sexta-feira, junho 20, 2014

Por que Nova York precisa ser destruída?

Quantas vezes Nova York já foi destruída no cinema, literatura, rádio e TV? Monstros, alienígenas, catástrofes geológicas, climáticas, destruições provocadas por lutas de super-heróis com vilões.  Por que essa insistência das imagens de destruição da “Big Apple” na cultura norte-americana? Pode parecer uma questão supérflua de um cinéfilo diletante, mas se considerarmos que essas imagens são irradiadas para todo o planeta pela indústria do entretenimento norte-americana, passa a ser uma questão ideológica: o que na verdade Hollywood exporta para o mundo: paranoia? Motivação subliminar para a obsolescência de produtos? Ou a elaboração de um neoapocalipse necessário para a criação de uma nova religião global? Vamos explorar algumas hipóteses sobre os porquês dessa obsessão norte-americana.  

Meridth Blake, 28, vive no Brooklyn, Nova York. Ele relata uma insólita cena quando estava em uma estação do metrô: “Saí do trem e dei de cara com um pôster do filme Cloverfield com a Estátua da Liberdade decepada. Subi as escadas para, em seguida, ver o pôster do filme Eu Sou a Lenda com a ponte do Brooklin em ruínas. Pensei, ora! Outro filme que destrói Nova York!”.

Com uma diferença de um mês de lançamentos, ambos os filmes contavam as desventuras de protagonistas em uma Nova York destruída por monstros ou por epidemias. Isso foi em 2008, quando os nova-iorquinos ainda sentiam os ecos da queda das torres do WTC em 2001: “lembro-me da cena do filme Cloverfield com pessoas correndo para se esconder em uma delicatessen com poeira e escombros por toda parte. É tão obviamente uma alusão ao 11/09...”, destacou Blake - leia "Filmakers View New York as a Disaster Waiting to Happen".


Escritores e diretores de cinema vêm a quase dois séculos criando imagens de aniquilamento e destruição de Nova York. Terremoto, fogo, enchente, meteoros, cometa, marcianos, eras glaciais, fantasmas, bomba atômica. Terrorismo, invasões, raios lasers disparados de naves espaciais, torpedos lançados de Zeppelins, mísseis vindos de navios de guerra. A cidade foi invadida por iguanas gigantescos, lobos, macacos etc. A cidade foi demolida, explodida e tragada pelo oceano em cartoons, fotografias, livros, filmes, jogos de computador – versões da  Microsoft´s Flight Simulator incluíram as torres do WTC na visão de Nova York de dentro do cockpit, para depois serem retiradas pela alusão ao 11/09.

A preferência por Nova York



Entre cinéfilos, é o local preferido para filmes-catástrofe. Pesquisa realizada pelo site Fandango.com em 2008 apontou que 55% preferiam Nova York, acompanhado de Londres (14%), Tokio (12%), Los Angeles (11%) e São Francisco (8%).

Em Destruction of Gotham, livro de 1886 de Joaquin Miller uma grande bola de fogo engole a cidade; a revista de sci fi Amazing Stories, da década de 1920, muitos contos narram as desventuras da cidade com arranha-céus derrubados por raios de calor alienígenas e torpedos disparados por Zeppelins; a transmissão radifônica da CBS em 1938 de Orson Welles leva milhares ao pânico de uma suposta invasão da cidade por aranhas mecânicas marcianas.

No cinema a lista é muita extensa para enumerarmos aqui: Nova York já foi destruída 40 vezes. Seguido de Los Angeles, que Hollywood já destruiu 27 vezes. O curioso é que quanto a natureza da destruição, Los Angeles foi mais envolvida em catástrofes geológicas e eventos climáticos, enquanto Nova York foi preferencialmente vítima de monstros, ataques alienígenas e batalhas de super heróis como Super Homem e Homem Aranha – leia “Map: How Hollywood Has Destroyed America”.

Parece que Hollywood sempre viu Nova York como um desastre à espera de acontecer, como acabou se concretizando com o atentado terrorista ao WTC em 2001. As imagens tanto na TV quanto ao vivo foram tão surpreendentes na similaridade com os filmes catástrofes que muitos depoimentos de testemunhas nas ruas falaram sobre uma estranha sensação de irrealidade. A tal ponto que pensadores como Jean Baudrillard declararam que o evento jamais aconteceu, já que o episódio não teria sido um fato histórico no sentido estrito, mas midiático – o poder da precessão das imagens ou do simulacro sobre o tempo histórico – sobre esse tema clique aqui.

Por que essa obsessão da cultura americana pela destruição da cidade de Nova York? Pode parecer uma questão apenas de um diletante cinéfilo, mas ela vem investida de uma urgência ideológica: a paranoia fóbica pela destruição é o principal arquétipo da cultura irradiada para todo o mundo pela indústria do entretenimento norte-americana.

Vamos explorar algumas hipóteses sobre essa urgência hollywoodiana em destruir a chamada Big Apple e espelhar essas imagens e efeitos especiais para todo o mundo.

1 – Obsolescência planejada


Essa hipótese já foi discutida em postagem anterior onde se associava o ímpeto generalizado por destruição no cinema americano (cenas de colisão de automóveis, incêndios, a descartabilidade ou perda de objetos ou bens como automóveis, roupas e casas que parecem não incomodar muito os personagens etc.) como estratégia subliminar do cinema em naturalizar a obsolescência ou descartabilidade, característica dominante da sociedade de consumo. 

Sewell Chan no artigo “The Irresistible Urge to Destroy New York on Screen”. Chan afirma que Nova York seria o símbolo de uma era do capitalismo que requeria a concentração de capital – e, por isso de pessoas – em um grande sistema de fábricas e escritórios, representado pela sua verticalização em uma magnitude que parece sufocada sob seu próprio excesso. Com a financeirização do capitalismo e a liquidez e descentralização dos fluxos de negócios em um mercado global, o modelo urbano de Nova York torna-se obsoleto, pesado e oneroso. Pronta para tornar-se imagerie da sua própria obsolescência.

2 – Cinema esquizo e o medo fóbico do outro

Louis Guglielmi,
Mental Geography, 1938.

 Para o arquiteto e historiador Max Page no livro The City´s End: Two Centuries of Fantasies, Fears and Premonitions of New York Destruction, a recorrência desse tema expressaria o medo fóbico pelos fluxos migratórios e as decorrentes tensões culturais e medos: violência, conflitos etc.

Esse medo fóbico pelo outro que marcaria a cultura norte-americana criaria aquilo que Jason Horsley chama de “cinema esquizo”: uma dualidade entre momentos em que Hollywood permitiu a produção de filmes “esquizofrenicamente perturbadores e subversivos” e filmes “recuperativos”, verdadeiros neurolépticos onde paranoia e psicose das narrativas fílmicas são submetidas aos limites racionalizantes do mercado.

Se Orson Wells em “Guerra dos Mundos” involuntariamente transmite o inconsciente coletivo da paranoia americana e, logo depois, o filme Noir vai radicalizar essa percepção ao apresentar um mundo onde não há mocinhos e nem bandidos e o Mal é a própria condição de uma realidade que se dissolve em chuva e névoas, em resposta Hollywood reage com os filmes sci-fi que irão traduzir esse inconsciente coletivo como medo da Guerra Fria. Séries de TV como “Além da Imaginação” e filmes como “Vampiros de Almas”“O Ataque dos Discos Voadores”, o monstro de outro planeta em “stop motion” em “A 20 Milhões de Milhas da Terra” onde Roma é salva pelos americanos etc., reduz a paranoia ao medo do Outro. No Outro (alienígenas, monstros, agentes corruptos infiltrados na sociedade) é projetada a fragmentação do ego. O paroxismo da ameaça do Outro infiltrado chega com o filme The Village of the Damned (1960) onde as crianças de uma localidade começam a se tornar seres alienígenas.

A onda atual de filmes catástrofes pós-atentados de 2001 se enquadraria no chamado “cinema recuperativo”: formas de violência sadística, exibicionista e ritual para espiar a ameaça do outro.

3 – Uma nova escatologia?


The Twin Towers are attacked in Challenge
of the Superfriends, 1978
O aumento de produções que tomam a destruição da Big Apple, principalmente após o início globalização econômica no início dos anos 1990, refletiria um movimento mais profundo da criação de uma nova religião ecumênica global.

Após a Segunda Guerra mundial encontramos duas tendências aparentemente contraditórias: de um lado a crise ou o esvaziamento da autoridade simbólica das religiões tradicionais pela expansão do materialismo, niilismo e hedonismo do imaginário da sociedade de consumo; e do outro o renascimento de uma espécie de misticismo de massas com a expansão da astrologia na década de 1950 e o chamado movimento “New Age” - movimento espiritual buscando a fusão Oriente/Ocidente ao mesclar auto-ajuda, psicologia motivacional, parapsicologia, esoterismo e física quântica.

A globalização econômica e cultural exigiria a construção de uma nova religião global. Como toda religião salvacionista como o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo, é necessário uma escatologia - profecias sobre o final do mundo, comumente associado a conceitos como “Messias”, “profetas” ou “novos reinos” que unificariam o que foi perdido antes da intromissão do pecado na História humana.

A escatologia dessa nova religião global (New Age?) seria o que chamamos anteriormente de “neoapocalíptica secularizada”: uma estranha associação do espiritualismo com a consciência ecológica associada a mitos que esconderiam a profecia fatal da destruição por meio de catástrofes climáticas, bélicas ou pelo esgotamento dos recursos do planeta.

E nada mais icônico e impactante nessa sistemática construção de uma nova religião ecumênica global do que a destruição da cidade-símbolo que representa a própria urbanidade, com seu imponente horizonte dominado pelos arranha-céus – a Babilônia ou a Torre de Babel pós-moderna. Qual cidade seria melhor para ser destruída pelas profecias do novo ecumenismo global do que Nova York?

4 – Destruição e o prazer do espectador


Stuart Leeds, New Yorker cartoonist parodying
meteor hysteria,
1992 © The New Yorker Collection
O teórico norte-americano Steven Shaviro no seu livro Cinematic Body propõe um
olhar menos pessimista - haveria um potencial progressista nesse fascínio do espectador pelas imagens de violência e destruição. Contrariando o modelo de interpretação psicanalítico que vê o espectador como alguém que busca no cinema o prazer voyeurista e sádico como forma de estabilização do ego e identidade, Shaviro propõem o inverso: o prazer do espectador não está na identificação especular, mas em uma espécie de passividade e masoquismo – o deixar-se levar pelo impacto sensorial e até físico das imagens, como forma de abandono do ego no fluxo das imagens.

Essa visceralidade das imagens sempre foi negligenciada pelos teóricos do cinema que vêm o filme como mera uma ilusão mental ou fantasias. Para Shaviro, esse fascínio “tátil” pelas imagens é instrumentalizado pela indústria do entretenimento e propaganda.  Mas esse prazer teria uma potencialidade progressiva ao criar um acontecimento, um evento que rompa a ordem do cotidiano, os papéis e a identidade.


Filmes-catástrofe, assim como a pornografia e violência, conteriam esse momento emancipador pelo fascínio das imagens em si mesmas (presença, impacto, acontecimento) como ruptura e quebra da ordem cotidiana. Mas a narrativa traria o espectador de volta à ordem ao retirá-lo desse prazer masoquista e trazê-lo à ordem do prazer sádico pela identificação com os heróis que salvam o dia, restabelecem a ordem e nos faz sair do cinema para as ruas como se nada tivesse acontecido.

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