. Por algum motivo no meio processo de diálogo espiritual Emily corre amedrontada, sai do quarto e volta ao seu estado de torpor e à repetição incessante dos rituais diários, tornando-se alheia a sua condição.


Para a médium Sylvia, somente o reconhecimento da própria entidade assumir-se como um fantasma de alguém que já morreu já seria o suficiente para a libertação daquele purgatório. Mas com Emily tudo é diferente. Por que?

A banalidade da morte


Uma das coisas incomodas em I Am a Ghost é a depressiva banalidade da vida “do outro lado” – tudo parece ser uma mera perpetuação dos problemas da vida encarnada a tal ponto que não sabemos se de fato estamos “vivos” ou “mortos”.

Aqui começa o interessante encontro que o filme promove entre Espiritismo e Psicanálise. Emily é prisioneira dos rastros de suas próprias memórias deixados pelos cômodos da casa. Essa é uma conhecida tese da Parapsicologia sobre a possibilidade de superfícies de objetos ou paredes serem impregnados com energias psíquicas de episódios de alto teor emocional envolvendo traumas, dor, alegria, intenso prazer ou tristeza etc.

A energia dessas  memórias seriam gravadas nessas superfícies físicas, assim como o som e imagem podem ser registrados em fitas com superfícies cobertas de óxido de ferro – as antigas fitas-cassete. Sob certas condições físicas ou mesmo psíquica entre os vivos, essas memórias poderiam criar efeitos fantasmagóricos como projeções semelhantes a hologramas. Dessa maneira, estaríamos diante dos chamados “fantasmas”. Concretamente, tais energias poderiam formar egrégoras, capazes até de sobre-determinar pensamentos e atitudes dos vivos, gerando fenômenos sincromísticos – sobre isso clique aqui.

É esse o pano de fundo de I Am a Ghost: se tais memórias são capazes de influenciar os vivos, imagine então como os mortos seriam suscetíveis a esses fenômenos nesses ambientes etéricos e facilmente moldáveis por energias mais sutis.   


Por isso, Emily revive esses fragmentos de memória em intermináveis loops, como verdadeiros clichês. Dessa forma para Emily todo dia é o mesmo dia, por toda eternidade.

Freud acreditava que nossas vidas  poderiam ficar presas em cenas traumáticas capazes de drenar muita energia psíquica na forma de ressentimentos ou mágoas que transformavam-se em complexos. Cenas que repetiam-se como clichês em nossas mentes, condicionando nossos comportamentos, atitudes e escolha futuras. Inconscientemente repetiríamos por toda vida a circunstâncias do trauma, até o nó ser desfeito pela psico-análise que localizaria o nó traumático.

Mas como dissemos, o que é perturbador em I Am a Ghost é a possível banalidade da existência pós-morte. Tão banal que até podemos nem perceber que morremos e que as temíveis barreiras entre a vida e a morte foram ultrapassadas.

Dentro da literatura espírita (como, por exemplo, na série Nosso Lar de André Luís psicografadas por Chico Xavier) são comuns relatos de situações como as retratadas no filme: despertar do outro lado e conviver com as mesmas angústias, preocupações e medos da antiga existência. Ou seja, uma sensação de continuidade tão inesperada que nem acreditamos que morremos.

Mas, como a clarividente Sylvia e o próprio Freud acreditavam, ter consciência da sua própria condição (de fantasma ou de neurótico) seria a condição inicial para a cura. Menos para a protagonista Emily que apesar da autoconsciência continua presa em seu purgatório íntimo. Por que? Isso é o que o leitor deverá descobrir em I Am a Ghost.


Ficha Técnica


Título: I Am a Ghost
Diretor: H. P. Mendoza
Roteiro: H. P. Mendoza
Elenco: Jeannie Barroga, Anne Ishida, Rick Burkhardt
Produção: Ersatz Films
Distribuição: Gravitas Ventures
Ano: 2012
País: EUA


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