quinta-feira, junho 12, 2014

Praça Victor Civita é a Disneylândia do hiperliberalismo

Estátuas e instalações artísticas de lixo reciclado, teatro infantil falando sobre a escassez da água, uma modelo sorridente num estande da Sabesp abrindo uma torneirinha em um bebedouro para servir os visitantes com um copo d' água. Tudo isso com os ventos trazendo o mau cheiro do Rio Pinheiros. Essa é uma tarde na Praça Victor Civita, em São Paulo. Todos esses elementos têm uma secreta conexão. Essa não é uma praça comum, mas um autêntico parque temático, a Disneylândia de uma nova ordem futura onde a nossa sensibilidade está sendo moldada para aceitar a suposta realidade que a Natureza é finita e escassa. Tudo em um mix de entretenimento, cultura e estilo de vida que poderíamos chamar de “estética da escassez”, embalagem estética da nascente ideologia do hiperliberalismo: convergência do ambientalismo com a elite financeira e rentista como álibi para a mercantilização da água. E o Estado de São Paulo é a vanguarda desse movimento no Brasil.

Sábado à tarde com as crianças e esposa na Praça Victor Civita, em Pinheiros. Clima leve, descontraído e colorido com ciclistas descansando preguiçosamente, crianças gritando e correndo por todos os lados e uma simpática modelo ao lado do que parecia um grande bebedouro com o logo da Sabesp em um pequeno estande.

A certa altura, todos começam a se dirigir ao pequeno anfiteatro do parque. Ótimo! Um espetáculo infantil para a criançada e a chance dos pais recuperarem o fôlego depois de tanta correria. E a primeira atração era interessante: a trupe do Mad Science onde através de pequenas experiências com muita confusão e risadas, ensinam para a criançada princípios básicos de física, química e ecologia. Nada mais politicamente correto em um parque cercado de instalações e esculturas feitas com lixo reciclado e diversas hortas autossustentáveis em um lugar que, no passado, era um grande incinerador de lixo.

O show inicia e o vento começa a bater, trazendo o incômodo mau cheiro do rio Pinheiros, bem próximo dali. Nesse momento, os atores do Mad Science, em seus jalecos de cientistas e jeito amalucado, faziam uma breve exposição sobre o ciclo da água e, numa alegoria envolvendo um galão cheio de pequenas bolinhas de isopor, iam mostrando a proporção entre água salgada e potável no planeta... Como a água potável é um bem escasso... Principalmente com as alterações climáticas do planeta... por isso, a pouca chuva em São Paulo e as represas secando... logo, devemos economizar para enfrentarmos o futuro...

"Mad Science" na Praça: a
agua está sumindo
De repente, como um raio, surgiu na minha mente o que poderia chamar de uma epifania, não religiosa, mas semiótica: instantaneamente tudo passou a fazer sentido – o mau cheiro do rio trazido pelos ventos, o Mad Science provando por A + B que a água é um bem escasso, estátuas feitas com lixo reciclável, a atraente modelo do estande da Sabesp pronta para encher meu copo com água... e o parque autossustentável localizado entre o prédio da Editora Abril e as instalações da Sabesp...

Percebi que estava em um momento histórico, o momento da gestação de um Novo Mundo ou de uma Nova Ordem. Tudo estava ali, acontecendo ao redor de mim: aquela não é uma praça comum: é um parque temático travestido de praça pública. Um parque onde está sendo gestada uma nova ideologia, mesclada com um estilo de vida e uma estética que poderíamos denominar de estética da escassez. E na falta de um termo que expresse a radicalidade proposta por esse novo projeto político-econômico-estético, poderíamos chamar essa ideologia como hiperliberalismo.

Praça Victor Civita é uma Disneylândia ambiental?


Assim como a Disneylândia (o pai de todos os parques temáticos) nos deu a estética do simulacro e da simulação com castelos e mundos futuros fakes, a Praça Victor Civita constrói uma nova estética e sensibilidade: a percepção de que tudo é escasso, a Natureza, a camada de ozônio, os bens, a saúde, a sociedade, o futuro. Obras de arte precárias e de beleza duvidosa feita de restos reciclados de uma sociedade que criou sua própria escassez – onde colocar o lixo? E somado a isso, a modelo que erotiza a escassez ao abrir e fechar a torneirinha do grande bebedouro com um sorriso publicitário.

Praça Victor Civita é a Disneylândia ambiental?
E emoldurando tudo isso o onipresente mau cheiro do rio Pinheiros, como um atestado da precarização do meio ambiente e o reforço sensitivo da estética da escassez. Há algo de apologético e retórico na Praça Victor Civita: um discurso, um artifício (estandes, instalações, os sorrisos e alegria em meio a projeções tão sombrias para o futuro), a insistente e redundante ideia de que os recursos naturais são escassos e somos os responsáveis por isso. Por que esse parque corporativo e temático abraçou a causa ecológica?

Lanço aqui uma hipótese para explicar a minha súbita epifania: o verdadeiro sentido da Praça Victor Civita (como aparelho simultaneamente de entretenimento e ideologia que procura formar a nova mentalidade para um secreto projeto futuro) tem que ser buscado na história do movimento ambientalista contemporâneo e a apropriação do seu ideário pelas corporações e altas finanças internacionais. O objetivo: pela percepção da escassez, tornar a água um bem tão valorizado que acharíamos natural ela transformar-se em mercadoria. Afinal, a Natureza é frágil e escassa.

Ambientalismo: da contracultura à corporação


O movimento ambientalista contemporâneo emerge como tendência influente no pós-guerra, principalmente na Europa e América com o surgimento dos movimentos contraculturais - hippie, Flower Power e toda ideologia californiana que idealizava uma associação entre alta tecnologia industrial com a vida rústica integrada à Natureza. Contestavam o modelo de civilização em vigor. Alguns de inspiração marxista acreditavam que o problema estava no modo de produção capitalista, onde a ganância do Capital produzia desperdício e destruição.

A vigorosa emergência do movimento pegou na época os sociólogos de surpresa. Mas a reposta foi rápida com o surgimento do chamado Clube de Roma (fundado em 1968 por acadêmicos, cientistas, diplomatas e empresários) que em 1972 publica o relatório Os Limites do Crescimento, elaborado pela equipe do MIT – Massachussetts Institute of Technology. Nessa publicação está a origem de toda a atual agenda corporativa sobre o meio ambiente com temas que seriam cruciais para a humanidade tais como energia, poluição, tecnologia, saúde e crescimento populacional.

Clube de Roma em 1972:
a mudança do enfoque
ambiental da contracultura
Há uma reviravolta em relação à crítica ambientalista da contracultura: se lá o problema estava no modo de produção e nas relações sociais de trabalho (e, portanto, a causa ambiental estaria associada a questões mais amplas como direitos humanos, liberdade, desenvolvimento equitativo etc.), a partir do Clube de Roma a questão se desloca da sociedade para exclusivamente a Natureza, abordada como dotada de recursos finitos e escassos. Portanto, o problema estaria na irracionalidade humana em não saber disso e insistir no crescimento industrial e populacional. O culpado é o homem, pensado como um ser genérico, abstrato, sem definir classe social ou nacionalidade.

Dessa maneira, o discurso ambientalista do Clube de Roma cai como uma luva para uma economia mundial que, a partir do fim do Acordo de Bretton Woods iniciada com a moratória disfarçada da dívida dos EUA em 1971 feita pelo presidente Nixon, o dólar desatrelou do lastro ouro, impulsionando a liquidez e a financeirização em escala global. As altas finanças e a elite rentista passam a determinar o ritmo econômico. O crescimento industrial torna-se pouco atraente numa economia global marcada pela especulação e fluidez. Aquecimento econômico e pleno emprego são tudo que essa elite mais teme. Por isso, ela cria freios estruturais como os juros altos e a chantagem da inflação, caso a economia aqueça.

Cria-se uma espécie de economia negativa onde a produção de riqueza se desatrela do lastro produtivo. A financeirização e a liquidez tornam-se uma camisa de força para as forças produtivas da sociedade (como diria Marx, o trabalho morto domina o vivo), pois a criação do dinheiro-crédito é uma nova forma de poder (virtualmente infinita) pela capacidade do sistema financeiro criar crédito e riqueza sobre o nada.

Água escassa vira mercadoria

Mas o decisivo para a nova ordem econômica é a concepção dos recursos naturais como bens escassos. Se eles estão acabando, seja pelas mudanças climáticas, seja porque o planeta é pequeno demais para as ambições humanas, passam a serem bens altamente estimados e valorizados. A escassez é o pressuposto econômico no capitalismo para a transformação de qualquer coisa em mercadoria.

Assim como no neoliberalismo, o hiperliberalismo acredita que o mercado é a única instância que sincronizaria de forma racional a oferta e a demanda. A diferença, é que no hiperliberalismo essa mercantilização generalizada é agora inscrita na Natureza. Em outras palavras, a escassez dos recursos naturais é a justificativa “orgânica” para a ordem mercantil, com o apoio do discurso ambientalista corporativo.

Por isso, não são surpreendentes notícias de que ONGs ambientalistas como o Greenpeace tenham o apoio financeiro de grandes empresas petrolíferas, Fundação Rockfeller e mercado de energia elétrica – sobre isso clique aqui.

Um exemplo dessa convergência entre mercado e ambientalismo são os créditos de carbono (sistema de compensação onde empresas que não tenham conseguido diminuir a emissão de gases podem comprar créditos de terceiros que fizeram tais ações) negociados em bolsas de valores, leilões etc., criticados por mais favorecer o mercado financeiro do que o meio ambiente – sobre isso clique aqui.

Na medida em que o hiperliberalismo coloca o mercado como a única instância onde supostamente se equalizaria racionalmente os recursos naturais escassos, estes deixam de ter o controle público por meio das pressões pela privatização.

Por isso, uma poderosa engenharia de opinião pública está em ação nesse momento, e a Praça Victor Civita é um dos instrumentos dissimulados dessa ação. Assim como hoje achamos natural pagar pela energia elétrica transmitida por fios, depois que o banqueiro JP Morgan e a empresa Westinghouse levaram o físico Nikola Tesla à ruína no início do século XX, depois que descobriram que ela havia encontrado a transmissão livre de energia, abundante no planeta (sobre isso clique aqui); e assim como achamos natural trocar lâmpadas que queimam, depois que o cartel de lâmpadas dos EUA institucionalizou a obsolescência planejada, da mesma forma a estética e o discurso da escassez do hiperliberalismo fará acharmos natural pagar pela água como uma mercadoria qualquer cotada pelo mercado.

Se o neoliberalismo foi a ideologia do capitalismo industrial na sua fase tardia, o hiperliberalismo é a ideologia da elite financeira e rentista. Isso leva a crer que a Praça Victor Civita é a vanguarda de um projeto que pretende se expandir, do Estado de São Paulo para todo o País. A Esquerda critica os 20 anos de governos do PSDB no Estado de São Paulo de incompetentes pela má gestão citando os exemplos da crise hídrica, a quebra financeira da USP etc. Pelo contrário: eles estão aplicando rigidamente e com precisão a agenda do hiperliberalismo imposto pela elite financeira como, por exemplo, os bancos internacionais de desenvolvimento – tornar escasso todos os bens tidos como universais (a educação, a água, a energia e, no futuro, até o ar) para submetê-los à regulação do mercado.

A “ciência maluca” da Mad Science apresentada para um público que se divertia ao mesmo tempo em que respirava o cheiro fétido do Rio Pinheiros é uma pálida imagem do que acontecerá quando a Praça Victor Civita realizar o seu propósito.


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