Selecionado e
premiado em todos os festivais de horror e fantástico nos quais foi exibido, o
curta espanhol “Cólera” (2013) de Aritz Moreno é uma preocupante representação
contemporânea da escalada do espírito de linchamento, ódio e intolerância. O
curta comprova como o gênero, desde o filme “O “Gabinete do Dr. Caligari” de
1919 que teria antevisto o nazismo, é um termômetro da cultura e da sociedade
em cada momento: na Espanha, a crise econômica e o crescimento da xenofobia e o
ódio racial; no mundo a intolerância e o racismo como um mal viral e endêmico,
assim como a cólera. Além disso, o curta consegue em seus seis minutos de um único plano sequência fazer
uma síntese do psiquismo da personalidade autoritária: o ódio pode matar sua
vítima, mas também envenenar o próprio algoz.
O ódio envenena
e mata. O seis minutos do curta metragem Cólera
do espanhol Aritz Moreno nos impacta como um raio pela sua mensagem direta e
contundente. Rodado em um único plano-sequência que mistura os pontos de vista
de todos os personagens, o curta foi baseado em um comic book do norte-americano Richard Corben.
Selecionado e
premiado em mais de cem festivais em todo o mundo, podemos ler no poster promocional um verbete curto e direto: “Cólera: m. Pat. Enfermidade contagiosa epidêmica
aguda e muito grave” - veja o curta abaixo.
O curta relata
de forma crua a população agressiva e colérica de um vilarejo que pretende fazer
justiça com as próprias mãos. Armados com paus, pedras e espingardas pagarão as
consequências desse linchamento. Todos estão se dirigindo a um pequeno casebre
construído de forma precária com tábuas velhas e papelão, isolado no meio de um
campo. Lá se encontra o objeto de todo ódio da população, alguém que, segundo
eles, já teria causado “problemas demais”. “Finalmente uma vila limpa!”, brada
o líder do populacho enfurecido e levantando uma espingarda.
O filme foi
premiado em diversos festivais de horror e fantástico, o que nos faz refletir a
importância desse gênero como um sintoma de crises sociais – conflitos de raças
e classes.
Gênero horror é sintoma social?
Desde o filme A Noite dos Mortos Vivos de George
Romero há uma interpretação dos problemas sociais pela metáfora do contágio, do
epidêmico e do viral. Naquele momento tínhamos o recrudescimento da Guerra do
Vietnã e dos conflitos raciais e lutas por direitos civis. Monstros, zumbis são
como os alteregos da crise da cultura e da sociedade na relação com o outro:
ódio, intolerância, racismo e xenofobia.
Se no passado,
filmes de terror como O Gabinete do Dr.
Caligari de 1919 (marco do expressionismo alemão) representava a Alemanha
pré-nazismo pela metáfora da manipulação hipnótica e da psicose de um país que
caminhava inexoravelmente para a guerra, hoje a metáfora é a do contágio e da
epidemia.
Em Cólera esse
contágio é duplo: uma suposta doença que ameaça um vilarejo e o ódio mobilizador do linchamento que contamina em retorno o próprio psiquismo de todos.
O horror espanhol: o mal virótico |
Desde a crise
econômica da Zona do Euro a partir de 2008, e da Espanha em particular, é
perceptível a escalada de filmes espanhóis onde o mal se propaga de forma
endêmica e viral: REC,
REC
2-Possuídos, La
Hora Fria etc. Zumbis transformados em problema sanitário público,
monstros e mutações em uma Espanha onde o desemprego cresce a taxas em torno de
30% e o espectro do racismo, xenofobia e intolerância é cada vez mais
ameaçador.
Segundo o
Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia, órgão ligado à União Europeia,
a cada ano já são 4 mil os casos de agressão motivados por discriminação no
país. A organização também diz que o número de neonazistas identificados na
Espanha subiu de pouco mais de 2 mil, em 1996, para 10,5 mil, no ano passado.
Linchamento e sacrifício ritual
Cólera é um sinalizador desse mecanismo de uma sociedade que procura
bodes expiatórios para tentar se purificar, personalizando o mal em
estrangeiros e imigrantes, e nos filmes em monstros, mutantes e zumbis.
Em seis minutos
o curta Cólera faz uma fantástica
síntese do mecanismo psíquico da personalidade autoritária e o fascismo. Retomando
a clássica fórmula da personalidade autoritária descrita por Theodor Adorno
(“quem é duro consigo mesmo, também é com os demais”), no curta vemos uma
população com os rostos crispados, duros e embrutecidos pela própria vida
rústica.
Adorno
pressentia um duplo componente da personalidade autoritária: uma antropológica
e a outra política. Assim como no texto O
Mal Estar da Cultura de Freud onde argumenta que a cultura exige
sacrifícios do indivíduo na esfera do sexo e da agressividade, a necessidade da
sobrevivência e domínio da Natureza leva ao embrutecimento do próprio ego: “na
medida em que o homem domina a Natureza, domina a si mesmo”, escreviam Adorno e
Horkheimer sobre os princípios antropológicos do racionalismo ocidental no
livro Dialética do Esclarecimento.
Por isso toda
sociedade criaria mecanismos de sacrifício ritual como função de criação de
bodes expiatórios para compensar no outro (no socialmente mais fraco) a dor
individual. Mecanismos de purificação e renovação das comunidades para redução
de conflitos, tensões e medos coletivos. E os deuses faziam essa mediação.
Mas a crise
econômica, recessão e desemprego acirram o sacrifício individual aumentando
ainda mais a tensão que já é intrínseca aos mecanismos de socialização –
Marcuse falava em “mais-repressão” que se agregava aos tradicionais mecanismos
repressivos da libido na cultura como discutia no livro Eros e Civilização. A diferença é que na modernidade os deuses
estão mortos (ou, no máximo, são ressuscitados como farsa pelas igrejas
institucionalizadas) e não oferecem mais as formas tradicionais de mediação ou
sublimação da violência.
Dessa forma, o
ritual sacrificial assume o caráter fascista tal qual descrito por Adorno, como
um ódio niilista contra o outro e contra a própria existência: o fascismo
esconderia um profundo ódio pela vida – se eu não sou feliz, ninguém tem
direito a sê-lo.
Tanto a
recessão econômica e o desemprego europeu fazendo recrudescer a xenofobia, ódio
racial e neonazismo, como, no Brasil, linchamentos, ódio étnico e intolerância
expostos nas redes sociais e nas periferias urbanas seriam sintomas da crise
dos tradicionais mecanismos de sublimação (deuses, Estado, sistema jurídico
etc.) – rituais primitivos de sacrifício, apenas que agora sem mediações que
possam transformar a energia da dor e do ódio em esperança e renovação.
Por isso o ódio
transforma-se em veneno, muito bem representado pelo curta Cólera: a representação contemporâneo do ódio como um mal endêmico
e viral. Em um mundo globalizado e sistêmico, o mal não é mais representado
como uma influência espiritual ou hipnótica como no filme O Gabinete do Dr. Caligari, mas agora ele se apresenta de uma forma
mais “orgânica” como doença, epidemia e mutação.
Ficha Técnica |
Título: Cólera (curta metragem)
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Direção: Aritz Moreno
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Roteiro: Aritz Moreno
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Elenco: Luis Tosar, Irati Azcuna Pascual, Iñake Irastorza
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Produção: Telmo Esnal e Leire Apellaniz
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Distribuição: on line
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Ano: 2013
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País: Espanha
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