Hitchcock não levava a sério as ideias freudianas e irritava-se com as interpretações psicanalíticas de seus filmes, principalmente do filme “Os Pássaros” (The Birds, 1963): “Idiotas estúpidos! Sempre estive consciente do que fiz em todas as minhas obras”, esbravejava. Mas as imagens dos pássaros atacando seres humanos em um pequeno vilarejo litorâneo tornaram-se atemporais, como se Hitchcock, mais do que roteirizar, dirigir, montar e editar, inconscientemente tivesse buscado seus insights tanto em fatos científicos ocorridos com aves em 1961 na Califórnia, quanto nos arquétipos do inconsciente coletivo da humanidade. Por isso, de todos os filmes do diretor (Hitchcock considerava o filme como o “menos Hitchcock” da sua carreira), “Os Pássaros” foi o filme que mais rendeu interpretações, sejam científicas, psicanalíticas, filosóficas e gnósticas: por que os pássaros de Hitchcock atacaram? É o que vamos tentar responder.
A crítica especializada
em geral considera o filme Os Pássaros
o último grande filme de Hitchcock, rodado em 1963 quando a reputação do
diretor estava no auge. O filme anterior Psicose
(1960) tinha sido um sucesso e a Universal Pictures deu para o diretor três
milhões de dólares para o seu próximo projeto. Hitchcock já havia se tornado a
marca exclusiva do cinema de suspense com narrativas sobre espionagem,
psicopatia, frieza, romance e muito humor negro.
Porém, Os Pássaros foi o filme que o redefiniu
ou, como o próprio diretor considerou, era o filme “menos Hitchcock” da sua
cinematografia até aquele momento: ele pela primeira vez se valeu da tecnologia
como os efeitos sonoros construídos por um instrumento eletrônico chamado
Mixtur-trautonium (o filme não possui trilha musical a não ser diegéticas –
crianças cantando na escola, som do rádio do carro ou quando a protagonista
toca ao piano); efeitos especiais indicados ao Oscar para criar os temíveis pássaros
assassinos; e a utilização de muitas tomadas externas, técnica que ele nunca
preferiu – costumava rodar os filmes completamente em estúdios.
Mas a grande
inovação em Os Pássaros foi o
roteiro. Livremente baseado no conto “The Birds” de 1952 escrito por Daphne Du
Maurier, o que surpreende na narrativa é a aparente falta de explicação para o
principal evento que conduz o filme: o porquê do ataque de pássaros de diversas
espécies se unirem para atacar os seres humanos em um pequeno vilarejo
litorâneo.
Sem explicações lógicas
Aos 63 anos,
Hitchcock já estava seguro o suficiente para dispensar as tradicionais
engrenagens da narrativa lógica. Ao contrário das explicações freudianas sobre
o psicopata Norman Bates do filme anterior, em Os Pássaros tudo está solto, além das próprias aves: não há um
motor condutor, nem trilha musical para amarrá-lo e nada para mantê-lo no ar, a
não ser uma ambígua atmosfera sensual e medo existencial.
Hitchcock
estava vivamente preocupado em como embrulhar a narrativa de maneira que desse
sentido ao espectador. Por isso, ele abandonou a cena final original do roteiro
em favor de uma não resolução, um final aberto – uma paisagem final
apocalíptica onde os pássaros parecem ter dominado a Terra e expulsado o homem,
enquanto a imagem desaparece em um fade out sem o tradicional “The End”,
deixando o mistério intacto.
A partir daí
surgiram as mais variadas interpretações para a revolta dos pássaros de
Hitchcock contra os seres humanos: psicanalíticas, filosóficas, científicas
etc.
Por incrível
que pareça, a primeira explicação foi do próprio diretor. Em uma entrevista
concedida a Maurice Seveno em 1962 no Jardin des Plantes em Paris (e
ironicamente em frente a um viveiro de pássaros), Hitchcock explicou da
seguinte maneira: “Os pássaros estão cansados de serem mortos, depenados e
comidos pelos homens. Então eles decidem se vingar. Um dia se agrupam e
mergulham sobre as pessoas em um pequeno vilarejo”. Simples assim! - veja vídeo abaixo.
Mas críticos,
filósofos e psicanalistas insistiam que havia algo mais, para a irritação de Hitchcock
que, certa vez, explodiu depois de uma análise freudiana sobre seus filmes
publicada na revista New Yorker: “Os
idiotas estúpidos! Como eu não sei o que estou fazendo. Minha técnica é séria.
Sempre estive consciente do que faço em toda a minha obra”.
Só para
relembrar o plot de Os Pássaros: Melanie Daniels (Tippi
Hedren), uma socialite da cidade de São Francisco, vai até uma pequena cidade
litorânea, Bodega Bay, para entregar um presente (uma gaiola com um casal de love birds) para Mitch Brenner (Rod
Taylor) por quem está interessada. Deposita o presente secretamente na casa da
sua mãe de Mitch, Lydia (Jessica Tandy). Melanie cria um triângulo tenso de
relações entre ela, Mitch e Lydia, momento em que inexplicavelmente todas as
espécies de pássaros começam a atacar a população com uma violência crescente.
As imagens do
filme são atemporais: a cena em que o posto de gasolina pega fogo e tudo é
visto pelo plano subjetivo de uma ave no céu, a travessia silenciosa de Melanie
em um pequeno barco para entregar os love
birds, o bêbado apocalíptico, o ornitóloga que duvida das notícias de uma
rebelião das aves enquanto pede uma galinha assada. Por isso, os estudiosos de
cinema acreditam que embora tecnicamente o diretor esteja consciente do seu ofício
quando roteiriza, decupa, captura imagens no set, edita e monta, há um plano
inconsciente: o momento onde o diretor vai buscar a sua intuição e insights nas
fontes arquetípicas, no plano atemporal de um inconsciente coletivo que, no
final, é o que dá a força espiritual para uma obra-prima.
Por isso, vamos
reunir aqui algumas teorias sobre o porquê dos pássaros Hitchcock atacarem.
1 – A Ciência
Sibel Bargu,
pesquisador oceanográfico na Louisiana State University afirma que em 1961, Hitchcock havia demonstrado interesse em um
evento ocorrido em Monterey, Califórnia: pessoas informaram que enormes bandos
de aves marinhas, sem nenhuma explicação, começaram a chocar-se contra suas
casas. Isso deixou um rastro de terror na baia de Monterey.
Mais tarde,
cientistas encontraram no estômago dessas aves mortas algas tóxicas que,
segundo Sibel Bargu, causam amnésia, desorientação e convulsões. Bargu explica
que naquela época houve um boom imobiliário na região e que alguns agentes
tóxicos poderiam ter vazado dos canteiros sépticos das obras, contaminando
algas e os pássaros, que se tornaram frenéticos e assustadores – veja “Alfred Hitchcock 'The Birds' Attack Mystery
Solved”.
2 – Psicanálise
O filósofo e
psicanalista esloveno Slavoj Zizek parte de um interessante pressuposto: o
cinema é a mais perversa das artes porque ela não te dá aquilo que deseja, mas
te diz como desejar. Por isso, a psicanálise conteria as chaves de interpretação
do cinema, sem levar em conta o valor estético e a autonomia dos jogos formais.
A equação psicanálise-autor-obra pretenderia revelar algo de escondido e
nebuloso na criação autoral dos diretores.
Zizek argumenta
quem em Os Pássaros as aves são uma dimensão externa que se intromete na
realidade do filme para desmanchá-la. As aves que atacam representariam a
explosão do superego materno evitando o encontro sexual entre Mitch e Melanie.
As aves selvagens representariam uma espécie de superego feminino malévolo, uma
revelação indireta do caráter de Lydia. Os Pássaros seria um drama edipiano,
onde uma mãe possessiva está decidida em manter a relação simbiótica com seu
filho.
A favor dessa
interpretação está a cena em que em meio aos ataques uma moradora histérica do
vilarejo acusa Melanie de ser a responsável, pois desde que ela chegou teria se
iniciado a escaladas da violência das aves.
Muitos críticos
apontam para um problema fundamental no filme: a desproporção entre o
comportamento relativamente inconsequente dos personagens e a magnitude da
ameaça que enfrentam. Em muitos momentos percebemos comportamentos impulsivos e
naturalmente equivocados para situações tão ameaçadoras: a professora que faz
todas as crianças saírem correndo da escola embora saibam que estão totalmente
cercados de pássaros; mesmo sabendo que estão sob ataque dos pássaros, Lydia sobe
as escadas e abre a porta de um quarto sem o menor cuidado. No geral, os
personagens parecem fleugmáticos demais e demoram a perceber a gravidade do
problema – leia “Reading the
birds and The Birds” – Literature Film Quartely (2000).
Muitos
argumentam que isso é um elemento da screwball
comedy onde os personagens são muitas vezes impulsivos e bobos. Mas parece
que há algo de maior magnitude e arquetípico nessa obra de Hitchcock, que rompe
com qualquer casualidade explicativa: a presença do Mal.
O diretor
adorava apresentar situações familiares com pessoas aparentemente comuns para,
em seguida, revelar-nos algo de danificado, impuro à espreita por baixo da
superfície: espiões, personagens frios, assassinos e psicopatas. Mas em Os Pássaros há algo de diferente. O Mal
não está na natureza humana, mas na própria Natureza. Lembra a afirmação do
gnóstico e maldito poeta William Blake: “a Natureza é obra do Demônio”.
Melanie é a
arquetípica personagem hedonista de uma sociedade fluente de compras e paixões.
Impulsivamente pega o carro e faz uma viagem de 100 km para levar um presente
como pretexto de um interesse amoroso. Essa impulsividade típica da screwball comedy refletiria essa
autoconfiança humana, a fé cega no seu estilo de vida e na sociedade que seria
demonstrado pela estranha fleugma dos personagens enquanto em volta deles a
Natureza se rebela.
A cena final é
niilista: a natureza nos expulsa por que ela é “má”, quer dizer, por ela
resistir a qualquer tentativa de racionalizá-la seja pela ciência ou pela
religião. É a velha cosmologia negativa gnóstica e paradoxal: somos prisioneiro
em um mundo que nos expulsa.
Transcrição do vídeo de entrevista com Hitchcock (veja vídeo abaixo)
Maurice Seveno: Você está familiarizado com este pequeno homem gordo: " Boo!
", o homem que diz para você em salas de cinema escuras são assustadoras .
Alfred Hitchcock, atualmente em Paris, está visitando o Jardin des Plantes como
estas imagens podem provar.
( Silêncio )
Maurice Seveno: Mr. Hitchcock?
Alfred Hitchcock: Eh?
Maurice Seveno: Olá Sr. Hitchcock. Você está muito interessado em pássaros?
Alfred Hitchcock: Naturalmente, uma vez que me proporcionam muito
dinheiro.
Maurice Seveno: Você tem aves que fornecem o dinheiro?
Alfred Hitchcock: Meu último filme é intitulado “Os Pássaros”.
Maurice Seveno: Qual é o enredo do filme?
Maurice Seveno: Será que elas realmente matam as pessoas?
Alfred Hitchcock: Eles tentam, de qualquer maneira. Mas, na
realidade, elas não conseguem. Posteriormente, ocorrem eventos que também
sugerem que as coisas podem ser trabalhadas de forma pacífica. Mas em qualquer
dos casos, o aviso terá sido muito duro.
Maurice Seveno: Usou uma técnica especial para este filme?
Alfred Hitchcock: Bem, primeiro de tudo, eu tinha que treinar
aves para este filme: pombos , melros, corvos mesmo , e eu usei um novo processo
de filmagem que me permitiu filmar os dois atores e animais ao mesmo tempo com
muita facilidade.
Maurice Seveno: É este um Hitchcock tradicional, ou, pelo contrário , você mudou
suas maneiras ?
Alfred Hitchcock: Na realidade , é um Hitchcock bem diferente.
Além disso, todos os filmes que eu faço são diferentes. North by Northwest era uma coisa, Psycho foi outro, The Trouble
With Harry foi mais uma vez diferente. Estritamente falando, este não é um
filme de ficção científica, mas algo próximo. Além disso, é... como se diz ? ,
Romântico.
Maurice Seveno: Quando é que vamos vê-lo em Paris?
Alfred Hitchcock: No próximo ano, eu acho.
Maurice Seveno: Em cerca de seis meses?
Alfred Hitchcock: Seis meses, seis meses. Porque há muito
trabalho deixado no laboratório.
Maurice Seveno: Uma última pergunta, antes de deixá-lo, o Sr. Hitchcock, que não
tem nada a ver com este filme. Como é o seu projeto com a princesa Grace?
Alfred Hitchcock: Tenho a novela, o enredo, mas eu não tenho
uma atriz para o papel. Mas espero que... Eu tinha uma ideia para uma nova
atriz.
Maurice Seveno: Então, ela vai deixar de fazer o filme?
Alfred
Hitchcock: Não. A princesa? Não, isso não é possível. Há muita turbulência. O
que é a palavra para "turbulência" em francês?
Maurice Seveno: Muitos problemas?
Alfred Hitchcock: Problemas .
Maurice Seveno: Muito obrigado.
Alfred Hitchcock: Obrigado, senhor.
Ficha Técnica |
Título: Os Pássaros
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Direção: Alfred Hitchcock
|
Roteiro: Evan Hunter baseado em conto de Daphne Du Maurier
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Elenco: Rod Taylor, Tippi Hedren, Suzane Pleshette,
Jessica Tandy
|
Produção: Universal Pictures
|
Distribuição: Universal Home Video
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Ano: 1963
|
País: EUA
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