Estátuas e
instalações artísticas de lixo reciclado, teatro infantil falando sobre a
escassez da água, uma modelo sorridente num estande da Sabesp abrindo uma
torneirinha em um bebedouro para servir os visitantes com um copo d' água. Tudo isso com
os ventos trazendo o mau cheiro do Rio Pinheiros. Essa é uma tarde na Praça
Victor Civita, em São Paulo. Todos esses elementos têm uma secreta conexão.
Essa não é uma praça comum, mas um autêntico parque temático, a Disneylândia de
uma nova ordem futura onde a nossa sensibilidade está sendo moldada para
aceitar a suposta realidade que a Natureza é finita e escassa. Tudo em um mix de
entretenimento, cultura e estilo de vida que poderíamos chamar de “estética da
escassez”, embalagem estética da nascente ideologia do hiperliberalismo:
convergência do ambientalismo com a elite financeira e rentista como álibi para a mercantilização da água. E o Estado de
São Paulo é a vanguarda desse movimento no Brasil.
Sábado à tarde
com as crianças e esposa na Praça Victor Civita, em Pinheiros. Clima leve, descontraído
e colorido com ciclistas descansando preguiçosamente, crianças gritando e
correndo por todos os lados e uma simpática modelo ao lado do que parecia um
grande bebedouro com o logo da Sabesp em um pequeno estande.
A certa altura,
todos começam a se dirigir ao pequeno anfiteatro do parque. Ótimo! Um
espetáculo infantil para a criançada e a chance dos pais recuperarem o fôlego
depois de tanta correria. E a primeira atração era interessante: a trupe do Mad Science onde através de pequenas experiências com muita
confusão e risadas, ensinam para a criançada princípios
básicos de física, química e ecologia. Nada mais politicamente correto em um
parque cercado de instalações e esculturas feitas com lixo reciclado e diversas
hortas autossustentáveis em um lugar que, no passado, era um grande incinerador
de lixo.
O show inicia e
o vento começa a bater, trazendo o incômodo mau cheiro do rio Pinheiros, bem
próximo dali. Nesse momento, os atores do Mad
Science, em seus jalecos de cientistas e jeito amalucado, faziam uma breve
exposição sobre o ciclo da água e, numa alegoria envolvendo um galão cheio de
pequenas bolinhas de isopor, iam mostrando a proporção entre água salgada e
potável no planeta... Como a água potável é um bem escasso... Principalmente
com as alterações climáticas do planeta... por isso, a pouca chuva em São Paulo
e as represas secando... logo, devemos economizar para enfrentarmos o futuro...
"Mad Science" na Praça: a agua está sumindo |
Percebi que estava em um
momento histórico, o momento da gestação de um Novo Mundo ou de uma Nova Ordem.
Tudo estava ali, acontecendo ao redor de mim: aquela não é uma praça comum: é
um parque temático travestido de praça pública. Um parque onde está sendo
gestada uma nova ideologia, mesclada com um estilo de vida e uma estética que
poderíamos denominar de estética da
escassez. E na falta de um termo que expresse a radicalidade proposta por
esse novo projeto político-econômico-estético, poderíamos chamar essa ideologia
como hiperliberalismo.
Praça Victor Civita é uma Disneylândia ambiental?
Assim
como a Disneylândia (o pai de todos os parques temáticos) nos deu a estética do
simulacro e da simulação com castelos e mundos futuros fakes, a Praça Victor Civita constrói uma nova estética e
sensibilidade: a percepção de que tudo é escasso, a Natureza, a camada de
ozônio, os bens, a saúde, a sociedade, o futuro. Obras de arte precárias e de
beleza duvidosa feita de restos reciclados de uma sociedade que criou sua
própria escassez – onde colocar o lixo? E somado a isso, a modelo que erotiza a
escassez ao abrir e fechar a torneirinha do grande bebedouro com um sorriso
publicitário.
Praça Victor Civita é a Disneylândia ambiental? |
Lanço aqui uma
hipótese para explicar a minha súbita epifania: o verdadeiro sentido da Praça
Victor Civita (como aparelho simultaneamente de entretenimento e ideologia que
procura formar a nova mentalidade para um secreto projeto futuro) tem que ser
buscado na história do movimento ambientalista contemporâneo e a apropriação do
seu ideário pelas corporações e altas finanças internacionais. O objetivo: pela percepção da escassez, tornar a água um bem tão valorizado que acharíamos natural ela transformar-se em mercadoria. Afinal, a Natureza é frágil e escassa.
Ambientalismo: da contracultura à corporação
O movimento
ambientalista contemporâneo emerge como tendência influente no pós-guerra,
principalmente na Europa e América com o surgimento dos movimentos
contraculturais - hippie, Flower Power e toda ideologia
californiana que idealizava uma associação entre alta tecnologia industrial com
a vida rústica integrada à Natureza. Contestavam o modelo de civilização em
vigor. Alguns de inspiração marxista acreditavam que o problema estava no modo
de produção capitalista, onde a ganância do Capital produzia desperdício e
destruição.
A vigorosa
emergência do movimento pegou na época os sociólogos de surpresa. Mas a reposta
foi rápida com o surgimento do chamado Clube de Roma (fundado em 1968 por acadêmicos, cientistas, diplomatas e empresários) que em 1972 publica o
relatório Os Limites do Crescimento,
elaborado pela equipe do MIT – Massachussetts Institute of Technology. Nessa
publicação está a origem de toda a atual agenda corporativa sobre o meio
ambiente com temas que seriam cruciais para a humanidade tais como energia,
poluição, tecnologia, saúde e crescimento populacional.
Clube de Roma em 1972: a mudança do enfoque ambiental da contracultura |
Dessa maneira,
o discurso ambientalista do Clube de Roma cai como uma luva para uma economia
mundial que, a partir do fim do Acordo de Bretton Woods iniciada com a moratória
disfarçada da dívida dos EUA em 1971 feita pelo presidente Nixon, o dólar
desatrelou do lastro ouro, impulsionando a liquidez e a financeirização em
escala global. As altas finanças e a elite rentista passam a determinar o ritmo
econômico. O crescimento industrial torna-se pouco atraente numa economia
global marcada pela especulação e fluidez. Aquecimento econômico e pleno
emprego são tudo que essa elite mais teme. Por isso, ela cria freios
estruturais como os juros altos e a chantagem da inflação, caso a economia
aqueça.
Cria-se uma
espécie de economia negativa onde a produção de riqueza se desatrela do lastro
produtivo. A financeirização e a liquidez
tornam-se uma camisa de força para as forças produtivas da sociedade (como
diria Marx, o trabalho morto domina o vivo), pois a criação do dinheiro-crédito
é uma nova forma de poder (virtualmente infinita) pela capacidade do sistema
financeiro criar crédito e riqueza sobre o nada.
Água escassa vira mercadoria
Mas o decisivo para a nova ordem econômica é a
concepção dos recursos naturais como bens escassos. Se eles estão acabando,
seja pelas mudanças climáticas, seja porque o planeta é pequeno demais para as
ambições humanas, passam a serem bens altamente estimados e valorizados. A
escassez é o pressuposto econômico no capitalismo para a transformação de
qualquer coisa em mercadoria.
Assim como no neoliberalismo, o hiperliberalismo
acredita que o mercado é a única instância que sincronizaria de forma racional
a oferta e a demanda. A diferença, é que no hiperliberalismo essa
mercantilização generalizada é agora inscrita na Natureza. Em outras palavras,
a escassez dos recursos naturais é a justificativa “orgânica” para a ordem
mercantil, com o apoio do discurso ambientalista corporativo.
Por isso, não são surpreendentes notícias de que ONGs
ambientalistas como o Greenpeace tenham o apoio financeiro de grandes empresas
petrolíferas, Fundação Rockfeller e mercado de energia elétrica – sobre isso clique aqui.
Um exemplo dessa convergência entre mercado e
ambientalismo são os créditos de carbono (sistema de compensação onde empresas
que não tenham conseguido diminuir a emissão de gases podem comprar créditos de
terceiros que fizeram tais ações) negociados em bolsas de valores, leilões etc.,
criticados por mais favorecer o mercado financeiro do que o meio ambiente –
sobre isso clique aqui.
Na medida em que o hiperliberalismo coloca o mercado
como a única instância onde supostamente se equalizaria racionalmente os
recursos naturais escassos, estes deixam de ter o controle público por meio das
pressões pela privatização.
Por isso, uma poderosa engenharia de opinião pública
está em ação nesse momento, e a Praça Victor Civita é um dos instrumentos
dissimulados dessa ação. Assim como hoje achamos natural pagar pela energia
elétrica transmitida por fios, depois que o banqueiro JP Morgan e a empresa
Westinghouse levaram o físico Nikola Tesla à ruína no início do século XX,
depois que descobriram que ela havia encontrado a transmissão livre de energia,
abundante no planeta (sobre isso clique aqui);
e assim como achamos natural trocar lâmpadas que queimam, depois que o cartel
de lâmpadas dos EUA institucionalizou a obsolescência planejada, da mesma forma
a estética e o discurso da escassez do hiperliberalismo fará acharmos natural pagar pela água como uma mercadoria qualquer cotada pelo mercado.
Se o
neoliberalismo foi a ideologia do capitalismo industrial na sua fase tardia, o
hiperliberalismo é a ideologia da elite financeira e rentista. Isso leva a crer
que a Praça Victor Civita é a vanguarda de um projeto que pretende se expandir,
do Estado de São Paulo para todo o País. A Esquerda critica os 20 anos de
governos do PSDB no Estado de São Paulo de incompetentes pela má gestão citando
os exemplos da crise hídrica, a quebra financeira da USP etc. Pelo contrário:
eles estão aplicando rigidamente e com precisão a agenda do hiperliberalismo
imposto pela elite financeira como, por exemplo, os bancos internacionais de
desenvolvimento – tornar escasso todos os bens tidos como universais (a
educação, a água, a energia e, no futuro, até o ar) para submetê-los à regulação
do mercado.
A
“ciência maluca” da Mad Science apresentada
para um público que se divertia ao mesmo tempo em que respirava o cheiro fétido
do Rio Pinheiros é uma pálida imagem do que acontecerá quando a Praça Victor
Civita realizar o seu propósito.
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