segunda-feira, junho 16, 2014

O ódio envenena e mata no curta "Cólera"

Selecionado e premiado em todos os festivais de horror e fantástico nos quais foi exibido, o curta espanhol “Cólera” (2013) de Aritz Moreno é uma preocupante representação contemporânea da escalada do espírito de linchamento, ódio e intolerância. O curta comprova como o gênero, desde o filme “O “Gabinete do Dr. Caligari” de 1919 que teria antevisto o nazismo, é um termômetro da cultura e da sociedade em cada momento: na Espanha, a crise econômica e o crescimento da xenofobia e o ódio racial; no mundo a intolerância e o racismo como um mal viral e endêmico, assim como a cólera. Além disso, o curta consegue em seus seis minutos de um único plano sequência fazer uma síntese do psiquismo da personalidade autoritária: o ódio pode matar sua vítima, mas também envenenar o próprio algoz.

O ódio envenena e mata. O seis minutos do curta metragem Cólera do espanhol Aritz Moreno nos impacta como um raio pela sua mensagem direta e contundente. Rodado em um único plano-sequência que mistura os pontos de vista de todos os personagens, o curta foi baseado em um comic book do norte-americano Richard Corben.

Selecionado e premiado em mais de cem festivais em todo o mundo, podemos ler no poster promocional um verbete curto e direto: “Cólera: m. Pat. Enfermidade contagiosa epidêmica aguda e muito grave” - veja o curta abaixo.

O curta relata de forma crua a população agressiva e colérica de um vilarejo que pretende fazer justiça com as próprias mãos. Armados com paus, pedras e espingardas pagarão as consequências desse linchamento. Todos estão se dirigindo a um pequeno casebre construído de forma precária com tábuas velhas e papelão, isolado no meio de um campo. Lá se encontra o objeto de todo ódio da população, alguém que, segundo eles, já teria causado “problemas demais”. “Finalmente uma vila limpa!”, brada o líder do populacho enfurecido e levantando uma espingarda.


O filme foi premiado em diversos festivais de horror e fantástico, o que nos faz refletir a importância desse gênero como um sintoma de crises sociais – conflitos de raças e classes.

Gênero horror é sintoma social?


Desde o filme A Noite dos Mortos Vivos de George Romero há uma interpretação dos problemas sociais pela metáfora do contágio, do epidêmico e do viral. Naquele momento tínhamos o recrudescimento da Guerra do Vietnã e dos conflitos raciais e lutas por direitos civis. Monstros, zumbis são como os alteregos da crise da cultura e da sociedade na relação com o outro: ódio, intolerância, racismo e xenofobia.

Se no passado, filmes de terror como O Gabinete do Dr. Caligari de 1919 (marco do expressionismo alemão) representava a Alemanha pré-nazismo pela metáfora da manipulação hipnótica e da psicose de um país que caminhava inexoravelmente para a guerra, hoje a metáfora é a do contágio e da epidemia.

Em Cólera esse contágio é duplo: uma suposta doença que ameaça um vilarejo e o ódio mobilizador do linchamento que contamina em retorno o próprio psiquismo de todos.

O horror espanhol: o mal virótico
Desde a crise econômica da Zona do Euro a partir de 2008, e da Espanha em particular, é perceptível a escalada de filmes espanhóis onde o mal se propaga de forma endêmica e viral: REC, REC 2-Possuídos, La Hora Fria etc. Zumbis transformados em problema sanitário público, monstros e mutações em uma Espanha onde o desemprego cresce a taxas em torno de 30% e o espectro do racismo, xenofobia e intolerância é cada vez mais ameaçador.

Segundo o Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia, órgão ligado à União Europeia, a cada ano já são 4 mil os casos de agressão motivados por discriminação no país. A organização também diz que o número de neonazistas identificados na Espanha subiu de pouco mais de 2 mil, em 1996, para 10,5 mil, no ano passado.

Linchamento e sacrifício ritual


Cólera é um sinalizador desse mecanismo de uma sociedade que procura bodes expiatórios para tentar se purificar, personalizando o mal em estrangeiros e imigrantes, e nos filmes em monstros, mutantes e zumbis.

Em seis minutos o curta Cólera faz uma fantástica síntese do mecanismo psíquico da personalidade autoritária e o fascismo. Retomando a clássica fórmula da personalidade autoritária descrita por Theodor Adorno (“quem é duro consigo mesmo, também é com os demais”), no curta vemos uma população com os rostos crispados, duros e embrutecidos pela própria vida rústica.

Adorno pressentia um duplo componente da personalidade autoritária: uma antropológica e a outra política. Assim como no texto O Mal Estar da Cultura de Freud onde argumenta que a cultura exige sacrifícios do indivíduo na esfera do sexo e da agressividade, a necessidade da sobrevivência e domínio da Natureza leva ao embrutecimento do próprio ego: “na medida em que o homem domina a Natureza, domina a si mesmo”, escreviam Adorno e Horkheimer sobre os princípios antropológicos do racionalismo ocidental no livro Dialética do Esclarecimento.

Por isso toda sociedade criaria mecanismos de sacrifício ritual como função de criação de bodes expiatórios para compensar no outro (no socialmente mais fraco) a dor individual. Mecanismos de purificação e renovação das comunidades para redução de conflitos, tensões e medos coletivos. E os deuses faziam essa mediação.

Mas a crise econômica, recessão e desemprego acirram o sacrifício individual aumentando ainda mais a tensão que já é intrínseca aos mecanismos de socialização – Marcuse falava em “mais-repressão” que se agregava aos tradicionais mecanismos repressivos da libido na cultura como discutia no livro Eros e Civilização. A diferença é que na modernidade os deuses estão mortos (ou, no máximo, são ressuscitados como farsa pelas igrejas institucionalizadas) e não oferecem mais as formas tradicionais de mediação ou sublimação da violência.

Dessa forma, o ritual sacrificial assume o caráter fascista tal qual descrito por Adorno, como um ódio niilista contra o outro e contra a própria existência: o fascismo esconderia um profundo ódio pela vida – se eu não sou feliz, ninguém tem direito a sê-lo.

Tanto a recessão econômica e o desemprego europeu fazendo recrudescer a xenofobia, ódio racial e neonazismo, como, no Brasil, linchamentos, ódio étnico e intolerância expostos nas redes sociais e nas periferias urbanas seriam sintomas da crise dos tradicionais mecanismos de sublimação (deuses, Estado, sistema jurídico etc.) – rituais primitivos de sacrifício, apenas que agora sem mediações que possam transformar a energia da dor e do ódio em esperança e renovação.

Por isso o ódio transforma-se em veneno, muito bem representado pelo curta Cólera: a representação contemporâneo do ódio como um mal endêmico e viral. Em um mundo globalizado e sistêmico, o mal não é mais representado como uma influência espiritual ou hipnótica como no filme O Gabinete do Dr. Caligari, mas agora ele se apresenta de uma forma mais “orgânica” como doença, epidemia e mutação.


Ficha Técnica


Título: Cólera (curta metragem)
Direção: Aritz Moreno
Roteiro: Aritz Moreno
Elenco: Luis Tosar, Irati Azcuna Pascual, Iñake Irastorza
Produção: Telmo Esnal e Leire Apellaniz
Distribuição: on line
Ano: 2013
País: Espanha

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