sexta-feira, novembro 20, 2015

A lama de Mariana e os atentados de Paris entre os tempos histórico e midiático


Causou estranheza a muitos leitores o título da última postagem: “Os Atentados de Paris não aconteceram”. Então foi tudo montagem? E os mortos? O “Cinegnose” está delirando? Por isso, este humilde blogueiro decidiu fazer mais um postagem detalhando melhor o argumento: os atentados de Paris "não aconteceram", paradoxalmente, porque foi um acontecimento noticiável. Da lama de Mariana aos atentados de Paris está em confronto duas noções de tempo: o histórico (colocado em segundo plano pela mídia) e o midiático. Ambiguidade, infogenia, noticiabilidade, tempo pontual e o terrorismo como um “pseudoevento” foram fatores que tornaram os eventos de Paris muito mais noticiáveis para a grande mídia do que a catástrofe humana e ambiental de Mariana.

Devido à grande polêmica entre os leitores sobre a postagem anterior sobre os atentados de Paris, o “Cinegnose” decidiu fazer um maior detalhamento para tentar esclarecer dúvidas e uns tantos males entendidos. Parece que muitos leitores se apegaram aos aspectos mais sensacionalistas da postagem - os atentados não aconteceram? Foi tudo montagem? Falsa Bandeira? E os mortos? Foi tudo simulação? Mais uma das malucas teorias sobre conspirações? Esse humilde blogueiro estaria virando um Michael Moore brasileiro?


De início o título: “Atentados de Paris não aconteceram” é uma óbvia referência ao filósofo francês Jean Baudrillard que, diante da Guerra do Golfo de 1991 e dos atentados à torres do WTC em 2001, disse que tais fatos “jamais aconteceram”. Claro, não no sentido do seu registro “real” ( houve mortos, violência e destruição), mas como exemplares de fatos midiáticos e midiatizáveis.

Nesse sentido, os atentados de Paris foram bem diferentes da tragédia humana e ambiental de Mariana/MG. Em Paris tivemos um fato regido pelo tempo midiático, enquanto em Minas Gerais um fato regido pelo tempo histórico.

Enquanto o tempo histórico tem uma natureza espontânea e externa ao contínuo midiático, ao contrário, no tempo midiático temos a geração de acontecimentos midiatizáveis. Em outras palavras, são acontecimentos produzidos propositalmente para se encaixar a um roteiro pré-existente nas redações da grande mídia – possuem timing, logística e oportunidade perfeita para a cobertura e transmissão.


Vamos comparar essas duas tragédias (Paris e Mariana) dentro dessa dualidade tempo midiático versus tempo histórico para esclarecer melhor a postagem anterior e aprofundar o tema.

O homem que morde o cão é noticiável?


Tive um professor na faculdade de Jornalismo que definia o conceito de notícia dessa maneira: se o cão morde um homem, não é notícia. Notícia é quando o homem morde o cão. Mas as coisas deixaram de ser assim tão simples a partir do momento em que a expansão dos meios de comunicação criou um contínuo midiático – uma espécie de horizonte de eventos: fora dele nada acontece (embora continue existindo lá fora a realidade e a História), porque não é midiatizável.

Notícia é tudo aquilo que possa ser midiatizável: para o acontecimento do homem que morde o cão virar notícia dependerá não só do local e timing – a mídia deverá ter um roteiro pré-existente sobre histórias com personagens hidrófobos para que o acontecimento se encaixe no script e mereça a categorização de “noticiável” .

O primeiro a perceber isso foi o historiador norte-americano Daniel Boorstin, o primeiro teórico da simulação. Boorstin falava de uma categoria bem peculiar de acontecimentos que estaria cada vez mais dominando a sociedade: os pseudoeventos.

Seriam eventos que se distinguiriam dos eventos reais pela sua natureza falsa ou que tende para o artifício, para a fabricação deliberada para as câmeras de TV, fotografia ou repórteres.


Os pseudoeventos seriam fatos deliberadamente planejados e roteirizados para serem noticiáveis. Os leitores e espectadores acreditam assistir a acontecimentos “reais” (fatos “criados por Deus”, na expressão de Boorstin), mas, na verdade, consomem encenações que simulam serem fatos espontâneos – sobre isso leia BOORSTIN, Daniel, The Image: A Guide of Pseudo-events in America, Vintage Books, 1992.

Baudrillard definiu esse conceito de simulação como “greve dos acontecimentos” ou “assassinato do real” ao ver os primeiros eventos internacionais como a Revolução Romena de 1989 e a Guerra do Golfo de 1992 sendo transmitidos ao vivo. Até chegar aos atentados de 2001 nos EUA onde terroristas esperaram por quase meia hora pela montagem dos links de TV ao vivo para poderem transmitir ao vivo o impacto do segundo jato contra o WTC.

Para Baudrillard eles “não aconteceram”: foram “não-acontecimentos”, fatos noticiáveis porque foram gerados para serem inseridos no interior do horizonte de eventos midiáticos.

 Partindo desses pressupostos, podemos entender porque a cobertura da catástrofe de Mariana pela grande mídia brasileira é desconfortável, cheia de dedos como se pisasse em ovos: como acontecimento real disruptivo, histórico e inesperado (embora fosse uma tragédia anunciada por especialistas) é incômodo para a mídia porque foge dos roteiros pré-existentes, como veremos analisando esse quadro comparativo abaixo:


Mariana
Paris
Natureza do acontecimento
Espontâneo, fora do horizonte de eventos midiático
Pseudoevento, destina-se à repercussão propagandística nas mídias

Tempo
Histórico, acumulativo

Midiático, pontual, choque
Quem ganha?
Discurso anti-privatização

Discurso da Guerra Anti-terror
Noticiabilidade
Interdição política-econômica, logística difícil

Retrancas prontas, Sucursais, agenda política internacional
Infogenia
Local ermo, esquecido, incivilizado
Imagerie da civilização Ocidental: alta cultura, requinte e sofisticação

Ambiguidade
Inexistente, imagens falam por si mesmas

“Meta-terrorismo”: ambiguidade como estratégia para criar múltiplas versões

a) Natureza do Acontecimento


A tragédia de Mariana foi disruptiva. Embora alertada por especialistas, foi inesperada para o horizonte midiático de eventos. Inscreve-se nos “fatos criados por Deus” por ser um acontecimento externo ao contínuo midiático.

Ao contrário, os atentados de Paris replicam a narrativa da super conspiração terroristas iniciadas pelo 11 de setembro de 2001 nos EUA. Desde então uma série de produções audiovisuais (jornalísticas e cinematográficas) vem repercutindo na midiosfera essa narrativa – Bin Laden, Al Qaeda, ISIS, etc. convertidos em personagens ficcionais no cinema e fluxo constante de informações e especulações jornalísticas.

Os atentados terroristas buscam a repercussão massiva, propagandística.


(b) Tempo


A tragédia de Mariana foi regida pelo tempo histórico: causas foram se acumulando de forma subterrânea até resultar na catástrofe humana e ambiental. Como todo acontecimento histórico, resulta de fatores econômicos, políticos, ambientais, culturais e psicológicos que vão de forma secreta e anônima evoluindo, acumulando, até chegar ao acontecimento disruptivo.

O tempo midiático é bem diferente: ele produz intervenções pontuais que não possuem uma natureza histórica ou acumulativa – são replicações, clonagens, repetições de um único roteiro. Por isso, para evitar o tédio por serem mais do mesmo, devem ter um timing perfeito: no caso de Paris, após a queda do Boeing russo no Egito e um pouco antes da Conferência Internacional sobre o clima a ser realizado na capital francesa.

c) Quem ganha?


Boorstin aponta que esse quesito é fundamental para compreender o pseudoevento. No caso de Mariana, a sua cobertura inferior à acumulação, consonância e onipresença de Paris tem uma explicação evidente: quem ganha com a divulgação da tragédia de Minas Gerais é o discurso anti-privatização.

Simplesmente, Mariana é incômoda para a grande mídia porque ela quer replicar a narrativa do elogio às privatizações e do Estado Mínimo – estatais seriam intrinsecamente ineficientes e corruptas. E a privatização da Companhia Vale do Rio Doce sempre foi para a mídia o modelo de uma privatização supostamente bem sucedida.

Enquanto isso, nos atentados de Paris ganha o discurso anti-terror da agenda política internacional do século XXI.


d) Noticiabilidade


O Acontecimento de Mariana tem uma logística difícil, ao contrário de Paris de onde rapidamente são acionadas as sucursais e correspondentes das TVs brasileiras na Europa.
Além disso, todo atentado terrorista (principalmente em centros como Nova York, Londres e Paris) é um kit imprensa dado de bandeja para a mídia: “retrancas” prontas (por exemplo, o caso do brasileiro que voltou para o Brasil horas antes dos atentados, flores nas calçadas em homenagem às vítimas, a caça aos suspeitos, relatos de terror e emoção das vítimas, multidões unidas cantando demonstrando que o Ocidente jamais cairá etc.).
Mariana não é noticiável porque bate de frente com o roteiro anti-estatal da grande mídia: por isso a cobertura até pode apresentar o drama humana das vítimas da Samarco, mas não oferece as longas matérias humanizadas de Paris onde vítimas têm rosto, nomes e emocionam-se em close para as câmeras.

e) Infogenia


Paris é infogênica (fotogenia+telegenia), isto é, mesmo com todo os horrores do atentado, a moldura dos acontecimentos trágicos sempre será a dos elegantes cafés, fachadas arquitetônicas em art noveau e a luminosidade noturna refletindo nas calçadas molhadas dando um toque noir aos enquadramentos. Isso corresponde a uma certa ideia de civilização daqueles que acreditam que a história da arte acabou no impressionismo de Monet e Degas – um certo imaginário classe média dominante na mentalidade de muitos dos telespectadores.


Enquanto isso, a tragédia de Mariana ocorre num lugar que é a antítese de Paris: incivilizado e esquecido – parece que a catástrofe daquele lugar perdido só confirmaria um destino natural a pobres diabos.

Paris escandaliza midiaticamente porque acompanhamos pessoas jovens, bonitas e cultas com todo um futuro pela frente, cuja morte seria um destino inimaginável.

e) Ambiguidade


O último e, talvez, o mais importante fator pois gera rentabilidade midiática: repercussão e circulação rápida da notícia por meio de mídia espontânea. Desde os estudos feitos por Gordon Allport e Leo Postman em 1947 (leia A Psicología del Rumor, Psique, 1988), o fator ambiguidade é considerado o mais importante na transformação de uma informação em boatos, especulações, gerando o que hoje se chama mídia espontânea.

As fontes dos jornalistas dão versões e informações muitas vez contraditórias e incompletas: qual arma utilizavam? Uma espingarda ou uma kalishinikov? Quantos terroristas eram? Alguém fugiu ou todos morreram? A polícia matou ou os terroristas se explodiram? As versões proliferam em uma crescente espiral especulativa: Tudo foi uma “Falsa Bandeira”? Ou um “Trabalho Interno”?

 A dúvida entre a realidade e a mentira dá ainda mais alcance à notícia, produzindo uma espiral especulativa. Portanto, estaríamos diante de um meta-terrorismo: um terrorismo autoconsciente onde o relato midiaticamente ambíguo do atentado se torna mais uma arma letal da verdade.

Enquanto isso, as imagens da tragédia de Mariana falam por si mesmas, unívocas, acachapantes. Até ganharam polêmicas nas redes sociais, porém como debate inócuo da comparação entre a tragédia brasileira e a francesa. Debates que, como sempre, terminam em ofensas, xingamentos e intolerância.

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