Quantas vezes Nova York já foi destruída no cinema,
literatura, rádio e TV? Monstros, alienígenas, catástrofes geológicas,
climáticas, destruições provocadas por lutas de super-heróis com vilões. Por que essa insistência das imagens de
destruição da “Big Apple” na cultura norte-americana? Pode parecer uma questão
supérflua de um cinéfilo diletante, mas se considerarmos que essas imagens são
irradiadas para todo o planeta pela indústria do entretenimento norte-americana,
passa a ser uma questão ideológica: o que na verdade Hollywood exporta para o
mundo: paranoia? Motivação subliminar para a obsolescência de produtos? Ou a
elaboração de um neoapocalipse necessário para a criação de uma nova religião
global? Vamos explorar algumas hipóteses sobre os porquês dessa obsessão
norte-americana.
Meridth Blake,
28, vive no Brooklyn, Nova York. Ele relata uma insólita cena quando estava em
uma estação do metrô: “Saí do trem e dei de cara com um pôster do filme Cloverfield com a Estátua da Liberdade
decepada. Subi as escadas para, em seguida, ver o pôster do filme Eu Sou a Lenda com a ponte do Brooklin
em ruínas. Pensei, ora! Outro filme que destrói Nova York!”.
Com uma
diferença de um mês de lançamentos, ambos os filmes contavam as desventuras de
protagonistas em uma Nova York destruída por monstros ou por epidemias. Isso
foi em 2008, quando os nova-iorquinos ainda sentiam os ecos da queda das torres
do WTC em 2001: “lembro-me da cena do filme Cloverfield
com pessoas correndo para se esconder em uma delicatessen com poeira e
escombros por toda parte. É tão obviamente uma alusão ao 11/09...”, destacou
Blake - leia "Filmakers View New York as a Disaster Waiting to Happen".
Escritores e
diretores de cinema vêm a quase dois séculos criando imagens de aniquilamento e
destruição de Nova York. Terremoto, fogo, enchente, meteoros, cometa,
marcianos, eras glaciais, fantasmas, bomba atômica. Terrorismo, invasões, raios
lasers disparados de naves espaciais, torpedos lançados de Zeppelins, mísseis
vindos de navios de guerra. A cidade foi invadida por iguanas gigantescos,
lobos, macacos etc. A cidade foi demolida, explodida e tragada pelo oceano em
cartoons, fotografias, livros, filmes, jogos de computador – versões da Microsoft´s Flight Simulator incluíram as torres do WTC na visão de Nova York de dentro do cockpit, para depois serem retiradas pela alusão ao 11/09.
A preferência por Nova York
Entre cinéfilos,
é o local preferido para filmes-catástrofe. Pesquisa realizada pelo site Fandango.com em 2008 apontou que 55%
preferiam Nova York, acompanhado de Londres (14%), Tokio (12%), Los Angeles
(11%) e São Francisco (8%).
Em Destruction of Gotham, livro de 1886 de
Joaquin Miller uma grande bola de fogo engole a cidade; a revista de sci fi Amazing Stories, da década de 1920,
muitos contos narram as desventuras da cidade com arranha-céus derrubados por
raios de calor alienígenas e torpedos disparados por Zeppelins; a transmissão
radifônica da CBS em 1938 de Orson Welles leva milhares ao pânico de uma
suposta invasão da cidade por aranhas mecânicas marcianas.
No cinema a
lista é muita extensa para enumerarmos aqui: Nova York já foi destruída 40
vezes. Seguido de Los Angeles, que Hollywood já destruiu 27 vezes. O curioso é
que quanto a natureza da destruição, Los Angeles foi mais envolvida em
catástrofes geológicas e eventos climáticos, enquanto Nova York foi
preferencialmente vítima de monstros, ataques alienígenas e batalhas de super
heróis como Super Homem e Homem Aranha – leia “Map:
How Hollywood Has Destroyed America”.
Parece que
Hollywood sempre viu Nova York como um desastre à espera de acontecer, como
acabou se concretizando com o atentado terrorista ao WTC em 2001. As imagens
tanto na TV quanto ao vivo foram tão surpreendentes na similaridade com os
filmes catástrofes que muitos depoimentos de testemunhas nas ruas falaram sobre
uma estranha sensação de irrealidade. A tal ponto que pensadores como Jean
Baudrillard declararam que o evento jamais aconteceu, já que o episódio não
teria sido um fato histórico no sentido estrito, mas midiático – o poder da
precessão das imagens ou do simulacro sobre o tempo histórico – sobre esse tema
clique
aqui.
Por que essa
obsessão da cultura americana pela destruição da cidade de Nova York? Pode
parecer uma questão apenas de um diletante cinéfilo, mas ela vem investida de
uma urgência ideológica: a paranoia fóbica pela destruição é o principal
arquétipo da cultura irradiada para todo o mundo pela indústria do
entretenimento norte-americana.
Vamos explorar
algumas hipóteses sobre essa urgência hollywoodiana em destruir a chamada Big
Apple e espelhar essas imagens e efeitos especiais para todo o mundo.
1 – Obsolescência planejada
Essa
hipótese já foi discutida em postagem anterior onde se associava o ímpeto
generalizado por destruição no cinema americano (cenas
de colisão de automóveis, incêndios, a descartabilidade ou perda de objetos ou
bens como automóveis, roupas e casas que parecem não incomodar muito os
personagens etc.) como estratégia subliminar do cinema em naturalizar a
obsolescência ou descartabilidade, característica dominante da sociedade de
consumo.
Sewell Chan no
artigo “The
Irresistible Urge to Destroy New York on Screen”. Chan afirma que Nova York seria o símbolo de uma era do capitalismo que
requeria a concentração de capital – e, por isso de pessoas – em um grande
sistema de fábricas e escritórios, representado pela sua verticalização em uma
magnitude que parece sufocada sob seu próprio excesso. Com a financeirização do
capitalismo e a liquidez e descentralização dos fluxos de negócios em um
mercado global, o modelo urbano de Nova York torna-se obsoleto, pesado e
oneroso. Pronta para tornar-se imagerie da sua própria obsolescência.
2 – Cinema esquizo e o medo fóbico do outro
Louis Guglielmi, Mental Geography, 1938. |
Para o arquiteto e historiador Max Page no
livro The City´s End: Two Centuries of Fantasies, Fears and Premonitions of New
York Destruction, a recorrência desse tema expressaria o medo fóbico pelos
fluxos migratórios e as decorrentes tensões culturais e medos: violência,
conflitos etc.
Esse
medo fóbico pelo outro que marcaria a cultura norte-americana criaria aquilo
que Jason Horsley chama de “cinema esquizo”: uma dualidade entre momentos em
que Hollywood permitiu a produção de filmes “esquizofrenicamente perturbadores
e subversivos” e filmes “recuperativos”, verdadeiros neurolépticos onde
paranoia e psicose das narrativas fílmicas são submetidas aos limites
racionalizantes do mercado.
Se Orson Wells em “Guerra
dos Mundos” involuntariamente transmite o inconsciente coletivo da paranoia
americana e, logo depois, o filme Noir vai radicalizar essa percepção ao
apresentar um mundo onde não há mocinhos e nem bandidos e o Mal é a própria condição
de uma realidade que se dissolve em chuva e névoas, em resposta Hollywood reage
com os filmes sci-fi que irão traduzir esse inconsciente coletivo como medo da
Guerra Fria. Séries de TV como “Além
da Imaginação” e filmes
como “Vampiros de
Almas”, “O
Ataque dos Discos Voadores”, o monstro de outro planeta em “stop motion” em “A
20 Milhões de Milhas da Terra” onde Roma é salva pelos americanos etc., reduz a paranoia ao medo do
Outro. No Outro (alienígenas, monstros, agentes corruptos infiltrados na
sociedade) é projetada a fragmentação do ego. O paroxismo da ameaça do Outro
infiltrado chega com o filme The
Village of the Damned (1960) onde as crianças de uma localidade começam a se tornar seres
alienígenas.
A onda atual
de filmes catástrofes pós-atentados de 2001 se enquadraria no chamado “cinema
recuperativo”: formas de violência sadística, exibicionista e ritual para
espiar a ameaça do outro.
3 – Uma nova escatologia?
The Twin Towers are attacked in Challenge of the Superfriends, 1978 |
O
aumento de produções que tomam a destruição da Big Apple, principalmente após o
início globalização econômica no início dos anos 1990, refletiria um movimento
mais profundo da criação de uma nova religião ecumênica global.
Após a Segunda Guerra mundial encontramos duas
tendências aparentemente contraditórias: de um lado a crise ou o esvaziamento
da autoridade simbólica das religiões tradicionais pela expansão do
materialismo, niilismo e hedonismo do imaginário da sociedade de consumo; e do
outro o renascimento de uma espécie de misticismo de massas com a expansão da
astrologia na década de 1950 e o chamado movimento “New Age” - movimento espiritual buscando a fusão Oriente/Ocidente ao mesclar
auto-ajuda, psicologia motivacional, parapsicologia, esoterismo e física
quântica.
A globalização econômica
e cultural exigiria a construção de uma nova religião global. Como toda
religião salvacionista como o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo, é
necessário uma escatologia - profecias
sobre o final do mundo, comumente associado a conceitos como “Messias”,
“profetas” ou “novos reinos” que unificariam o que foi perdido antes da
intromissão do pecado na História humana.
A escatologia dessa nova religião global (New Age?)
seria o que chamamos anteriormente de “neoapocalíptica secularizada”: uma
estranha associação do espiritualismo com a consciência ecológica associada a mitos
que esconderiam a profecia fatal da destruição por meio de catástrofes
climáticas, bélicas ou pelo esgotamento dos recursos do planeta.
E nada mais icônico e impactante nessa sistemática construção
de uma nova religião ecumênica global do que a destruição da cidade-símbolo que
representa a própria urbanidade, com seu imponente horizonte dominado pelos
arranha-céus – a Babilônia ou a Torre de Babel pós-moderna. Qual cidade seria melhor
para ser destruída pelas profecias do novo ecumenismo global do que Nova York?
4 – Destruição e o prazer do espectador
Stuart Leeds, New Yorker cartoonist parodying meteor hysteria, 1992 © The New Yorker Collection |
O
teórico norte-americano Steven Shaviro no seu livro Cinematic Body propõe um
olhar menos pessimista - haveria um potencial progressista nesse fascínio do
espectador pelas imagens de violência e destruição. Contrariando o modelo de
interpretação psicanalítico que vê o espectador como alguém que busca no cinema
o prazer voyeurista e sádico como forma de estabilização do ego e identidade,
Shaviro propõem o inverso: o prazer do espectador não está na identificação
especular, mas em uma espécie de passividade e masoquismo – o deixar-se levar
pelo impacto sensorial e até físico das imagens, como forma de abandono do ego
no fluxo das imagens.
Essa
visceralidade das imagens sempre foi negligenciada pelos teóricos do cinema que
vêm o filme como mera uma ilusão mental ou fantasias. Para Shaviro, esse
fascínio “tátil” pelas imagens é instrumentalizado pela indústria do
entretenimento e propaganda. Mas esse
prazer teria uma potencialidade progressiva ao criar um acontecimento, um
evento que rompa a ordem do cotidiano, os papéis e a identidade.
Filmes-catástrofe,
assim como a pornografia e violência, conteriam esse momento emancipador pelo
fascínio das imagens em si mesmas (presença, impacto, acontecimento) como
ruptura e quebra da ordem cotidiana. Mas a narrativa traria o espectador de
volta à ordem ao retirá-lo desse prazer masoquista e trazê-lo à ordem do prazer
sádico pela identificação com os heróis que salvam o dia, restabelecem a ordem
e nos faz sair do cinema para as ruas como se nada tivesse acontecido.
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