sexta-feira, junho 27, 2014

Por que nossa mente quer ser enganada?

Militantes do PSDB posando para fotografias ao lado de um display de papelão do candidato Aécio Neves em tamanho real na convenção do partido e um jornalista que confundiu o sósia do Felipão com o verdadeiro. Qual a secreta conexão entre esses dois episódios? O estranho desejo humano de querer ser enganado. E a filosofia da percepção e a neurologia podem explicar isso. Por que pacientes que sofriam de afasia global e agnosia tonal ridicularizaram um discurso na TV do presidente Ronald Reagan em 1985 enquanto os receptores normais o consideravam um “grande comunicador”? Talvez o caminho seja entender a natureza das “imagens-afecção” e a solução do enigma do porquê demoramos meio segundo para ter consciência das decisões que o nosso próprio cérebro teve. A contra-tática para combater a canastrice na política pode estar nas mão dos filósofos da percepção como Brian Massumi e em neurologistas como Oliver Sacks.

As imagens dos bonecos de papelão do candidato Aécio Neves na convenção do PSDB para que militantes posassem ao lado do display e a “barriga” jornalística cometida pelo colunista Mario Sergio Conti que confundiu o sósia com o verdadeiro Felipão revelam um secreto sincronismo: o estranho desejo humano de querer ser enganado.

Em postagem anterior discutíamos como era possível que ainda hoje a opinião pública ainda seja mobilizada por táticas publicitárias e de propaganda tão estereotipadas, exageradas, com personagens tão canastrões, caricatos, com gestos, expressões faciais e poses tão overacting. Péssimos atores que não conseguiriam passar pelo mais simples teste de seleção do cast do filme de mais baixo orçamento - sobre esse tema clique aqui.

Assistindo ao filme O Grande Ditador de Chaplin, somos dominados por uma estranha sensação ao se questionar sobre quem teria inspirado quem: a pantomima de Chaplin também estava presente nos gestuais e discursos de Hitler e Mussolini. Quem se inspirou em quem? O gênio de Chaplin não foi o de fazer uma caricatura genial de um ditador, mas de revelar a todos que na política levamos a sério maus atores – Chaplin mostrou de uma forma profissional o que Hitler e Mussolini faziam de forma canastrona.


Ronald Reagan e a neurologia


Por que Ronald Reagan não
conseguiu convencer eleitores afásicos?
E isso pode ser comprovado através de um episódio bem conhecido. O biólogo e neurologista inglês Oliver Sacks no livro The Man Who Mistook His Wife for a Hat descreve como foi a recepção do discurso televisivo do então presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan numa audiência formada por pacientes que sofriam dois tipos de disfunção cognitiva. Alguns sofriam de afasia global cuja disfunção neurológica os tornava incapazes de compreender os significados das palavras em seu sentido literal. Compensavam essa deficiência desenvolvendo uma extraordinária habilidade de compreender as pistas não verbais da comunicação: inflexões, expressões faciais, corporais ou gestos.

Outros sofriam de uma disfunção denominada agnosia tonal, que é o inverso da afasia: a habilidade em compreender a expressividade da comunicação é perdida. Para eles, a linguagem é reduzida à sua forma literal, puramente semântica.

O discurso televisivo do ex-ator de Hollywood (reconhecido tanto como um ator canastrão nos seus tempos de estrelato quanto como um “grande comunicador” na carreira política) foi recebido pelos pacientes daquela enfermaria com um misto de risos, perplexidade e indignação: alguns pacientes eram convulsionados pelo riso, outros se sentiam ultrajados e outros tantos ficavam apreensivos. O que eles poderiam estar pensando? Não estavam compreendendo nada? Ou será que, talvez, estavam entendendo muito bem?

Ronald Reagan não conseguiu persuadir aquele pequeno público não porque ninguém entendesse nada, mas porque é impossível mentir para pacientes afásicos e com agnosia. Para os pacientes afásicos, a linguagem não-verbal de Reagan era incompreensível porque sua linguagem corporal parecia hilariantemente incapaz, truncada ou fragmentada. Os afásicos compreenderam que, afinal, Reagan era um mau ator reciclado pela carreira política – simplesmente sua expressividade não conseguia estabelecer um vínculo semiótico com os sentimentos.

Já os pacientes com agnosia se sentiram ultrajados ao ver um homem incapaz de construir sentenças numa ordem lógica e gramatical correta que conduzisse o raciocínio a uma conclusão. E por isso a reação geral foi de riso e escárnio diante do discurso do presidente - e isso muito antes de Ronald Reagan sofrer do Mal de Alzheimer.

Afasia e agnosia levaram a cada um dos pacientes a se superespecializar em um nível específico da linguagem, ajudando a revelar as desconexões e ausência de sentido do discurso presidencial.

Políticos canastrões e mímicos


Canastrice na política: disfunção verbal
e não verbal
Tudo isso pode parecer novidade para aqueles que acreditam que Reagan e outros líderes políticos da modernidade são carismáticos pela fluência gestual e pelo discurso baseado em secretas e infalíveis técnicas de retórica e persuasão.

Pelo contrário, a conclusão foi que Reagan foi um líder não apesar, mas por causa da sua dupla disfunção verbal e não-verbal. A pequena plateia daquele hospital revelou o paradoxo do discurso do presidente – nós, os normais, certamente ajudados por um estranho desejo de querer ser enganado (ou de querer acreditar), somos verdadeiramente enganados por raciocínios defeituosos e tons não verbais desconectados de significados. Apenas aqueles que sofriam de danos cerebrais conseguiram perceber tons e palavras enganosas.

Como explicar essa habilidade em produzir efeitos ideológicos por caminhos não-ideológicos? Reagan não convenceu ou hipnotizou uma nação com um discurso retoricamente perfeito que nos envolvesse emocionalmente. Ou com argumentos racionais baseados em premissas ou evidênicias.

Como observou o pesquisador norte-americano Brian Massumi no seu livro Parables for the Virtual, a efetividade dos políticos pós-moderno não tem mais a ver com empatia ou identificação emocional, mas com o poder da afecção.

Para Massumi, Reagan politizou a mímica. O poder da mímica é o da interrupção, de sincopar ou decompor o movimento, cortar a continuidade normal do movimento para sugerir um desvio. A incoerência verbal e expressiva de Reagan se assemelhava ao gênio da mímica: sua inexpressividade era como uma interrupção. Como todo ator canastrão, não conseguia individualizar-se, socializar-se ou expressar-se. Ele simplesmente passava pela TV uma imagem-afecção: aquilo que é pré-cognitivo, que nos afeta e que possui uma potencialidade ou virtualidade que pode ser tanto positiva como negativa.

Imagem-afecção: a ideologia por meios não ideológicos


Brian Massumi: o poder da "imagem-afecção"
Como pura afecção e pura virtualidade ou desvio: podemos ver nele qualquer coisa pelo vazio de expressividade sejam de emoções ou de ideologias.

 Massumi afirma que por isso a imagem-afecção é endêmica no atual capitalismo baseado na cultura da imagem e informação. Sua virtualidade a torna contagiante, justamente pela sua incoerência semiótica expressiva e verbal.

O que afásicos e pacientes com agnosia achariam do display de papelão do candidato Aécio Neves? Confundiriam com o original ou o original que se confundiria com sua duplicata em papelão? Ou então confundiriam o Felipão original com o sósia? Se tomarmos como parâmetro a pequena parábola descrita por Oliver Sacks certamente não, ao contrário de nós, os supostos neurologicamente normais.

E por que? Porque somente nós os “normais” somos atingidos pela afecção, por essa espécie de “automatismo da percepção” que nos levaria a acreditar em qualquer coisa?

Percebemos os planos verbal e expressivo simultaneamente, como um plano pré-cognitivo, antes de nossa consciência conseguir atribuir sentimentos ou emoções a essas afecções. Se tomarmos a célebre experiência neurológica de Benjamin Libet feita em 1980 descrobriremos esse primado das afecções sobre a cognição.

Libet mostrou que antes de qualquer movimento (por exemplo, mover um braço) há uma preparação característica da atividade elétrica no cérebro. E esta preparação acontece aproximadamente meio segundo antes da sua “decisão” consciente de mover o braço. Assim, no momento em que você pensa: “OK, vou mover meu braço”, seu corpo já percorreu metade do caminho. Isto significa que sua experiência consciente de tomar uma decisão é só uma reflexão posterior que somente acontece o cérebro já ter enviado o impulso elétrico.

Nesse lapso de meio segundo está o automatismo da percepção é onde, talvez, estejam os contágios das imagens-afecção, a ideologia produzida por meios não ideológicos.

Aécio Neves, assim como o sósia do Felipão, é um péssimo ator, sósia de si mesmo – Aécio é o tipo galã canastrão de uma novela latino-americana e o sósia do Felipão, menos pior, apenas a caricatura sem convicção do original. Como todos os políticos, são canastrões e jamais enganariam pacientes afásicos ou com agnosia porque esse público bem especial consegue perceber os intervalos, as lacunas dos discursos e a desconexão entre a expressividade e as intenções.

Seria como se ao assistir a um filme tivéssemos repentinamente a capacidade de ver os intervalos entre os fotogramas, quebrando a ilusão do movimento do aparato de projeção.


Por isso talvez esteja nas mãos dos filósofos da percepção como Briam Massumi ou dos insights de neurologistas como Oliver Sacks as ferramentas para se criar uma contra-tática diante do domínio da canastrice na política pós-moderna.

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