A grande mídia
esperou até o último instante, aguardando talvez alguma “bala de prata” que
prejudicasse, suspendesse ou, no mínimo, colocasse em xeque a realização da
Copa do Mundo no Brasil. Um evento que se tornou uma verdadeira dor de cabeça
para uma mídia que assumiu explicitamente a oposição política. Mas a Copa vai
começar e agora nada pode passar impune: uma nova etapa da guerrilha
semiológica iniciada no ano passado se inicia. A pauta negativa, “recomendação” interna da TV Globo
para todos os jornalistas na cobertura da Copa, revela uma novidade no paiol das
bombas semióticas: a não-notícia. Produto das revistas de celebridades e das
coberturas esportivas extensivas como Olimpíadas e Copa do Mundo, elas agora
estão sendo turbinadas politicamente por meio de duas estratégias semióticas: fazer
o espectador confundir causa e efeito dos acontecimentos e a armadilha da
generalização nas indefectíveis enquetes.
Desde as
grandes manifestações de junho do ano passado, a grande mídia (que de início
execrou como vandalismo e infantilismo político para, logo depois, procurar
inseri-las no plot narrativo da oposição na proximidade de ano eleitoral –
mensalão, PEC 37 etc.) mobilizando uma pesada artilharia semiótica de construção
de textos e imagens que sintetizem em um frame, fotograma, parágrafo, legenda
de foto etc. um conjunto de percepções e fragmentos ideológicos. Chamamos esse
arsenal de recursos retóricos e semiológicos de “bombas semióticas”.
Desde junho do ano passado uma variedade de bombas semióticas assolaram a opinião pública |
Ao longo desse
período detectamos diversos tipos de bombas: dessimbolizações,
infotenimento,
a
black bloc good bad girl, fotos-choques,
cavalos
de Tróia, guerrilha
de memes, exploração
fetichista de animais e mulheres, tomates
e inadimplência.
Isso sem falar de acidentes com jornalistas no momento em que montavam bombas
como, por exemplo, o caso da bomba semiótica do Enem ou a “barrigada” darepórter da rádio CBN que via no campus da USP mensagens cifradas análogas às
do tráfico de drogas nos morros do Rio de Janeiro. Essa variedade de bombas
semióticas teve um objetivo em comum: manter a opinião pública em estado de
constante tensão em um País supostamente à beira do abismo econômico e em
situação pré-insurrecional.
Mas agora
quando a agenda nacional passa a ser dominada pela Copa do Mundo, entra em cena
uma nova bomba semiótica: a da não-notícia. A grande mídia caiu em si que não
só vai ter Copa, mas como também manifestações de protestos podem ficar
isoladas ou, no mínimo, deslocadas na opinião pública em relação ao evento
esportivo internacional.
Por isso, entra
em ação a pauta negativa da cobertura da Copa para comprovar para todos que
será um fracasso de gerenciamento, administração e organização. O problema é
que os estádios ficaram prontos, as seleções chegam ao país sem atropelos ou
gafes organizacionais. Alguns até elogiaram a rapidez dos serviços de
aeroportos... – sobre isso clique
aqui.
“Eu crio as circunstâncias”
Mas a pauta
negativa tem que se impor e os pobres repórteres têm que exercer toda a sua
criatividade na angulação das matérias, na edição das declarações, no
enquadramento da fotografia etc. – como ficou evidente no memorando interno da
TV Globo para os editores evitarem a pauta positiva na Copa – clique aqui. No início
procuraram fazer a coisa mais óbvia: concentrar-se em um mínimo defeito como o
vazamento do banheiro, a escada rolante quebrada, a conexão da Internet que é
instável no estádio e assim por diante.
Porém, isso não
era impactante o suficiente. Principalmente porque a estrutura da Copa começa a
funcionar, para contrariedade da grande mídia.
E então, o que
fazer? Como dizia Napoleão: “Circunstâncias? Eu crio as circunstâncias”. Se as
notícias negativas escasseiam e as angulações não são mais o suficiente,
criam-se não-notícias: repercutir um fato que a própria emissora criou, a
partir de um episódio cuja causalidade é absolutamente banal ou natural.
Repercutida com as devidas estratégias de retórica, o episódio toma ares de
denúncia e furo de reportagem.
Um exemplo dessa
nova bomba semiótica pode ser acompanhada na edição do jornal Estado de São Paulo
de 05/06 na primeira página do caderno especial sobre a Copa 2014 - veja foto ao lado. Somos
impactados com as letras garrafais “Frustração” sobre uma foto que ocupa mais
da metade da primeira dobra onde vemos uma confusão de pessoas em uma espécie
de fila desorganizada. Acima, nas chamadas de matérias internas, mais
desalento: “Ruas sem enfeites” sobre um suposto desinteresse dos moradores
enfeitarem casas e ruas com as cores nacionais; e “Sinal Amarelo” sobre um
suposto jejum de gols do centroavante Fred que preocuparia – para contrariar a
pauta, Fred fez o gol da vitória no amistoso contra a Sérvia na sexta-feira.
Na matéria
principal, a perfeita não-notícia. O foco da matéria é “frustração” e
“confusão” na venda de ingressos do último lote oferecido pela FIFA. Descreve
que em uma hora os ingressos para os jogos principais foram vendidos no site da
entidade. Fala em “fila virtual” e “dificuldade em acesso”. E quem foi ao
Ibirapuera enfrentar a fila, descobriu que só restavam ingressos para os jogos
“menos atraentes”. Pergunto ao leitor: onde está a notícia? A frustração e a
confusão foram causadas por uma grande demanda de busca por ingressos como
ocorre em qualquer grande evento, da Copa do Mundo a São Paulo Bike Tour, onde
o site desse evento ficou congestionado de acessos de ciclistas tentando ganhar
uma bicicleta promocional.
Ou o que dizer
então da verdadeira obsessão da TV em postar uma câmera na entrada dos
torcedores tanto no estádio da Arena Corinthians como no jogo em Feira de
Santana Santos X Bahia para mostrar as filas como um sintoma natural da
desorganização tanto do futebol brasileiro como na Copa como fenômeno de
contágio. Ora, se todos chegam ao mesmo tempo formar-se-ão filas.
"Parceiro" do SPTV: a não-notícia do congestionamento no entorno da Arena Corinthians |
Outra
não-notícia observamos na edição de 05/06 na edição do SPTV quando o telejornal
mobilizou “parceiros” da Zona Leste - reportagens feitas por moradores de
diferentes regiões de São Paulo supervisionadas por jornalistas da emissora.
“Chegada à Arena Corinthians causa congestionamento”, dizia o repórter-parceiro
que tentava chegar ao estádio de carro. No final da matéria, informava que a
CET havia recomendado aos torcedores irem ao jogo através de transporte
público, evitando os carros. Então, qual era a notícia? A matéria apenas
confirmava o que a engenharia de tráfego tinha informado no dia anterior.
Mas, com a
câmera no interior do carro no estilo “por dentro da notícia”, a matéria
adquiria um tom de “denúncia” e “flagrante”. Estratégia retórica para turbinar
a não-notícia.
A semiótica da não-notícia
Nas suas
origens, a não-notícia é um produto direto daquilo que se chama infotenimento
(informação + entretenimento), uma combinação entre as hard news (informação mais “seca”) com estilo narrativo e retórico
que beira o ficcional e produz entretenimento. O crescimento e a complexidade
industrial das mídias exige uma sociedade “acontecedora” que produza um fluxo
constante de acontecimentos para produzir notícias e espaços editoriais que
justificam a inserção dos anunciantes.
Origens das não-notícias em eventos extensos como Copa do Mundo e Olimpíadas |
Ela é o produto
direto das revistas de celebridades, sejam esportivas, artísticas, empresariais
ou políticas. Principalmente em coberturas tão extensivas como Copa do Mundo e
Olimpíadas onde jornalistas, obrigados a fazerem muitas entradas ao vivo, criam
verdadeiras não-notícias: jornalista entrevistando outro jornalista, jornalista
brincando ou fazendo apostas com jogadores
(na Copa de 90 o repórter Elia Junior da Band chegou a fazer cobranças
de pênaltis no goleiro Taffarel) etc.
Porém, a bomba
semiótica da não-notícia mobilizada para as coberturas da Copa acrescenta um
fator semiótico inédito: fazer o leitor/espectador confundir causa com efeito. Causas
como grande a concentração simultânea de torcedores ou a opção em privilegiar
transporte público em detrimento dos carros transformam-se em efeitos de
desorganização da logística do evento. Ou o inverso: “filas virtuais” e
“físicas”, efeitos do excesso de procura de um bem escasso e valioso (os
ingressos) transformam-se em causas de “frustrações”.
Acabar
ingressos dos principais jogos devido a grande demanda é um fato banal e
previsível numa economia regida pelas leis de oferta e procura. Mas a retórica
visual da não-notícia (câmeras que tremem, grande concentração de torcedores, a
presença normal de policiais militares, a qualidade da imagem precária como
fossem produzidas por celular) esquenta a não-notícia, criando uma simulação de
hard news.
Generalização potencializa a não-notícia
Pessoas não querem decorar ruas na Copa com medo de manifestantes? |
Na primeira
página do caderno do Estadão citado acima chama a atenção para uma outra
estratégia de potencialização da não-notícia: a generalização. “Ruas sem Enfeites” é uma matéria feita a partir da “metodologia”
das enquetes, técnica sem nenhum pressuposto científico (amostragem, universo,
tabulação etc.) que parte de um axioma que o jornalismo toma como
inquestionável: todos têm uma opinião formada sobre qualquer coisa.
A matéria parte
de duas constatações opostas em um mesmo bairro: ruas com decorações e sem
decorações sobre a Copa e a seleção brasileira. E o “caso” de um morador que
não fez a tradicional decoração por “medo de manifestantes” e “frustração com
os governantes”.
O sociólogo
Pierre Bourdieu em um texto clássico chamado A Opinião Pública Não Existe desconstruía os três pressupostos das
pesquisas de opinião: todos têm opinião; todas as opiniões têm valor; há um
consenso em torno do problema formulado pela questão. No caso das chamadas
enquetes jornalísticas, esses pressupostos ficam ainda mais discutíveis por
tenderem à generalização do tipo “todos os brasileiros” ou “a maioria dos
moradores” etc.
A óbvia
não-notícia (há ruas em São Paulo que estão decoradas com motivos da Copa e
outras não) é esquentada repentinamente pelo salto brusco da generalização com
a expressão “no caso do morador...” como fosse um exemplar de um conjunto sobre
a qual o texto nada diz e não fornece nenhum dado quantitativo (percentual,
soma absoluta etc.). E se pensarmos bem, a própria opinião do morador é uma
não-notícia: aleatória, casual, assim como uma conversa rápida de elevador.
Talvez a
notícia da matéria esteja em outro lugar, nela mesma: na verdade ela representa
um ato falho, um desejo do próprio veículo para que não haja decorações em São
Paulo. É o fenômeno da chamada “profecia autorrealizadora”: se todos
acreditarem que ninguém está enfeitando as ruas de São Paulo, logo todos não
enfeitarão nenhuma rua.
A bomba
semiótica da generalização da não-notícia não é voltada para a informação, mas
para a percepção, a moldagem do “clima de opinião”. A opinião do morador que se
diz com medo de enfeitar a rua por causa de uma possível ameaça dos
manifestantes é um modelo ardiloso de moldagem da opinião pública por meio
daquilo que a sociologia chamou de “espiral do silêncio”: sentindo-se em
minoria, o indivíduo se rende a uma imaginária maioria, criando-se um consenso
autorrealizável.
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